Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
A melhor forma de avaliar o espetáculo produzido em torno do depoimento de Luiz Inácio Lula da Silva prestado à Polícia Federal, na manhã de hoje, consiste em estudar as circunstâncias de depoimento semelhante prestado por Fernando Henrique Cardoso, oito anos atrás. Em 2005, à mesma PF, quando fazia três anos que passara a faixa ao sucessor, FHC teve direito a um tratamento exemplar pela civilidade e respeito aos direitos humanos. Sequer se pensou em condução coercitiva de FHC por uma razão muito simples: facultou-se ao ex-presidente o direito de ser ouvido em casa.
Em 26 de janeiro daquele ano, três delegados subiram ao 8º andar de um edifício ocupado por Fernando Henrique em Higienópolis, como registra o Termo de Depoimento que ilustra essa reportagem. Ele foi ouvido numa investigação que envolvia um dos episódios mais obscuros de seu governo - contas clandestinas no paraíso fiscal de Nassau-Bahamas, suspeitas de armazenar bilhões de dólares de investidores brasileiros, fossem investimentos legítimos, autorizados por lei, fossem recursos de caixa 2 e, como muitos suspeitavam, dinheiro de corrupção.
O caso tornou-se particularmente complicado, para o governo tucano, depois que se soube que o delegado Vicente Chelotti, diretor geral da Polícia Federal, havia ultrapassado vários degraus da investigação, para chegar ao Caribe, de onde voltou com os documentos originais das contas clandestinas. Investigado pela corregedoria da PF, muito curiosa para entender uma iniciativa fora do padrão, Chelotti disse que havia cumprido uma ordem do presidente da República. Para sanar dúvidas, o delegado indicou o próprio FHC como a testemunha de defesa.
Como fica claro pelo documento publicado nesta página, "o depoente confirma ter determinado a Vicente Chelotti ou alguém de sua inteira confiança, que se deslocasse até Nassau para obter o citado documento, o seu original." Fernando Henrique também confirmou um dos pontos intrigantes do caso: a de que "não fosse dado conhecimento do conteúdo daquele documento para ninguém." Quando os delegados quiseram saber a razão para o segredo, FHC explicou que não queria "dar curso a uma chantagem". Esclareceu que, além de envolver ele mesmo, a "chantagem" poderia implicar "dois ministros de Estado, o governador de São Paulo." Lembrando a morte de Sérgio Motta, um de seus homens de confiança e tesoureiro do PSDB até a morte, em 1998, recordou que, se fosse acusado, este "não poderia defender-se."
Um delegado não se conformou e insistiu na razão do segredo. O "depoente" ampliou os argumentos: "respondeu que sua determinação foi em razão de que os termos daquele papel poderiam induzir a equívocos que causariam problemas políticos e econômicos ao país." O policial perguntou se ele achava que sua preocupação era "preservar os interesses do país." FHC "respondeu que sim." O termo do depoimento encerrou-se poucas linhas depois.
O principal ensinamento do episódio não envolve culpas e suspeitas contra cada um, mas o tratamento diferenciado entre Fernando Henrique e seu sucessor. FHC foi ouvido na tranquilidade de sua casa sobre um depoimento ao qual não poderia se furtar -- pois era testemunha. Também pode alegar razões patrióticas para fazer segredo sobre o conteúdo de contas secretas no exterior. Empregou um diretor-geral da PF para ter certeza de que não haveria vazamentos e ninguém achou que deveria dar maiores explicações a respeito.
Retirado de casa ao primeiro raio de sol, a condução coercitiva de Luiz Inácio Lula da Silva foi o primeiro lance de um conjunto de medidas marcadas pela vontade de produzir espetáculo através da humilhação. Não faz sentido do ponto de vista das garantias fundamentais previstas pela Constituição, já que prestar, ou não depoimento é um direito da defesa, que pode ou não exercê-lo. O raciocínio é simples. Da mesma forma que uma pessoa tem o direito de ficar em silêncio durante um interrogatório, não pode ser obrigada a deslocar-se perante um delegado para prestar explicações que não deseja. Tem todo direito de aguardar, em casa, pelo curso da Justiça.
