Por Najla Passos, no site Carta Maior:
Em junho de 2010, os brasileiros comemoraram a sanção da Lei da Ficha Limpa, um projeto de lei de iniciativa popular que reuniu 1,6 milhões de assinaturas para permitir que os políticos que tivessem o mandato cassado, renunciassem para fugir da cassação ou fossem condenados em segunda instância ficassem inelegíveis por oito anos. Um mês depois veio o primeiro balde de água fria: o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão individual, concedeu liminar para que o senador Heráclito Fortes (DEM-PI) pudesse concorrer à reeleição naquele pleito, embora ele tivesse sido condenado por improbidade administrativa em órgão colegiado de segunda instância.
Fortes acabou sendo derrotado nas urnas e, só posteriormente, em 2014, se elegeu deputado federal pelo PSB. Mas os juristas extraíram daí um ensinamento importante: quando o diploma legal concedeu aos juízes a prerrogativa de decidir individualmente, caso a caso, quem poderia ou não se candidatar enquanto respondia a processo, permitiu que a garantia constitucional da presunção da inocência, que antes era de todos os cidadãos, ficasse facultada ao pequeno grupo de cidadãos que tem maior acesso aos bons advogados, aos recursos, à justiça. E é isso exatamente o que eles temem que aconteça agora, em um contexto mais geral, a partir da decisão do STF, da última quarta (17), que permite a prisão de condenados em segunda instância antes do transito em julgado do processo.
“Com a experiência da Lei da Ficha Limpa, ficou demonstrado que quando você deixa esse tipo de decisão nas mãos dos juízes, ocorre uma seletivização, uma elitização da justiça. O candidato que teve bom acesso à justiça conseguiu a liminar. O que não teve, não concorreu à eleição”, explica o advogado criminalista Marthius Sávio Cavalcante Lobato, para quem a virada na jurisprudência da corte viola a vontade do legislador constituinte e, por isso, constitui também uma afronta à democracia. “A decisão do Supremo inverte o preceito constitucional de que o condenado só pode ser preso após o trânsito em julgado. E isso é muito ruim para a democracia”, justifica.
O criminalista lembra que a decisão, por si só, não resolve o problema da impunidade, como alegaram alguns dos sete ministros que votaram favoráveis a mudança: o relator, Teori Zawascki, e também Luiz Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes. Como exemplo, ele cita o caso do ex-governador de Minas Gerais, Eduardo Azeredo, do PSDB, condenado em primeira instância só no ano passado pela sua participação no “mensalão tucano” e que ainda continua em liberdade. “A prisão de Azeredo não está demorando a ocorrer porque ele tem direito à recursos, mas sim porque, durante mais de 10 anos, o sistema não o julgou”, esclarece.
De fato, embora o crime pelo qual Azeredo foi denunciado tenha ocorrido em 1998, ele só foi julgado pela primeira vez – e em primeira instância – no ano passado, 17 anos depois. Antes disso, o processo ficou parado no STF por mais de 10 anos, enquanto o tucano exercia os mandatos de deputado e, por isso, tinha direito à foro privilegiado. Em 2014, às véspera do julgamento único do STF ser efetivado, ele renunciou ao mandato e o processo foi remetido à primeira instância, gerando mais atrasos. Em 2015, Azeredo foi condenado a 20 anos de prisão pelo crime cometido em 1998. Mas como ele recorreu, não foi para a prisão.
O risco agora é que a pena prescreva antes mesmo de que ele seja julgado em segunda instância. Ou ainda, como alerta Lobato, que ele seja condenado em segundo grau, mas um juiz do tribunal superior decida, ainda que liminarmente, que ele deve aguardar o fim do processo em liberdade. O problema da impunidade, portanto, não está relacionado à garantia constitucional da presunção da inocência até o trânsito em julgado, mas sim a morosidade do sistema para julgar alguns casos específicos. “Com esta decisão, o Supremo não diz que todo mundo que for julgado em segunda instância será preso. O que ele diz é que o condenado pode ser preso ou não. Então, ficará a critério do juiz. E assim será criada uma casta de pessoas que poderão ficar livres, enquanto as demais não”, denuncia o advogado.
