Por Saul Leblon, no site Carta Maior:
Duas tentativas seguidas de prender Lula em um intervalo de menos de uma semana (Moro, em 04-03; Conserino, em 10-03).
Invasão de uma plenária do PT no Sindicato dos Metalúrgicos de Diadema nesta 6ª feira, 11/03, por destacamento da PM fortemente armado.
Ataques com pixações na sede da UNE e do PCdoB, faixas de apoio a Lula queimadas no Rio.
Editoriais de órgãos de imprensa, a exemplo do do Estadão mimetizando o ‘Basta’ do Correio da Manhã, de 31 de março de 1964.
Manifestações de entidades empresariais convocando marchas pelo golpe nas grandes capitais do país neste domingo…
O relógio da história apertou o passo no Brasil.
Os ponteiros apontam para o golpe de Estado, dê-se a isso o nome que se quiser.
Moro ou Conserino, não importa o quão patético seja um, e bonapartista se avoque o outro: as disputas entre facções e centuriões para saber quem arrebatará o troféu do butim - a cabeça de Lula e o mandato de Dilma - não mudam a qualidade do enredo.
De diferentes ângulos da economia e da democracia emergem avisos de saturação estrutural.
O desgaste intrínseco a essa transição foi catalisado e magnificado pela ação de um conservadorismo inconsolável com a derrota de seu projeto em 2014 . Mas em certa medida também pelas escolhas equivocadas do governo diante da travessia.
O conjunto acelerou o passo da história e conduziu o impasse ao ponto em que chegamos.
Massas de interesses antagônicos transbordam pelos anteparos que separam a democracia de um regime de fato.
A indivisa conjunção entre justiça e política nas ações da Lava Jato reflete essa dissolução, reafirmada nas palavras de ordem trazidas às ruas e às manchetes sulforosos deste domingo de março, 52 anos depois daquele de 1964.
Vive-se a antessala de uma nova ruptura.
Ela soterrará as respostas progressistas que insistirem em ter como referência o Brasil pactuado nas urnas de outubro de 2014.
Esse Brasil não existe mais.
Para afrontar o golpe será preciso redesenhar um outro.
Um recomeço indispensável inclui redesenhar a organização atomizada do campo progressista e fundir direções ainda desprovidas de um comitê centralizado.
Mas, sobretudo: faze-lo a tempo de agir - o que significa imediatamente já, hoje em convocação expedita; ou será tarde demais.
Os que ainda hesitam devem pesar o custo de sua autopreservação na balança da história.
A troca do sectarismo por uma frente ampla progressista mudaria a correlação de forças nas ruas.
Um comando unificado ampliaria a margem de manobra para repactuar as bases do desenvolvimento, sem retrocesso democrático.
Trata-se do futuro. De décadas talvez.
Afogar-se abraçado a esquematismos escravizantes é a punição da história a inação radical.
Disputar a sorte do país com o golpe, em contrapartida, não autoriza ilusões de consensos entre interesses antagônicos.
Quando nenhum dos lados dispõe de força e consentimento para impor a sua hegemonia, a alternativa ao limbo corrosivo consiste em trazer os conflitos e pendências para uma mesa repactuação do passo seguinte do desenvolvimento.
Apesar do alarido massacrante da mídia e da Paulista ainda é disso que se trata hoje.
Estamos falando de metas, salvaguardas e concessões politicamente negociadas em grandes câmaras setoriais; que preservem direitos e hierarquizem conquistas; que fixem compromissos para preços e salários; para o emprego e o investimento; para o juro e o equilíbrio fiscal; para a produtividade e o PIB; que estabeleçam parâmetros de curto, médio e longo prazo para a retomado do investimento, do crédito e da infraestrutura, socializando macrodecisões, de modo a assegurar um fôlego persistente à demanda agregada que alimenta o crescimento.
Estamos falando em retirar a sociedade brasileira da areia movediça em que se encontra e para a qual não há alternativa da ‘ciência econômica’ vendida pelos charlatões do mercado.
Ninguém tem tanto interesse nisso quanto as famílias assalariadas e os milhões de brasileiros pobres que avançaram pela primeira vez da soleira da porta para ingressar no mercado e na cidadania desde 2003.
A economia brasileira não tem problemas insolúveis.
Ao contrário, dispõe de alavancas potenciais –mercado interno, pre-sal, agronegócio e fronteira de infraestrutura - para assegurar uma reordenação bem sucedida de ciclo de crescimento.
Esta não ocorrerá, porém, sem um novo arcabouço político à altura das tarefas postas pela transição em curso.
Duas ilusões devem ser afastadas nesse percurso.
O empresariado precisa saber que não existem condições históricas para repetir um ciclo de expansão ancorado no arrocho pós golpe de 1964; tampouco na onda de privatizações dos anos 90.