"Assistimos a uma nova versão de um velho instrumento arbitrário aplicado contra os mais fracos e desprotegidos," afirma um jurista ouvido pelo 247. Ele se refere a velha "prisão para averiguações," um eufemismo empregado para manter pessoas trancafiadas em nenhuma razão plausível, abolido após a democratização.
Ainda que a doutrina mais rigorosa não aceite essa exceções, pois sempre envolve a ameaça de emprego de violência do Estado contra uma pessoa presumidamente inocente, nas investigações policiais é comum aceitar e o uso de "condução coercitiva" quando uma pessoa é convocada e falta ao depoimento sem maiores explicações. Nenhum desses casos poderia ser aplicado a Lula, que nunca deixou de prestar depoimentos sempre que foi chamado --ainda que, em teoria, não fosse obrigado a fazer isso.
Ontem, o argumento empregado pela Polícia Federal para justificar a "condução coercitiva" de Lula era a preocupação com sua segurança. Como mostra a jurisprudência-FHC, se este era o verdadeiro motivo, bastava interrogar o presidente em casa. Possivelmente, em segredo, como também se fez como se fez em janeiro de 2005, no apartamento de Higienópolis. Havia muito mais segurança e risco zero de tensões fora de hora. O problema: e o circo?
Pois é. Se havia uma preocupação com a segurança de Lula, ela não combina com a decisão de conduzir o ex-presidente para prestar depoimento num posto da Polícia Federal no Aeroporto de Congonhas. O local é um conhecido ponto de passagem de uma clientela normalmente adversária dos governos petistas desde que a distribuição de renda tornou as passagens aéreas uma mercadoria acessível aos mais pobres -- e despertou o preconceito dos mais endinheirados, gerando cenas inesquecíveis de xingamentos e desaforos, que alimentaram os tele-jornais pelo dia inteiro.
A melhor forma de avaliar o espetáculo produzido em torno do depoimento de Luiz Inácio Lula da Silva prestado à Polícia Federal, na manhã de hoje, consiste em estudar as circunstâncias de depoimento semelhante prestado por Fernando Henrique Cardoso, oito anos atrás. Em 2005, à mesma PF, quando fazia três anos que passara a faixa ao sucessor, FHC teve direito a um tratamento exemplar pela civilidade e respeito aos direitos humanos. Sequer se pensou em condução coercitiva de FHC por uma razão muito simples: facultou-se ao ex-presidente o direito de ser ouvido em casa.
Em 26 de janeiro daquele ano, três delegados subiram ao 8º andar de um edifício ocupado por Fernando Henrique em Higienópolis, como registra o Termo de Depoimento que ilustra essa reportagem. Ele foi ouvido numa investigação que envolvia um dos episódios mais obscuros de seu governo - contas clandestinas no paraíso fiscal de Nassau-Bahamas, suspeitas de armazenar bilhões de dólares de investidores brasileiros, fossem investimentos legítimos, autorizados por lei, fossem recursos de caixa 2 e, como muitos suspeitavam, dinheiro de corrupção.
O caso tornou-se particularmente complicado, para o governo tucano, depois que se soube que o delegado Vicente Chelotti, diretor geral da Polícia Federal, havia ultrapassado vários degraus da investigação, para chegar ao Caribe, de onde voltou com os documentos originais das contas clandestinas. Investigado pela corregedoria da PF, muito curiosa para entender uma iniciativa fora do padrão, Chelotti disse que havia cumprido uma ordem do presidente da República. Para sanar dúvidas, o delegado indicou o próprio FHC como a testemunha de defesa.