Relativização da presunção da inocência e populismo penal
Para Rubens Casara, juiz do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) e coordenador de Processo Penal da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj), a decisão relativiza a presunção da inocência e, por isso, representa mais um retrocesso de cunho autoritário para o país. “Este julgamento entra para a história por consagrar um equívoco que será suportado por toda a sociedade brasileira, inclusive por aqueles que, inseridos em uma tradição autoritária e cegos por uma ideologia que aposta na prisão como resposta para os mais variados problemas éticos ou sociais, hoje, aplaudem a relativização de uma garantia constitucional”, argumenta.
De acordo com ele, a decisão insere-se no movimento chamado pelo jurista francês Denis Salas de “populismo penal”, que se caracteriza pela tentativa de satisfazer as pulsões repressivas, por mais punições e pelo afastamento dos obstáculos legais ao poder penal, presentes na sociedade. “Na atual quadra histórica, em que direitos fundamentais são percebidos como obstáculos à eficiência repressiva do Estado, é sempre bom aproveitar para lembrar que no fascismo clássico Italiano e no sistema de justiça penal nazista, a presunção de inocência também foi objeto de ataques”, ressalta.
Para o juiz, muitos dos argumentos trazidos ao debate pelos ministros que defenderam a relativização da presunção de inocência não são novos. E o pior: já sustentaram sistemas extremamente autoritários. “Em todo momento autoritário, essa mesma linha argumentativa se faz presente. Basta lembrar que alguns votos nesse julgamento se aproximam, perigosamente, das lições de Vincenzo Manzini, teórico italiano ligado ao governo fascista de Mussolini. A tese de que é necessário ouvir a “voz do povo” fez lembrar de Carl Schmitt, intelectual alemão e entusiasta do nazismo”, compara.
O juiz lamentou também o fato de que a decisão do STF não levou em conta o caos penitenciário do país, já amplamente reconhecido pela própria corte, e questionou a tolerância da maioria dos ministros para com futuros erros judiciais, já que o próprio decano do tribunal, ministro Celso de Melo, lembrou que 25% das decisões de primeira e segunda instâncias são reformadas nas cortes superiores. “Para o réu que ficou preso e acabou absolvido, nada do que o poder judiciário ou qualquer outra autoridade vier a fazer servirá para compensar adequadamente a restrição de sua liberdade”, ressaltou.
Casara ainda sugeriu um exercício relacionado à alteridade: “Imagine-se preso, apesar de inocente. Um pedido de desculpas ou uma indenização será suficiente para você? A cada dia mais, o valor liberdade, que nunca foi devidamente compreendido no Brasil em razão da natureza autoritária da sociedade brasileira, é tratado como uma mercadoria por alguns atores jurídicos. Para essas pessoas, que foram submetidas a um processo de mutação simbólica e de empobrecimento do imaginário, tudo pode ser comprado por dinheiro, inclusive o perdão por erros judiciários”, acrescentou.
Clamores da opinião pública e publicada
Para o deputado Wadih Damous (PT-RJ), ex-presidente da OAB-RJ, a decisão constitui um retrocesso sob todos os aspectos. “O STF cassou a presunção da inocência no Brasil e isso é muito grave”, afirma. Tal como Lobato e Casara, ele também refuta a ideia de que esta medida permitirá que a justiça alcance os ricos, que se utilizam do sistema de recursos para fugir da prisão. “Os ricos sempre dão um jeito de se safar. Essa decisão é mais uma que irá prejudicar o pobre, o jovem negro da favela. Porque o Brasil tem a terceira ou quarta maior população carcerária do mundo. São cerca de 700 mil presos amontoados nos nossos presídios. E entre eles não estão os poderosos, os ricos, os responsáveis pelos crimes de colarinho branco”, justifica.