A transição rural/urbana impulsionada pela ditadura militar, a partir da modernização conservadora do campo, criou uma irrepetível válvula de escape social.
Cerca de 30 milhões de pessoas foram deslocadas da área rural para as periferias dos grandes centros urbanos em duas décadas.
Nenhum país rico concluiu essa transição em tão curto espaço de tempo.
A singularidade brasileira gerou um custo ainda não liquidado, cada vez mais visível e audível: periferias conflagradas em cidades sem cidadania, nem infraestrutura.
Ela deu um amortecedor de mobilidade social à ditadura.ao custo de marmorizar o território, a economia e a democracia com um grau de desigualdade ferozmente preservado pelas comportas de distribuição de renda monopolizadas pelas elites.
Hoje o Brasil figura como a nação mais urbanizada entre os gigantes do planeta, com 85% da população nas cidades.
As periferias estão saturadas; as cidades rugem por melhores condições de vida; a carência de serviços de saúde, educação, transporte e lazer cataliza as aspirações pelo passo seguinte da nossa história.
Exige mais Estado e recursos do que o êxodo rural promovido nos anos 60.
Não há fronteira geográfica ‘virgem’ para amortecer essa panela de pressão no interior do espaço urbano’. E tampouco no campo: a luta pela reforma agrária terá que reinventar-se em torno da agroecologia para simultaneamente produzir alimentos e cidadania e preservar os recursos que formam a base da vida na terra.
Erra quem acha que um novo estirão de entrega do patrimônio público seria suficiente para contornar as pressões desse vagalhão histórico.
Privatizações concentram ainda mais a renda; definham adicionalmente o fraco poder indutor do Estado brasileiro.
A fronteira que resta a desbravar é a do desenvolvimento inclusive.
Mas esta também requer um modelo distinto daquele seguido nos últimos 12 anos, que também se esgotou.
A conjunção favorável de cotações recordes de commodities, farta liquidez internacional e forte expansão do comércio deixou de existir e não ressurgirá tão cedo.
Ela favoreceu um entroncamento de intensa circulação de capitais na economia brasileira por mais de uma década.
O fluxo novo viabilizou a redistribuição de um pedaço da riqueza na forma de ganhos reais de salários, políticas sociais emancipadoras, pleno emprego, crédito ao consumo e maiores oportunidades à juventude.
Hoje, a riqueza nova capaz de estreitar o abismo social é o pre-sal.
A classe média da Paulista não sabe porque não é informada pelos seus colunistas de estimação.
Mas é no fundo do mar que se encontra a brecha histórica para que ela possa um dia viver em uma sociedade mais segura, um país educado e convergente --sem que para isso seja preciso uma revolução sangrenta.
Não dispensa, todavia, os conflitos inerentes à construção de uma democracia social no coração da América Latina.
Se o regime de partilha não for revogado, como quer Serra, no médio e longo o Brasil terá condições de assegurar aos seus 204 milhões de habitantes um padrão digno de saúde pública e uma educação gratuita de boa qualidade, ademais de dispor de um derradeiro impulso industrializante para sanar seu hiato de alta tecnologia e competitividade internacional.
As urgências do presente, porém, não podem esperar pelo fluxo incremental da riqueza de longo prazo, que lhes assegura um horizonte promissor.
Sua mitigação imediata terá que ser contemplada pela taxação do patrimônio já sedimentado no alto da pirâmide de renda.
Os alvo são as grandes fortunas, os bancos, os dividendos, os lucros financeiros, as remessas e demais ganhos de capitais
A opção a isso é o caos.
A reedição de um novo ‘1964’ exigiria uma octanagem fascista drasticamente superior à original, para prover o aparelho de Estado do poder de coerção capaz de devolver a pasta de dente ao tubo.
Não é pouco o que está em jogo.
Trata-se de comprimir o ensaio de mobilidade social do ciclo petista de volta aos becos e barracos de periferias desprovidas de presente e de futuro.
E é sob esse pano de fundo que deve ser avaliada participação de Lula em um ministério do governo Dilma.
Não se trata apenas de blindar o ex-presidente da matilha que o enxerga como troféu de caça.
Mas de reconhecer nele o pilar indispensável de uma travessia cujo exito requer a mobilização de todas as forças e interesses que enxergam os riscos - e as oportunidades - da encruzilhada atual.
Lula pode ser a peça-chave na construção desse pacto, desde que integrado a um ministério que antecipe em sua composição a pluralidade capaz de devolver à sociedade o comando do seu destino.
Nunca é demais recordar, era assim que Celso Furtado descrevia o sentido profundo da palavra desenvolvimento, indissociável –no seu entender-- de democracia, soberania, engajamento e justiça social.
O resto é arrocho e recessão. Ou golpe.
Duas tentativas seguidas de prender Lula em um intervalo de menos de uma semana (Moro, em 04-03; Conserino, em 10-03).
Invasão de uma plenária do PT no Sindicato dos Metalúrgicos de Diadema nesta 6ª feira, 11/03, por destacamento da PM fortemente armado.
Ataques com pixações na sede da UNE e do PCdoB, faixas de apoio a Lula queimadas no Rio.
Editoriais de órgãos de imprensa, a exemplo do do Estadão mimetizando o ‘Basta’ do Correio da Manhã, de 31 de março de 1964.
Manifestações de entidades empresariais convocando marchas pelo golpe nas grandes capitais do país neste domingo…
O relógio da história apertou o passo no Brasil.
Os ponteiros apontam para o golpe de Estado, dê-se a isso o nome que se quiser.
Moro ou Conserino, não importa o quão patético seja um, e bonapartista se avoque o outro: as disputas entre facções e centuriões para saber quem arrebatará o troféu do butim - a cabeça de Lula e o mandato de Dilma - não mudam a qualidade do enredo.
Ingressamos em um período em que os fatos caminham à frente das ideias.
De diferentes ângulos da economia e da democracia emergem avisos de saturação estrutural.
Um ciclo de desenvolvimento se esgotou; outro precisa ser construído.
O desgaste intrínseco a essa transição foi catalisado e magnificado pela ação de um conservadorismo inconsolável com a derrota de seu projeto em 2014 . Mas em certa medida também pelas escolhas equivocadas do governo diante da travessia.
O conjunto acelerou o passo da história e conduziu o impasse ao ponto em que chegamos.
Massas de interesses antagônicos transbordam pelos anteparos que separam a democracia de um regime de fato.
A indivisa conjunção entre justiça e política nas ações da Lava Jato reflete essa dissolução, reafirmada nas palavras de ordem trazidas às ruas e às manchetes sulforosos deste domingo de março, 52 anos depois daquele de 1964.
Vive-se a antessala de uma nova ruptura.
Ela soterrará as respostas progressistas que insistirem em ter como referência o Brasil pactuado nas urnas de outubro de 2014.
Esse Brasil não existe mais.
Para afrontar o golpe será preciso redesenhar um outro.
Um recomeço indispensável inclui redesenhar a organização atomizada do campo progressista e fundir direções ainda desprovidas de um comitê centralizado.
Mas, sobretudo: faze-lo a tempo de agir - o que significa imediatamente já, hoje em convocação expedita; ou será tarde demais.
Os que ainda hesitam devem pesar o custo de sua autopreservação na balança da história.
A troca do sectarismo por uma frente ampla progressista mudaria a correlação de forças nas ruas.
Um comando unificado ampliaria a margem de manobra para repactuar as bases do desenvolvimento, sem retrocesso democrático.
Trata-se do futuro. De décadas talvez.
Afogar-se abraçado a esquematismos escravizantes é a punição da história a inação radical.
Disputar a sorte do país com o golpe, em contrapartida, não autoriza ilusões de consensos entre interesses antagônicos.
Quando nenhum dos lados dispõe de força e consentimento para impor a sua hegemonia, a alternativa ao limbo corrosivo consiste em trazer os conflitos e pendências para uma mesa repactuação do passo seguinte do desenvolvimento.
Apesar do alarido massacrante da mídia e da Paulista ainda é disso que se trata hoje.
Estamos falando de metas, salvaguardas e concessões politicamente negociadas em grandes câmaras setoriais; que preservem direitos e hierarquizem conquistas; que fixem compromissos para preços e salários; para o emprego e o investimento; para o juro e o equilíbrio fiscal; para a produtividade e o PIB; que estabeleçam parâmetros de curto, médio e longo prazo para a retomado do investimento, do crédito e da infraestrutura, socializando macrodecisões, de modo a assegurar um fôlego persistente à demanda agregada que alimenta o crescimento.
Estamos falando em retirar a sociedade brasileira da areia movediça em que se encontra e para a qual não há alternativa da ‘ciência econômica’ vendida pelos charlatões do mercado.
Ninguém tem tanto interesse nisso quanto as famílias assalariadas e os milhões de brasileiros pobres que avançaram pela primeira vez da soleira da porta para ingressar no mercado e na cidadania desde 2003.
A economia brasileira não tem problemas insolúveis.
Ao contrário, dispõe de alavancas potenciais –mercado interno, pre-sal, agronegócio e fronteira de infraestrutura - para assegurar uma reordenação bem sucedida de ciclo de crescimento.
Esta não ocorrerá, porém, sem um novo arcabouço político à altura das tarefas postas pela transição em curso.
Duas ilusões devem ser afastadas nesse percurso.
O empresariado precisa saber que não existem condições históricas para repetir um ciclo de expansão ancorado no arrocho pós golpe de 1964; tampouco na onda de privatizações dos anos 90.
