Na abertura de House of Cards, o personagem principal Frank Underwood sacrifica um cãozinho atropelado.
Calma, não é spoiling, visto que se trata da primeira cena da série.
Underwood olha para o espectador e explica que "há dois tipos de dor: a que nos deixa mais fortes; e a dor inútil", como a daquele cãozinho em agonia.
O sofrimento imposto por um golpe midiático-político - caracterizado principalmente por sua violência psicológica - é um bom exemplo do primeiro tipo de dor: a que nos faz mais fortes.
O golpe ensaiado pela mídia brasileira, líder de um conjunto de forças do atraso que, aproveitando-se do momento de fragilidade do governo, tentam uma vendeta política, fracassará miseravelmente, de uma maneira ou de outra.
Perdem se ganharem, e perdem se perderem.
As conspirações golpistas agem como macacos enlouquecidos dentro de uma loja de cristais - porque estão tomadas por um desespero impotente.
Sua vitória será um fracasso, porque não terá legitimidade. Será uma vitória instável e indigna. Em política, ganhar não é tão difícil e complexo como conservar a vitória.
Como serão os editoriais no dia seguinte ao golpe: "Ressurge a democracia!", como fizeram em 1964?
Se perderem, será uma derrota humilhante e igualmente indigna: a derrota de quem jogou sujo.
Saber perder, num processo democrático, requer elegância, auto-estima e elevado senso de responsabilidade política.
O cerco golpista estreitou-se muito desde a semana passada, após a prisão do publicitário João Santana e o entendimento, agora bastante evidente para todos, de que a Lava Jato desde sempre foi uma operação planejada para derrubar o governo.
O governo Dilma, como sempre, saiu da paralisia apenas no último minuto do segundo tempo, substituindo um ministro da Justiça incrivelmente omisso diante do avanço de conspirações, das quais a própria polícia federal - que em tese deveria responder politicamente ao ministro - participa ativamente.
Pena que desativei o golpômetro, porque seria o caso de mostrar um pico bastante alto nos últimos dias. O golpômetro ficaria assim: depois do pico da semana passada, provocado pela prisão de João Santana, refluiria um pouco nos próximos dias, mas ainda muito sensível a qualquer pequeno factoide midiático. Pode atingir outro pico se houver agressões judiciais a Lula, e voltar a cair nos dias seguintes. Atingirá então o pico máximo às vésperas da votação no TSE, mas em seguida declinará paulatinamente ao longo do segundo semestre, terminando o ano ao nível mais baixo desde o início das conspirações.
Daí 2017 será um ano relativamente tranquilo, e 2018 voltará a ser nervoso, em função da perspectiva eleitoral, mas um nervosismo saudável, democrático, voltado para o debate político e ideológico.
O golpismo avança com facilidade diante da profunda incompetência política de um governo e de um partido que, aparentemente, ficaram parados no tempo em matéria de tecnologias de combate político.
A comunicação do governo parece ter estacionado em algum momento dos anos 80. Nem e-mail o governo sabe usar.
No auge de uma crise política, que provoca terríveis repercussões econômicas, o blog do Planalto se limita a reproduzir a agenda da presidenta. Comunicação política? Zero.
A prova da inutilidade da comunicação palaciana não poderia ser mais nítida: o último post do blog do Palácio do Planalto, um país com 205 milhões de habitantes, uma das maiores economias do mundo, tem 6 curtidas...
O governo edita este blog, herança do governo Lula, com má vontade: provavelmente o Palácio quer acabar também com ele.
Não vai mais à TV, não vai mais às redes sociais e o blog tem atualização burocrática.
O governo parece ter medo de falar. E o medo, como todo mundo sabe, faz os cães rosnarem mais alto, além de contaminar toda a comunidade política, incluindo aí os magistrados de tribunais superiores, indicados pelo próprio governo.
O Brasil encontra-se sob estado de sítio psicológico, imposto pela Lava Jato, a quem se conferiu poderes não apenas ilimitados como positivamente ilegais, e pela imprensa, que parece ter ingressado num torvelinho golpista sem volta.
Há notícias de âncoras da Globo se descontrolando na TV, pedindo "linchamento moral" da presidenta.
O diretor de redes sociais da Globo usa suas redes sociais para convocar um golpe.
A própria Globo, até então sempre tão fleumática, decidiu distribuir notificações extra-judiciais a blogueiros, antecipando um movimento direto de agressões judiciais e censura econômica.
Nunca foi tão difícil analisar a situação, e ao mesmo tempo nunca foi uma responsabilidade tão grande.
Como diria Hannah Arendt, no prefácio à primeira edição de As Origens do Totalitarismo, precisamos nos equilibrar entre um otimismo imprudente e um desespero insensato.