Para o parlamentar, a suprema corte do país errou ao se deixar influenciar pelos clamores populares pelo fim da impunidade, tomando um caminho que só deixou a justiça ainda mais seletiva. “O Supremo se deixou sensibilizar por estes clamores positivistas, por esta falsa ideia incrustada na população pela mídia de que tudo se resolve com mais cadeia e com mais prisão. A corte máxima de um país não pode se mostrar tão suscetível aos clamores da opinião pública ”, defende. Ele criticou duramente o fato de que vários ministros justificaram seus votos favoráveis à mudança alegando que é preciso acabar com a sensação de impunidade que domina o país. “O STF não pode se curvar a maioria eventuais”, destaca.
O deputado informa que vem consultando outros juristas e parlamentares para recorrer da decisão à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Para ele, a decisão também viola os tratados internacionais que determinam a presunção da inocência. Conforme esclarece Lobato, uma possível condenação da Corte Interamericana não tem o poder de reverter a decisão do STF, mas possibilita que a corte brasileira volte a discutir o assunto no caso concreto, o que pode gerar entendimento diferente. “Além de que significaria uma vexame internacional para o Brasil”, ressalta.
Damous afirma que encaminhará a proposta à Ordem dos Advogados do Brasil (OBA) que, imediatamente após o término do julgamento em que o STF proferiu a mudança da jurisprudência, publicou uma nota criticando duramente a medida. "A OAB possui posição firme no sentido de que o princípio constitucional da presunção de inocência não permite a prisão enquanto houver direito a recurso", destacou o documento. Na nota, o órgão disse ainda que respeita a decisão do STF, mas entende que a execução provisória da pena é preocupante. “A decisão provocará danos irreparáveis na vida das pessoas que forem encarceradas injustamente”, observou.
A “Doutrina Moro”
De acordo com deputado Damous, a decisão do STF está diretamente relacionada com o sucesso midiático da Operação, cujo principal condutor, o juiz Sérgio Moro, é o garoto propaganda do projeto de lei apresentado ao parlamento no ano passado pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) que visava, justamente, permitir a prisão do condenados após a confirmação da sentença pela segunda instância. O projeto de lei da Ajufe tramita agora na Comissão de Constituição e Justiça do Senado e é no mínimo um indício de que os próprios magistrados acreditavam que era necessário operar mudanças legislativas para justificar a mudança na leitura da Constitição.
O criminalista Lobato concorda. “O que o juiz Sérgio Moro vem fazendo na Lava Jato é justamente isso: decidir no curso do processo legal, antes mesmo de qualquer sentença, quem deve e quem não deve ficar preso”, afirma. Segundo ele, no caso da Lava Jato, o juiz se utiliza da previsão legal da prisão provisória para poder justificar as prisões – muitas delas feitas no afogadilho - no curso do processo. “ O problema é que a prisão provisória está se tornando definitiva. É preciso ter um marco para que a provisória acaba e você siga o curso normal do processo, o que não está acontecendo. Na Lava Jato, se o juiz acha que você é culpado você fica preso mesmo que ainda não tenha sido julgado”, sustenta.
Mais cauteloso, Casara acredita que não é possível afirmar que há uma relação entre a decisão do STF e o sucesso midiático da Operação Lava Jato. Entretanto, ele considera inegável que muitos juízes brasileiros querem ser o protagonista do próximo sucesso midiático. “Tenho trabalhado com uma categoria que é a do 'processo penal do espetáculo`, no qual a dimensão de garantia contra a opressão, típica do processo penal adequado aos princípios republicanos e liberais, é substituída pela dimensão de entretenimento ou, mais precisamente, pelo desejo de agradar ao público. No processo penal do espetáculo, o magistrado constrói decisões para agradar às maiorias de ocasião, forjadas em meio à desinformação generalizada, isso em detrimento da função contramajoritária de respeitar e concretizar direitos fundamentais”, explicou.
