segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Carnaval de Salvador é festa democrática?

Por Walter Takemoto, na revista Caros Amigos:

O Carnaval desse ano foi cantado em versos e prosas por alguns, principalmente governantes ou seus representantes, como tendo sido o mais democrático dos últimos anos. Outros, menos entusiastas, declararam que 2016 marca o início de um processo de democratização do Carnaval.

Um dos argumentos principais de quem viu o Carnaval de 2016 como mais democratizado e com maior participação popular, deu como maior exemplo o crescimento do número de blocos sem cordas, em especial os que tinham grandes artistas do axé, como Ivete, Bel e outros, não entrando no mérito da qualidade, ou se são artistas em decadência.

O que poucos discordam é que o fim da corda nos blocos desses artistas coincide com a crescente redução nas vendas dos abadás e do patrocínio para os camarotes. E nesse ano virou manchete o pagamento de cachês consideráveis que a Prefeitura e o governo do Estado pagaram para que esses artistas tirassem as cordas. Ou seja, o fim das cordas é pago com centenas de milhares de reais de verbas públicas para os artistas posarem de democráticos e populares.

Monopólio

E o Carnaval de 2016 escancarou a “festa democrática” inaugurada pelo ACM Neto em 2015. O prefeito, conhecido por “lenhador” em virtude de sua sanha na derrubada de árvores, que segundo a imprensa ultrapassou mil cortadas na cidade, esse ano colocou Salvador sob domínio de uma única marca de cerveja pelo valor de R$ 25 milhões. Não se tratou apenas da exposição da marca da cerveja ao longo dos trajetos dos blocos ou nas decorações oficiais espalhadas pela cidade.

O prefeito simplesmente proibiu que qualquer outra marca de cerveja fosse vendida nos circuitos e regiões próximas, realizando apreensões em supermercados (veja aqui) ou depósitos de bebidas, sob alegação de que vendiam no atacado.

E os trabalhadores informais, mais de dez mil segundo a prefeitura, mesmo pagando licença para trabalhar legalmente na região dos circuitos só podiam vender a marca que comprou a proteção do prefeito.

E a Prefeitura mobilizou seu aparato repressivo para garantir a propriedade da cidade e do paladar de seus moradores. Centenas de fiscais e guardas municipais foram mobilizados para tomar a mercadoria dos trabalhadores que não fosse da marca da dita cerveja.

E a democracia em Salvador tem classe social, tem cor e território.

Sabe-se que grande parte da população soteropolitana sobrevive do trabalho informal ou “por conta própria”, e dessas atividades, em casa ou nas ruas, retiram o sustento de suas famílias ao longo de gerações. Não se trata apenas da baiana de acarajé ou do ambulante com a sua banquinha nas ruas da área central da cidade. São principalmente as mulheres que fazem comida em casa para vender, que montam uma vendinha na janela ou portão de casa, que lavam e passam, costuram para fora, cuidam de crianças, entre tantas outras tarefas que rendem o sustento da família.

Trabalho na rua

E quando chega o Carnaval são centenas de soteropolitanos, grande parte mulheres, que se mudam para as ruas onde acontece a “festa”, com suas crianças para garantir o seu pedaço de calçada e uma renda maior para sua família. E são quase todos e todas, negros e negras, da periferia da cidade ou de municípios vizinhos.

E enquanto a mãe cuida de vender, a criança maior toma conta da menor, que toma conta da ainda mais nova. E para quem não faz de conta que não enxerga, lá estão crianças, algumas que nem andam, dormindo em caixas de isopor. E quem se importa? Com certeza não o prefeito ACM Neto e seus secretários.

Defendendo o território que vendeu para a cervejaria, o prefeito determinou para seus órgãos de repressão que impedisse qualquer forma de concorrência ao que comprou a sua proteção. Com violência os todos e todas negros e negras tiveram suas mercadorias apreendidas, nas quais investiram o dinheiro que não possuem.

Repressão

E na segunda-feira, dia 8, centenas de trabalhadores e trabalhadoras ocuparam o circuito do Carnaval para denunciar a repressão determinada pelo prefeito em defesa dos interesses da cervejaria (veja aqui). E novamente a Guarda Municipal, com o auxílio luxuoso da Polícia Militar, reprimiu a manifestação.

E o Carnaval de Salvador demonstrou que com corda ou sem corda existirão sempre os excluídos da “maior festa de rua do planeta” como anuncia outdoor da Prefeitura comprada por uma cervejaria.

É exemplar que o Carnaval de Salvador não é festa para negro e negra pobres da periferia que precisa sobreviver, foi o caso da Edilene Souza Teles, mãe, grávida de sete meses, negra e pobre, que vendia cerveja em isopor. Alguém filmou a Edilene enchendo garrafas sem rótulo com água de gelo derretido e colocando na calçada e postou nas redes sociais como se ela estivesse vendendo as garrafas para os foliões.

Linchamento virtual

Imediatamente o vídeo viralizou e parte da imprensa condenou a Edilene como falsária. Edilene perdeu sua mercadoria, apreendida pelos vigilantes do prefeito, e teve seus filhos menores, que estavam acompanhando a mãe nos dias de trabalho, entregues ao Conselho Tutelar.

Antes de condenar Edilene ninguém se interessou em conhecer sua história. O que ela fazia era simplesmente encher as garrafas com água de gelo derretido para dar as Muquiranas (bloco de homens com fantasias de mulher) encherem suas bombas d’água e dessa forma vender a eles latas de cerveja (leia aqui).

Acontece que negros, negras, assim como trabalhador informal, são sempre vistos como suspeitos, marginais, elementos perigosos, inclusive na cidade negra de Salvador.

E não se pode falar no Carnaval de 2016 sem lembrar que exatamente na “festa democrática” desse ano completou um ano da chacina do Cabula, sem que nenhum PM que participou dos assassinatos dos adolescente e jovens, todos negros, fosse condenado.

E para finalizar um texto que escrevi anos atrás sobre o Carnaval de Salvador:

***

“Cortar as cordas camará!

Os negros esticam a corda, que separa quase todos brancos de quase todos negros.


E a corda suspensa no ar serpenteia, como os açoites nas costas dos negros que lutavam para romper as cordas invisíveis da escravidão.


E o trio elétrico com seu som ensurdecedor cala os gritos que rompem o tempo dos negros amarrados logo ali, no pelourinho.


E a corda do capitão do mato que prende o negro escravo é a mesma corda do policial da cidade que prende o negro, que luta para sobreviver, pelo bem ou pelo mal.

E os negros que puxam a corda que separa, nada mais faz que esticar a corda do passado que escraviza.


Cortar a corda camará, amarrar a corda na cinta e jogar camará, dar um nó na corda e esconder a ponta camará!"

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