Por Luis Matías López, no site Outras Palavras:
Barack Obama não quer passar para a história como um presidente cheio de boas intenções, algumas conquistas importantes (reforma da saúde, normalização das relações com Cuba, acordo nuclear com o Irã…), mas com a coluna de créditos do seu balanço mais curta do que o saldo devedor (incapacidade de impedir a emergência do Estado Islâmico, internacionalização do terrorismo jihadista, guerras de Bush falsamente encerradas, graves tensões com a Rússia…).
No afã presidente norte-americano para salvar seu legado há uma questão de alto valor simbólico, porque supõe o sonoro e midiático descumprimento da promessa de fechar o cárcere vergonhoso de Guantánamo, na base de mesmo nome localizada em Cuba. Sua ocupação resulta do direito colonial rançoso, anterior à revolução cubana, e não do livre acordo entre aliados –, já que Havana não desistiu de sua reivindicação estéril para recuperar essa parte do país.
Além do alto valor estratégico de manter forte presença militar em um país vizinho que os EUA não conseguiram submeter em 57 anos, Guantánamo brindou tanto Bush como Obama com uma saída perfeita para reter, em condições frequentemente sub-humanas e já há 14 anos, centenas de combatentes inimigos, sem ter de reconhecer o direito de serem considerados inocentes até prova em contrário.
Obama sustenta que a culpa não é sua, mas de um Congresso dominado pelos republicanos que boicotou, sistematicamente, todas as tentativas de fechar a prisão atípica e vergonhosa. Não lhe falta parte da razão, mas, se é bem certo que o sistema de equilíbrio de poderes limita suas atribuições presidenciais, não é menos verdadeiro que deixa ampla margem ao Executivo quando este demonstra uma clara vontade política de batalhar contra a resistência do Legislativo. Trata-se tanto de poder como de querer, e não está claro se Obama deseja fechar Guantánamo a ponto de assumir, por essa questão, o desgaste de um conflito aberto com o Congresso.
Uma prova evidente de como o presidente relativiza o assunto é que, em que pesem suas advertências em contrário, ele terminou aceitando, em novembro, um orçamento de defesa que proíbe o traslado aos Estados Unidos de prisioneiros aprisionados na base. Enviá-los para território norte-americano suporia, entre outras coisas, reconhecer seu direito a um julgamento justo. Se se aceitasse este princípio, a grande maioria dos detidos ilegalmente – contra os quais não há provas sustentáveis diante de um tribunal imparcial – deveriam ser colocados em liberdade. Isso suporia reconhecer um dos maiores ultrajes legais cometidos pelos Estados Unidos em seus quase dois séculos e meio de história. E, num país onde os advogados florescem como cogumelos, poderia multiplicar as exigências de reparação pelos danos físicos e morais à multidão de encarcerados durante esses 14 anos.
Esse perigo parece distante, sem dúvida. De fato, o secretário de Defesa, Ashton Carter, anunciou que apresentará, ao Congresso, de um plano que, se colocado em prática, implica mudança da localização dos prisioneiros – de Guantánamo aos Estados Unidos –, sem alterar necessariamente seu status. Hoje, eles não podem ser transferidos a outros países; nem julgados (por falta de provas), nem libertados (porque continuam sob suspeita de terrorismo). Uma aberração legal, mas que não seria a mais grave perpetrada na “guerra contra o terror” empreendida por Bush desde 11 de Setembro, e que também aprisionou Obama, mais preocupado em salvar a própria pele do que com que se faça justiça.
Obama não é exatamente igual a Bush, e fez, sim, alguma coisa. Por exemplo, proibiu as torturas – ainda que persista tratamento degradante – que tiveram inclusive cobertura legal (embora secreta), e que foram praticadas de forma rotineira durante o mandato de seu predecessor. Reduziu o némero de presos aos 93 atuais, dos 245 que havia quando assumiu a presidência (há sete anos!), e um número muito distante dos 680 que Guantánamo chegou a ter no seu ápice, em 2003.
Dos 93 que continuam lá aprisionados, 34 estão tão “limpos” que se admite transferi-los a outros países – se houver quem aceite acolhê-los; três foram condenados pelas “comissões militares” que substituem os tribunais civis; sete estão sendo julgados por esses mesmos órgãos; e os 49 restantes, classificados como “combatentes ilegais”, estão retidos em caráter indefinido e sem indícios de culpabilidade que permitam serem processados com as mínimas garantias legais que deveriam ver reconhecidas.
As irracionalidades abundam. É claro que o sistema penitenciário, capaz de aprisionar o autor do atentado da maratona de Boston e o rei do narcotráfico, Chapo Guzmán – se for finalmente extraditado do México –, não teria problemas em deter, com garantias, um punhado de supostos terroristas. O problema é que, se chegarem aos Estados Unidos, fora já do limbo legal de Guantánamo, demonstrar sua culpabilidade, caso exista, seria questão quase impossível. E a propaganda dos republicanos, amplificada em pleno ano eleitoral, somada às reticências nos Estados onde se encontram as eventuais prisões receptoras, reafirma que haveria um grave risco à segurança nacional se, finalmente, a maioria desses reclusos acabassem em liberdade. Difícil imaginar maior exercício de hipocrisia num país que dá lições de democracia e respeito aos direitos individuais ao mundo todo.
Mas ainda tem mais. Pois Obama está preso à sua sonora promessa de fechar Guantánamo, e descumpri-la o colocaria em evidência. Por isso continuará esforçando-se para realizá-la, ainda que isso suponha pouco mais que maquiagem. Diversas organizações defensoras dos direitos humanos (como Anistia Internacional e a União de Liberdades Civis Americanas) temem que o eventual transporte dos prisioneiros para os Estados Unidos não inclua mudança em seu status atual de “presos indefinidos”.
A Anistia Internacional, por exemplo, sustenta, através da diretora do Programa de Segurança e Direitos Humanos nos Estados Unidos, Naureen Shah: “A única coisa que a proposta de Obama (realocação dos prisioneiros, conservando-os em detenção indefinida nos Estados Unidos) conseguiria seria mudar o código postal de Guantánamo (…) O certo seria por fim à detenção indefinida sem ressalvas, não mudá-la de lugar (…); os que não podem ser transferidos a outros países considerados seguros devem ser acusados diante de um tribunal federal ou postos em liberdade”. A Anistia exige, além disso, que os EUA assumam “a responsabilidade pelos abusos cometidos no passado” e que “sejam ampliadas as investigações sobre denúncias de tortura e outras violações dos direitos humanos.” Enquanto isso, a advogada novaiorquina Tina Foster, que representa vários prisioneiros, sustenta que o fechamento da prisão seria principalmente uma medida de relações públicas, sem nenhum significado real.
De outro lado, exportar para outros países os prisioneiros de Guantánamo não garantiria que estejam seguros e com seus direitos fundamentais a salvo, algo que exigiria um mecanismo de controle para garantir que não estão mudando de uma prisão para outra, igualmente injusta e arbitrária. Um exemplo: o marroquino Yunus Chekuri, transferido encapuzado e algemado a seu país após 14 meses detido na base norte-americana sem que houvesse nenhuma acusação contra ele, e sem que a CIA e o FBI o considerassem uma ameaça, continua aprisionado próximo a Rabat. E seu caso não é o único.
No afã presidente norte-americano para salvar seu legado há uma questão de alto valor simbólico, porque supõe o sonoro e midiático descumprimento da promessa de fechar o cárcere vergonhoso de Guantánamo, na base de mesmo nome localizada em Cuba. Sua ocupação resulta do direito colonial rançoso, anterior à revolução cubana, e não do livre acordo entre aliados –, já que Havana não desistiu de sua reivindicação estéril para recuperar essa parte do país.
Além do alto valor estratégico de manter forte presença militar em um país vizinho que os EUA não conseguiram submeter em 57 anos, Guantánamo brindou tanto Bush como Obama com uma saída perfeita para reter, em condições frequentemente sub-humanas e já há 14 anos, centenas de combatentes inimigos, sem ter de reconhecer o direito de serem considerados inocentes até prova em contrário.
Obama sustenta que a culpa não é sua, mas de um Congresso dominado pelos republicanos que boicotou, sistematicamente, todas as tentativas de fechar a prisão atípica e vergonhosa. Não lhe falta parte da razão, mas, se é bem certo que o sistema de equilíbrio de poderes limita suas atribuições presidenciais, não é menos verdadeiro que deixa ampla margem ao Executivo quando este demonstra uma clara vontade política de batalhar contra a resistência do Legislativo. Trata-se tanto de poder como de querer, e não está claro se Obama deseja fechar Guantánamo a ponto de assumir, por essa questão, o desgaste de um conflito aberto com o Congresso.
Uma prova evidente de como o presidente relativiza o assunto é que, em que pesem suas advertências em contrário, ele terminou aceitando, em novembro, um orçamento de defesa que proíbe o traslado aos Estados Unidos de prisioneiros aprisionados na base. Enviá-los para território norte-americano suporia, entre outras coisas, reconhecer seu direito a um julgamento justo. Se se aceitasse este princípio, a grande maioria dos detidos ilegalmente – contra os quais não há provas sustentáveis diante de um tribunal imparcial – deveriam ser colocados em liberdade. Isso suporia reconhecer um dos maiores ultrajes legais cometidos pelos Estados Unidos em seus quase dois séculos e meio de história. E, num país onde os advogados florescem como cogumelos, poderia multiplicar as exigências de reparação pelos danos físicos e morais à multidão de encarcerados durante esses 14 anos.