Em junho de 2010, os brasileiros comemoraram a sanção da Lei da Ficha Limpa, um projeto de lei de iniciativa popular que reuniu 1,6 milhões de assinaturas para permitir que os políticos que tivessem o mandato cassado, renunciassem para fugir da cassação ou fossem condenados em segunda instância ficassem inelegíveis por oito anos. Um mês depois veio o primeiro balde de água fria: o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão individual, concedeu liminar para que o senador Heráclito Fortes (DEM-PI) pudesse concorrer à reeleição naquele pleito, embora ele tivesse sido condenado por improbidade administrativa em órgão colegiado de segunda instância.
Fortes acabou sendo derrotado nas urnas e, só posteriormente, em 2014, se elegeu deputado federal pelo PSB. Mas os juristas extraíram daí um ensinamento importante: quando o diploma legal concedeu aos juízes a prerrogativa de decidir individualmente, caso a caso, quem poderia ou não se candidatar enquanto respondia a processo, permitiu que a garantia constitucional da presunção da inocência, que antes era de todos os cidadãos, ficasse facultada ao pequeno grupo de cidadãos que tem maior acesso aos bons advogados, aos recursos, à justiça. E é isso exatamente o que eles temem que aconteça agora, em um contexto mais geral, a partir da decisão do STF, da última quarta (17), que permite a prisão de condenados em segunda instância antes do transito em julgado do processo.
“Com a experiência da Lei da Ficha Limpa, ficou demonstrado que quando você deixa esse tipo de decisão nas mãos dos juízes, ocorre uma seletivização, uma elitização da justiça. O candidato que teve bom acesso à justiça conseguiu a liminar. O que não teve, não concorreu à eleição”, explica o advogado criminalista Marthius Sávio Cavalcante Lobato, para quem a virada na jurisprudência da corte viola a vontade do legislador constituinte e, por isso, constitui também uma afronta à democracia. “A decisão do Supremo inverte o preceito constitucional de que o condenado só pode ser preso após o trânsito em julgado. E isso é muito ruim para a democracia”, justifica.
O criminalista lembra que a decisão, por si só, não resolve o problema da impunidade, como alegaram alguns dos sete ministros que votaram favoráveis a mudança: o relator, Teori Zawascki, e também Luiz Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes. Como exemplo, ele cita o caso do ex-governador de Minas Gerais, Eduardo Azeredo, do PSDB, condenado em primeira instância só no ano passado pela sua participação no “mensalão tucano” e que ainda continua em liberdade. “A prisão de Azeredo não está demorando a ocorrer porque ele tem direito à recursos, mas sim porque, durante mais de 10 anos, o sistema não o julgou”, esclarece.
De fato, embora o crime pelo qual Azeredo foi denunciado tenha ocorrido em 1998, ele só foi julgado pela primeira vez – e em primeira instância – no ano passado, 17 anos depois. Antes disso, o processo ficou parado no STF por mais de 10 anos, enquanto o tucano exercia os mandatos de deputado e, por isso, tinha direito à foro privilegiado. Em 2014, às véspera do julgamento único do STF ser efetivado, ele renunciou ao mandato e o processo foi remetido à primeira instância, gerando mais atrasos. Em 2015, Azeredo foi condenado a 20 anos de prisão pelo crime cometido em 1998. Mas como ele recorreu, não foi para a prisão.
O risco agora é que a pena prescreva antes mesmo de que ele seja julgado em segunda instância. Ou ainda, como alerta Lobato, que ele seja condenado em segundo grau, mas um juiz do tribunal superior decida, ainda que liminarmente, que ele deve aguardar o fim do processo em liberdade. O problema da impunidade, portanto, não está relacionado à garantia constitucional da presunção da inocência até o trânsito em julgado, mas sim a morosidade do sistema para julgar alguns casos específicos. “Com esta decisão, o Supremo não diz que todo mundo que for julgado em segunda instância será preso. O que ele diz é que o condenado pode ser preso ou não. Então, ficará a critério do juiz. E assim será criada uma casta de pessoas que poderão ficar livres, enquanto as demais não”, denuncia o advogado.