Como fica claro pelo documento publicado nesta página, "o depoente confirma ter determinado a Vicente Chelotti ou alguém de sua inteira confiança, que se deslocasse até Nassau para obter o citado documento, o seu original." Fernando Henrique também confirmou um dos pontos intrigantes do caso: a de que "não fosse dado conhecimento do conteúdo daquele documento para ninguém." Quando os delegados quiseram saber a razão para o segredo, FHC explicou que não queria "dar curso a uma chantagem". Esclareceu que, além de envolver ele mesmo, a "chantagem" poderia implicar "dois ministros de Estado, o governador de São Paulo." Lembrando a morte de Sérgio Motta, um de seus homens de confiança e tesoureiro do PSDB até a morte, em 1998, recordou que, se fosse acusado, este "não poderia defender-se."
Um delegado não se conformou e insistiu na razão do segredo. O "depoente" ampliou os argumentos: "respondeu que sua determinação foi em razão de que os termos daquele papel poderiam induzir a equívocos que causariam problemas políticos e econômicos ao país." O policial perguntou se ele achava que sua preocupação era "preservar os interesses do país." FHC "respondeu que sim." O termo do depoimento encerrou-se poucas linhas depois.
O principal ensinamento do episódio não envolve culpas e suspeitas contra cada um, mas o tratamento diferenciado entre Fernando Henrique e seu sucessor. FHC foi ouvido na tranquilidade de sua casa sobre um depoimento ao qual não poderia se furtar -- pois era testemunha. Também pode alegar razões patrióticas para fazer segredo sobre o conteúdo de contas secretas no exterior. Empregou um diretor-geral da PF para ter certeza de que não haveria vazamentos e ninguém achou que deveria dar maiores explicações a respeito.
Retirado de casa ao primeiro raio de sol, a condução coercitiva de Luiz Inácio Lula da Silva foi o primeiro lance de um conjunto de medidas marcadas pela vontade de produzir espetáculo através da humilhação. Não faz sentido do ponto de vista das garantias fundamentais previstas pela Constituição, já que prestar, ou não depoimento é um direito da defesa, que pode ou não exercê-lo. O raciocínio é simples. Da mesma forma que uma pessoa tem o direito de ficar em silêncio durante um interrogatório, não pode ser obrigada a deslocar-se perante um delegado para prestar explicações que não deseja. Tem todo direito de aguardar, em casa, pelo curso da Justiça.
"Assistimos a uma nova versão de um velho instrumento arbitrário aplicado contra os mais fracos e desprotegidos," afirma um jurista ouvido pelo 247. Ele se refere a velha "prisão para averiguações," um eufemismo empregado para manter pessoas trancafiadas em nenhuma razão plausível, abolido após a democratização.
Ainda que a doutrina mais rigorosa não aceite essa exceções, pois sempre envolve a ameaça de emprego de violência do Estado contra uma pessoa presumidamente inocente, nas investigações policiais é comum aceitar e o uso de "condução coercitiva" quando uma pessoa é convocada e falta ao depoimento sem maiores explicações. Nenhum desses casos poderia ser aplicado a Lula, que nunca deixou de prestar depoimentos sempre que foi chamado --ainda que, em teoria, não fosse obrigado a fazer isso.
Ontem, o argumento empregado pela Polícia Federal para justificar a "condução coercitiva" de Lula era a preocupação com sua segurança. Como mostra a jurisprudência-FHC, se este era o verdadeiro motivo, bastava interrogar o presidente em casa. Possivelmente, em segredo, como também se fez como se fez em janeiro de 2005, no apartamento de Higienópolis. Havia muito mais segurança e risco zero de tensões fora de hora. O problema: e o circo?
Pois é. Se havia uma preocupação com a segurança de Lula, ela não combina com a decisão de conduzir o ex-presidente para prestar depoimento num posto da Polícia Federal no Aeroporto de Congonhas. O local é um conhecido ponto de passagem de uma clientela normalmente adversária dos governos petistas desde que a distribuição de renda tornou as passagens aéreas uma mercadoria acessível aos mais pobres -- e despertou o preconceito dos mais endinheirados, gerando cenas inesquecíveis de xingamentos e desaforos, que alimentaram os tele-jornais pelo dia inteiro.
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