A transição rural/urbana impulsionada pela ditadura militar, a partir da modernização conservadora do campo, criou uma irrepetível válvula de escape social.
Cerca de 30 milhões de pessoas foram deslocadas da área rural para as periferias dos grandes centros urbanos em duas décadas.
Nenhum país rico concluiu essa transição em tão curto espaço de tempo.
A singularidade brasileira gerou um custo ainda não liquidado, cada vez mais visível e audível: periferias conflagradas em cidades sem cidadania, nem infraestrutura.
Ela deu um amortecedor de mobilidade social à ditadura.ao custo de marmorizar o território, a economia e a democracia com um grau de desigualdade ferozmente preservado pelas comportas de distribuição de renda monopolizadas pelas elites.
Hoje o Brasil figura como a nação mais urbanizada entre os gigantes do planeta, com 85% da população nas cidades.
As periferias estão saturadas; as cidades rugem por melhores condições de vida; a carência de serviços de saúde, educação, transporte e lazer cataliza as aspirações pelo passo seguinte da nossa história.
Exige mais Estado e recursos do que o êxodo rural promovido nos anos 60.
Não há fronteira geográfica ‘virgem’ para amortecer essa panela de pressão no interior do espaço urbano’. E tampouco no campo: a luta pela reforma agrária terá que reinventar-se em torno da agroecologia para simultaneamente produzir alimentos e cidadania e preservar os recursos que formam a base da vida na terra.
Erra quem acha que um novo estirão de entrega do patrimônio público seria suficiente para contornar as pressões desse vagalhão histórico.
Privatizações concentram ainda mais a renda; definham adicionalmente o fraco poder indutor do Estado brasileiro.
A fronteira que resta a desbravar é a do desenvolvimento inclusive.
Mas esta também requer um modelo distinto daquele seguido nos últimos 12 anos, que também se esgotou.
A conjunção favorável de cotações recordes de commodities, farta liquidez internacional e forte expansão do comércio deixou de existir e não ressurgirá tão cedo.
Ela favoreceu um entroncamento de intensa circulação de capitais na economia brasileira por mais de uma década.
O fluxo novo viabilizou a redistribuição de um pedaço da riqueza na forma de ganhos reais de salários, políticas sociais emancipadoras, pleno emprego, crédito ao consumo e maiores oportunidades à juventude.
Hoje, a riqueza nova capaz de estreitar o abismo social é o pre-sal.
A classe média da Paulista não sabe porque não é informada pelos seus colunistas de estimação.
Mas é no fundo do mar que se encontra a brecha histórica para que ela possa um dia viver em uma sociedade mais segura, um país educado e convergente --sem que para isso seja preciso uma revolução sangrenta.
Não dispensa, todavia, os conflitos inerentes à construção de uma democracia social no coração da América Latina.
Se o regime de partilha não for revogado, como quer Serra, no médio e longo o Brasil terá condições de assegurar aos seus 204 milhões de habitantes um padrão digno de saúde pública e uma educação gratuita de boa qualidade, ademais de dispor de um derradeiro impulso industrializante para sanar seu hiato de alta tecnologia e competitividade internacional.
As urgências do presente, porém, não podem esperar pelo fluxo incremental da riqueza de longo prazo, que lhes assegura um horizonte promissor.
Sua mitigação imediata terá que ser contemplada pela taxação do patrimônio já sedimentado no alto da pirâmide de renda.
Os alvo são as grandes fortunas, os bancos, os dividendos, os lucros financeiros, as remessas e demais ganhos de capitais
A opção a isso é o caos.
A reedição de um novo ‘1964’ exigiria uma octanagem fascista drasticamente superior à original, para prover o aparelho de Estado do poder de coerção capaz de devolver a pasta de dente ao tubo.
Não é pouco o que está em jogo.
Trata-se de comprimir o ensaio de mobilidade social do ciclo petista de volta aos becos e barracos de periferias desprovidas de presente e de futuro.
E é sob esse pano de fundo que deve ser avaliada participação de Lula em um ministério do governo Dilma.
Não se trata apenas de blindar o ex-presidente da matilha que o enxerga como troféu de caça.
Mas de reconhecer nele o pilar indispensável de uma travessia cujo exito requer a mobilização de todas as forças e interesses que enxergam os riscos - e as oportunidades - da encruzilhada atual.
Lula pode ser a peça-chave na construção desse pacto, desde que integrado a um ministério que antecipe em sua composição a pluralidade capaz de devolver à sociedade o comando do seu destino.
Nunca é demais recordar, era assim que Celso Furtado descrevia o sentido profundo da palavra desenvolvimento, indissociável –no seu entender-- de democracia, soberania, engajamento e justiça social.
O resto é arrocho e recessão. Ou golpe.
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