Relativização da presunção da inocência e populismo penal
Para Rubens Casara, juiz do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) e coordenador de Processo Penal da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj), a decisão relativiza a presunção da inocência e, por isso, representa mais um retrocesso de cunho autoritário para o país. “Este julgamento entra para a história por consagrar um equívoco que será suportado por toda a sociedade brasileira, inclusive por aqueles que, inseridos em uma tradição autoritária e cegos por uma ideologia que aposta na prisão como resposta para os mais variados problemas éticos ou sociais, hoje, aplaudem a relativização de uma garantia constitucional”, argumenta.
De acordo com ele, a decisão insere-se no movimento chamado pelo jurista francês Denis Salas de “populismo penal”, que se caracteriza pela tentativa de satisfazer as pulsões repressivas, por mais punições e pelo afastamento dos obstáculos legais ao poder penal, presentes na sociedade. “Na atual quadra histórica, em que direitos fundamentais são percebidos como obstáculos à eficiência repressiva do Estado, é sempre bom aproveitar para lembrar que no fascismo clássico Italiano e no sistema de justiça penal nazista, a presunção de inocência também foi objeto de ataques”, ressalta.
Para o juiz, muitos dos argumentos trazidos ao debate pelos ministros que defenderam a relativização da presunção de inocência não são novos. E o pior: já sustentaram sistemas extremamente autoritários. “Em todo momento autoritário, essa mesma linha argumentativa se faz presente. Basta lembrar que alguns votos nesse julgamento se aproximam, perigosamente, das lições de Vincenzo Manzini, teórico italiano ligado ao governo fascista de Mussolini. A tese de que é necessário ouvir a “voz do povo” fez lembrar de Carl Schmitt, intelectual alemão e entusiasta do nazismo”, compara.
O juiz lamentou também o fato de que a decisão do STF não levou em conta o caos penitenciário do país, já amplamente reconhecido pela própria corte, e questionou a tolerância da maioria dos ministros para com futuros erros judiciais, já que o próprio decano do tribunal, ministro Celso de Melo, lembrou que 25% das decisões de primeira e segunda instâncias são reformadas nas cortes superiores. “Para o réu que ficou preso e acabou absolvido, nada do que o poder judiciário ou qualquer outra autoridade vier a fazer servirá para compensar adequadamente a restrição de sua liberdade”, ressaltou.
Casara ainda sugeriu um exercício relacionado à alteridade: “Imagine-se preso, apesar de inocente. Um pedido de desculpas ou uma indenização será suficiente para você? A cada dia mais, o valor liberdade, que nunca foi devidamente compreendido no Brasil em razão da natureza autoritária da sociedade brasileira, é tratado como uma mercadoria por alguns atores jurídicos. Para essas pessoas, que foram submetidas a um processo de mutação simbólica e de empobrecimento do imaginário, tudo pode ser comprado por dinheiro, inclusive o perdão por erros judiciários”, acrescentou.
Clamores da opinião pública e publicada
Para o deputado Wadih Damous (PT-RJ), ex-presidente da OAB-RJ, a decisão constitui um retrocesso sob todos os aspectos. “O STF cassou a presunção da inocência no Brasil e isso é muito grave”, afirma. Tal como Lobato e Casara, ele também refuta a ideia de que esta medida permitirá que a justiça alcance os ricos, que se utilizam do sistema de recursos para fugir da prisão. “Os ricos sempre dão um jeito de se safar. Essa decisão é mais uma que irá prejudicar o pobre, o jovem negro da favela. Porque o Brasil tem a terceira ou quarta maior população carcerária do mundo. São cerca de 700 mil presos amontoados nos nossos presídios. E entre eles não estão os poderosos, os ricos, os responsáveis pelos crimes de colarinho branco”, justifica.
