domingo, 13 de março de 2016

Um golpe travestido de legalidade

Por Celso Vicenzi, em seu blog:

Dizer que há um golpe jurídico-midiático em ação no Brasil pode parecer exagero para boa parte da população acostumada a se informar com Veja, Globo e outros veículos tradicionais da mídia. Mas não há como esconder a perseguição obsessiva de um juiz de primeira instância para encontrar indícios de corrupção contra petistas, contra Dilma e Lula e, ao mesmo tempo, uma profunda apatia e omissão para investigar, por exemplo, Aécio Neves, delatado cinco vezes, ou FHC e seu instituto, que também recebeu verbas de empreiteiras, ou Eduardo Cunha, cujas provas de corrupção vieram até mesmo com o timbre do governo suíço.

A lista seria interminável. Há indícios de corrupção que, sabendo-se quem são os possíveis beneficiados, jamais sobre eles ou elas a Justiça fará qualquer esforço para levar adiante uma investigação. Se Maluf deixar o país pode ser preso. No Brasil, a nossa douta e isenta justiça – doida para prender o Lula – garante a segurança dele. Isso já diz muito sobre o nosso sistema Judiciário.

Se a democracia brasileira, por vícios e exageros de setores que agem seletivamente, não é confiável, o que resta ao PT, Dilma e Lula, senão convocar a população para reagir ao golpe nas ruas? Os exageros e a partidarização de setores do Ministério Público, do Judiciário, da Polícia Federal e da mídia, empurrados pelos donos do capital e setores reacionários do país, mostram, a cada dia, que jogar no campo do adversário, em que um juiz manipula o resultado e a mídia distorce os fatos e acoberta outros, é saber-se, de antemão, derrotado.

Depois do golpe de 64, com a ditadura ditando as regras, cada vez mais restritivas e violentas, não restou outra opção senão enfrentar o inimigo nas ruas – e até mesmo na clandestinidade. Milhares de brasileiros foram espancados, torturados e mortos, para que fosse restabelecida a democracia. Pagamos um preço muito caro por algo que muitos parecem dispostos a desprezar, querendo que decisões isoladas, de grupos, de corporações, tenham mais peso do que a vontade da maioria. 

Vivemos o mais longo período democrático de nossa história e, no entanto, há setores inconformados por não conseguirem angariar os votos necessários para governar o país. Partem para retaliações sob pretextos que só se aplicam aos inimigos. E resolvem “sequestrar” a democracia para uso particular. Grupos políticos, econômicos e sociais que não convenceram a população sobre as vantagens de seus projetos, agora querem o poder, custe o que custar. Pode custar vidas, pode custar caro.

É muito ruim que por abusos e omissões de setores das principais instituições que deveriam ser fiadores da democracia, o país se veja refém, principalmente, das ações de um juiz de primeira instância e de uma mídia oligopolizada, capitaneada pela Rede Globo, que dia após dia não escondem a ousadia de seus projetos de derrubada de um governo eleito legitimamente por 54 milhões de brasileiros e brasileiras. Que o façam supostamente respaldados em lei, não os tornam menos conspiradores. Porque o objetivo político é evidente.

Há um clima de êxtase após a medida coercitiva que levou Lula a depor e proporcionar o espetáculo midiático necessário para insuflar boa parte da população a ir às ruas domingo, 13 de março, exigir cadeia para o ex-presidente, impeachment da presidenta Dilma e o fim do PT. Fora a pauta que já se tornou tradição, pedindo a volta da ditadura, morte aos inimigos e um festival de besteiras alçado à condição de reivindicação política.

Do ponto de vista das investigações, o “ensaio” da prisão de Lula foi apenas cortina de fumaça para encobrir a verdadeira intenção de proporcionar farto material para os meios de comunicação convencerem a opinião pública a engrossar as manifestações do dia 13. E tentar fixar na mente de milhões de brasileiros que se a polícia “prendeu” Lula é porque algo de errado ele fez, embora não se tenha provado nada ainda contra o homem mais investigado de todos os tempos no Brasil.

Não se espere que essas pessoas que agem com a sensatez de um torcedor de Fla-Flu saibam discernir os perigos que se descortinam mais à frente, nessa por demais arriscada e ousada tentativa de um golpe travestido de legalidade. Ainda mais quando são estimulados por juízes e promotores que também agem com desatino e imprudência, convencidos de que vazar delações “premiadas” (o nome diz muito!) para a imprensa condenar previamente investigados em manchetes garrafais seja uma questão de justiça.

O regime democrático só se sustenta, no longo prazo, quando os cidadãos e cidadãs reconhecem a legitimidade do pacto de equilíbrio entre os três poderes. De que as regras do jogo valem para todos. E não serão atropeladas por interesses de grupos. No entanto, cada vez mais, em boa parte dos países – Brasil incluído – a democracia ainda não cumpre a tarefa de oferecer as mesmas oportunidades aos cidadãos e há uma enorme distância a separar ricos e pobres. Cada vez mais, grupos econômicos têm um peso desproporcional na definição dos votos que saem das urnas. Democracia não pode ser o regime que elege, pelo voto popular, os corruptos escolhidos e financiados previamente pelos donos do capital, para atender seus interesses.

Numa democracia assim, que não consegue dar dignidade e oportunidades iguais para a população, em que o Parlamento se mostra distante dos anseios da maioria, em que o Judiciário pouco contribui para que haja mais justiça, em que o Executivo não implementa políticas públicas que diminuam a desigualdade social, a tendência é que boa parte da sociedade também não se sinta comprometida com a Nação, pois identifica nesse modelo de democracia, um projeto viciado que só favorece os interesses de uma elite que nunca deixou de mandar no Brasil.

E quando parcela significativa da população descobre que há instituições dispostas a anular a vontade soberana do povo, por meio de atos de força, embora dissimulados em aparente legalidade, só resta a opção de ocupar novamente as ruas e confrontar o que não é justo, inclusive as leis. Montesquieu já sentenciara que “uma coisa não é justa porque é lei, mas deve ser lei porque é justa”.

O risco de desestabilização política, com consequências econômicas e sociais graves, não deve ser subestimado. As principais instituições democráticas precisam assumir, com urgência, a responsabilidade de evitar que se busque a ruptura política por meio de um golpe jurídico-midiático, que mesmo travestido de uma suposta legalidade, não deixa de ser o que é, um ato de força contra a vontade soberana de milhões de brasileiros e brasileiras que foram as urnas. O golpe, que também interessa a muitas potências estrangeiras de olho nas riquezas do Brasil, não é apenas contra Dilma, Lula ou o PT. O golpe é contra a democracia, a soberania e o futuro do país.

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