Esse perigo parece distante, sem dúvida. De fato, o secretário de Defesa, Ashton Carter, anunciou que apresentará, ao Congresso, de um plano que, se colocado em prática, implica mudança da localização dos prisioneiros – de Guantánamo aos Estados Unidos –, sem alterar necessariamente seu status. Hoje, eles não podem ser transferidos a outros países; nem julgados (por falta de provas), nem libertados (porque continuam sob suspeita de terrorismo). Uma aberração legal, mas que não seria a mais grave perpetrada na “guerra contra o terror” empreendida por Bush desde 11 de Setembro, e que também aprisionou Obama, mais preocupado em salvar a própria pele do que com que se faça justiça.
Obama não é exatamente igual a Bush, e fez, sim, alguma coisa. Por exemplo, proibiu as torturas – ainda que persista tratamento degradante – que tiveram inclusive cobertura legal (embora secreta), e que foram praticadas de forma rotineira durante o mandato de seu predecessor. Reduziu o némero de presos aos 93 atuais, dos 245 que havia quando assumiu a presidência (há sete anos!), e um número muito distante dos 680 que Guantánamo chegou a ter no seu ápice, em 2003.
Dos 93 que continuam lá aprisionados, 34 estão tão “limpos” que se admite transferi-los a outros países – se houver quem aceite acolhê-los; três foram condenados pelas “comissões militares” que substituem os tribunais civis; sete estão sendo julgados por esses mesmos órgãos; e os 49 restantes, classificados como “combatentes ilegais”, estão retidos em caráter indefinido e sem indícios de culpabilidade que permitam serem processados com as mínimas garantias legais que deveriam ver reconhecidas.
As irracionalidades abundam. É claro que o sistema penitenciário, capaz de aprisionar o autor do atentado da maratona de Boston e o rei do narcotráfico, Chapo Guzmán – se for finalmente extraditado do México –, não teria problemas em deter, com garantias, um punhado de supostos terroristas. O problema é que, se chegarem aos Estados Unidos, fora já do limbo legal de Guantánamo, demonstrar sua culpabilidade, caso exista, seria questão quase impossível. E a propaganda dos republicanos, amplificada em pleno ano eleitoral, somada às reticências nos Estados onde se encontram as eventuais prisões receptoras, reafirma que haveria um grave risco à segurança nacional se, finalmente, a maioria desses reclusos acabassem em liberdade. Difícil imaginar maior exercício de hipocrisia num país que dá lições de democracia e respeito aos direitos individuais ao mundo todo.
Mas ainda tem mais. Pois Obama está preso à sua sonora promessa de fechar Guantánamo, e descumpri-la o colocaria em evidência. Por isso continuará esforçando-se para realizá-la, ainda que isso suponha pouco mais que maquiagem. Diversas organizações defensoras dos direitos humanos (como Anistia Internacional e a União de Liberdades Civis Americanas) temem que o eventual transporte dos prisioneiros para os Estados Unidos não inclua mudança em seu status atual de “presos indefinidos”.
A Anistia Internacional, por exemplo, sustenta, através da diretora do Programa de Segurança e Direitos Humanos nos Estados Unidos, Naureen Shah: “A única coisa que a proposta de Obama (realocação dos prisioneiros, conservando-os em detenção indefinida nos Estados Unidos) conseguiria seria mudar o código postal de Guantánamo (…) O certo seria por fim à detenção indefinida sem ressalvas, não mudá-la de lugar (…); os que não podem ser transferidos a outros países considerados seguros devem ser acusados diante de um tribunal federal ou postos em liberdade”. A Anistia exige, além disso, que os EUA assumam “a responsabilidade pelos abusos cometidos no passado” e que “sejam ampliadas as investigações sobre denúncias de tortura e outras violações dos direitos humanos.” Enquanto isso, a advogada novaiorquina Tina Foster, que representa vários prisioneiros, sustenta que o fechamento da prisão seria principalmente uma medida de relações públicas, sem nenhum significado real.
De outro lado, exportar para outros países os prisioneiros de Guantánamo não garantiria que estejam seguros e com seus direitos fundamentais a salvo, algo que exigiria um mecanismo de controle para garantir que não estão mudando de uma prisão para outra, igualmente injusta e arbitrária. Um exemplo: o marroquino Yunus Chekuri, transferido encapuzado e algemado a seu país após 14 meses detido na base norte-americana sem que houvesse nenhuma acusação contra ele, e sem que a CIA e o FBI o considerassem uma ameaça, continua aprisionado próximo a Rabat. E seu caso não é o único.
* Tradução de Inês Castilho.
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