Para o parlamentar, a suprema corte do país errou ao se deixar influenciar pelos clamores populares pelo fim da impunidade, tomando um caminho que só deixou a justiça ainda mais seletiva. “O Supremo se deixou sensibilizar por estes clamores positivistas, por esta falsa ideia incrustada na população pela mídia de que tudo se resolve com mais cadeia e com mais prisão. A corte máxima de um país não pode se mostrar tão suscetível aos clamores da opinião pública ”, defende. Ele criticou duramente o fato de que vários ministros justificaram seus votos favoráveis à mudança alegando que é preciso acabar com a sensação de impunidade que domina o país. “O STF não pode se curvar a maioria eventuais”, destaca.
O deputado informa que vem consultando outros juristas e parlamentares para recorrer da decisão à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Para ele, a decisão também viola os tratados internacionais que determinam a presunção da inocência. Conforme esclarece Lobato, uma possível condenação da Corte Interamericana não tem o poder de reverter a decisão do STF, mas possibilita que a corte brasileira volte a discutir o assunto no caso concreto, o que pode gerar entendimento diferente. “Além de que significaria uma vexame internacional para o Brasil”, ressalta.
Damous afirma que encaminhará a proposta à Ordem dos Advogados do Brasil (OBA) que, imediatamente após o término do julgamento em que o STF proferiu a mudança da jurisprudência, publicou uma nota criticando duramente a medida. "A OAB possui posição firme no sentido de que o princípio constitucional da presunção de inocência não permite a prisão enquanto houver direito a recurso", destacou o documento. Na nota, o órgão disse ainda que respeita a decisão do STF, mas entende que a execução provisória da pena é preocupante. “A decisão provocará danos irreparáveis na vida das pessoas que forem encarceradas injustamente”, observou.
A “Doutrina Moro”
De acordo com deputado Damous, a decisão do STF está diretamente relacionada com o sucesso midiático da Operação, cujo principal condutor, o juiz Sérgio Moro, é o garoto propaganda do projeto de lei apresentado ao parlamento no ano passado pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) que visava, justamente, permitir a prisão do condenados após a confirmação da sentença pela segunda instância. O projeto de lei da Ajufe tramita agora na Comissão de Constituição e Justiça do Senado e é no mínimo um indício de que os próprios magistrados acreditavam que era necessário operar mudanças legislativas para justificar a mudança na leitura da Constitição.
O criminalista Lobato concorda. “O que o juiz Sérgio Moro vem fazendo na Lava Jato é justamente isso: decidir no curso do processo legal, antes mesmo de qualquer sentença, quem deve e quem não deve ficar preso”, afirma. Segundo ele, no caso da Lava Jato, o juiz se utiliza da previsão legal da prisão provisória para poder justificar as prisões – muitas delas feitas no afogadilho - no curso do processo. “ O problema é que a prisão provisória está se tornando definitiva. É preciso ter um marco para que a provisória acaba e você siga o curso normal do processo, o que não está acontecendo. Na Lava Jato, se o juiz acha que você é culpado você fica preso mesmo que ainda não tenha sido julgado”, sustenta.
Mais cauteloso, Casara acredita que não é possível afirmar que há uma relação entre a decisão do STF e o sucesso midiático da Operação Lava Jato. Entretanto, ele considera inegável que muitos juízes brasileiros querem ser o protagonista do próximo sucesso midiático. “Tenho trabalhado com uma categoria que é a do 'processo penal do espetáculo`, no qual a dimensão de garantia contra a opressão, típica do processo penal adequado aos princípios republicanos e liberais, é substituída pela dimensão de entretenimento ou, mais precisamente, pelo desejo de agradar ao público. No processo penal do espetáculo, o magistrado constrói decisões para agradar às maiorias de ocasião, forjadas em meio à desinformação generalizada, isso em detrimento da função contramajoritária de respeitar e concretizar direitos fundamentais”, explicou.
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