Arendt menciona ainda a extrema dificuldade, mesmo para um historiador, para um intelectual, de não sucumbir a esta persuasiva força das "opiniões aceitas", do "senso comum". Ao sondar as razões que levaram sociedades cultas a mergulharem num poço tão fundo de degradação moral e intolerância raivosa, ela observa que, para o historiador, não importava mais saber que as informações veiculadas pelos movimentos antissemitas eram mentirosas, e sim que estas informações estavam sendo assimiladas.
Para entender o nazismo, explica a pensadora, não basta identificar as suas mentiras, mas entender porque as pessoas passaram a acreditar nelas.
Guardadas as devidas proporções, eu não paro de pensar em nossa mídia e em suas mentiras sistemáticas. Haverá um momento em que teremos que fazer o combate intelectual não apenas às suas inverdades e manipulações, mas ir ainda mais fundo, e combater também as circunstâncias culturais que levam as pessoas a se deixarem manipular tão facilmente.
Por outro lado, precisamos tomar cuidado para não deixarmos que o terrorismo psicológico imposto pela mídia afete a nossa razoabilidade.
Não podemos nos intimidar pela arrogância desesperada de um setor decadente.
A mídia não estaria antes refletindo o desespero terminal de ideias políticas moribundas, as quais, aproveitando-se da fragilidade do governo, lançam um último grito?
Estamos afundando num processo de degeneração política e moral irreversível, ou apenas atravessando um período sombrio, turbulento, prenhe de violências e riscos, mas provisório, uma transição dolorosa mas necessária para uma etapa mais avançada da nossa democracia?
Seria irresponsabilidade da nossa parte, de qualquer forma, negar a gravidade do risco político que corremos.
Voltando à Arendt, ela explica, ainda no prefácio à primeira edição, quão errado é achar que somente o que houve de bom em nosso passado seria a nossa herança. Não, toda a violência do passado, toda a sua truculência, é também nossa herança e as correntes subterrâneas do nosso passado estão, a todo o tempo, tentando irromper no presente.
Mas igualmente não podemos ser excessivamente dramáticos. Se o governo comete erros políticos grosseiros, e se comete o pior de todos os pecados - a covardia, então há um elemento de justiça na crise política.
A crise então é uma dor necessária, uma dor que nos fará mais fortes, porque aniquilará seus elementos mais fracos, mais corrompidos, mais pusilânimes.
A violência da crise não atinge apenas o governo e as forças que o apoiam. A oposição também é vítima da violência da crise política, e até em grau maior, visto que a crise a empurra para um golpismo que deve marcá-la por muito tempo.
O aumento da intolerância e da truculência política, cuja expressão mais sinistra são as conspirações judiciais, nas quais direitos são atropelados ou vistos como estorvo, seria um desses intermitentes soluços autoritários que, o tempo inteiro, acometem as sociedades, ou estaríamos às vésperas de uma longa noite fascista?
O mais provável, a meu ver, é que estaríamos na crista de um desses soluços autoritários, e digo isso fazendo um esforço para não estar me iludindo com algum tipo de otimismo escapista.
A conjuntura internacional, mesmo vivendo um momento econômico difícil, não sinaliza nenhuma nova tendência global ao autoritarismo - como acontecia às vésperas da segunda guerra e do pesadelo nazista.
Nos Estados Unidos, Bernie Sanders, autodeclarado socialista, tem vencido as prévias do partido democrata e ganhou a adesão da maioria dos intelectuais e artistas progressistas dos Estados Unidos.
Cuidemos para não sermos dramáticos em demasia.
Vejam o ano de 2015, um período de profunda crise política, risco de ruptura institucional, ocupação das ruas pela direita e início dos trabalhos do congresso mais conservador da nossa história. Com tudo isso, todos os projetos reacionários de Cunha foram derrotados, seja no Senado, seja na votação do veto da presidenta.
A lei do direito de resposta, que é o primeiro passo de uma longa luta popular para reduzir o poder de grupos de mídia consolidados no regime militar, foi aprovada em 2015.
O STF, mesmo na fase triste em que se encontra, intimidado pela mídia, aprovou a proibição do financiamento empresarial de campanha, novidade que o congresso, apesar das pressões midiáticas e da pro-atividade de Eduardo Cunha, não conseguiu derrubar.
Uma análise desapaixonada da conjuntura não pode omitir esses avanços, um tanto incríveis quando pensamos nas dificuldades que eles tiveram que enfrentar para se materializarem.
O astuto Underwood estava certo: há um tipo de dor que nos fortalece.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente: