quinta-feira, 7 de abril de 2016

A desordem do discurso midiático

Por Eduardo Silveira de Menezes, no site Sul-21:

Para ficar “bem informado” sobre a crise política, no Brasil, não se pode titubear. As notícias são atualizadas minuto a minuto. No Facebook, curtidas – e suas variáveis –, comentários e compartilhamentos acirram o debate pautado pelos meios de comunicação. A rede social de Mark Zuckerberg transformou-se no principal espaço de reverberação da agenda midiática brasileira. Nesse ambiente narcísico e de autoafirmação, as barras de rolagem passeiam de cima para baixo como se estivessem à procura de defeitos aparentes no dizer do “outro”.

São ofensas e acusações de lado a lado. Ambos, no entanto, parecem não se dar por conta de que os políticos – sejam os do governo ou da oposição – não ocupam cargos públicos por obra do destino. A insatisfação com os poderes Executivo e Legislativo é, antes de tudo, um incômodo com o reflexo mais nítido da incapacidade dos eleitores brasileiros em compreender como são produzidos os discursos, sobretudo os midiáticos.

Em meados do século VI, na Grécia, o discurso considerado verdadeiro era aquele sob o qual todos deveriam submeter-se. Não havia dúvidas. Tratava-se de um discurso pronunciado apenas por quem tinha o “direito à palavra”. Exercia-se, desse modo, um poder incontestável. Um século mais tarde, “a verdade” deixou de relacionar-se com a preocupação sobre o que o “discurso fazia” e deslocou-se para o âmbito do que o “discurso dizia”. Uma passagem que transita do valor atribuído ao ritual enunciativo para o próprio enunciado. 

Em “A ordem do discurso”, Foucault chama a atenção para esse momento histórico. O pensamento do autor pode ser bastante elucidativo sobre como está sendo moldado o discurso midiático no Brasil, uma vez que, as informações consideradas verdadeiras não podem mais ser concebidas como aquelas que são “desejáveis”, e sim como exercício de poder. A vontade de “dizer a verdade” possui, portanto, um saber em potencial, mas que está longe de ser a verdade absoluta e inquestionável.

Monólogo midiático

Com os novos hábitos de adquirir conhecimento e informação – de forma difusa e pouco aprofundada – estão sendo criados guetos cognitivos. São pequenas ilhas, onde cada um – senhor de si e das suas verdades – utiliza tão somente o conhecimento empírico para julgar os fatos. Apoiadores do governo e da oposição parecem ter respostas para todas as perguntas, mesmo que não exista, de fato, nenhum diálogo entre eles. Contudo, conforme comprovam as diferentes escolas de análise do discurso, não é possível existir qualquer sentido nos fatos do cotidiano sem o reconhecimento da existência do “outro”, sem levar em conta a alteridade.

Desconsiderando a heterogeneidade do seu público, os grandes grupos de mídia estão se especializando em difundir uma suposta verdade, que seria resultante de um processo de desordem do discurso. Os sintomas desse processo são bastante evidentes. Quando as emissoras de TV se utilizam de critérios seletivos para difundir apenas parte de todo o esquema ilegal de financiamento do sistema partidário-eleitoral no Brasil, em curso desde a década de 1980, cria-se a ilusão da evidência sobre a verdade. Não se pode dizer que a mídia segrega informações complementares desse processo; afinal, a lista da Odebrecht foi amplamente divulgada e pode ser uma pista sobre o modus operandi da forma ilegítima como são negociados favores políticos e econômicos no Brasil. 

No entanto, sem contextualizar os acontecimentos e sem dar a dimensão histórica do problema, os grandes grupos de comunicação agem de forma irresponsável e contribuem para a desorganização do discurso. A prática é simples. Selecionam-se os fatos que, à luz da visão ideológica de cada empresa, merecem contextualização, criando, com isso, uma sensação de que o produto informativo mais importante é o que recebe uma cobertura mais apurada.

Falta contextualização

Foi assim que, durante semanas, a Rede Globo repercutiu, de forma sistemática, supostas irregularidades envolvendo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Contou-se, em detalhes, como teria se dado a negociação para a compra de um apartamento triplex, no Guarujá (SP), que pertenceria à família do ex-presidente. Além disso, destacou-se o processo de reforma de um sítio, em Atibaia (SP), que pertenceria a dois sócios de Fábio Luís Lula da Silva, filho mais velho do líder petista. Os dois empreendimentos estão sob investigação da Justiça, pois teriam sido bancados por um consórcio de empresas investigadas na Operação Lava Jato. 

Essas informações são de conhecimento público e, de fato, devem ser divulgadas e problematizadas. Mas chama a atenção que, até agora, não haja a mesma amplitude na cobertura das investigações envolvendo lideranças políticas da oposição. Afinal, conforme reconheceu o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) em seu livro “Diários da Presidência”, desde a década de 1990 já havia ciência das operações ilícitas que estavam sendo praticadas na Petrobras.

É preciso refletir, portanto, sobre as perguntinhas básicas de todo processo de produção da notícia – presentes no chamado lead –; isto é, deve-se questionar, sem receio, sobre o momento em que teve início esse esquema de corrupção e o porquê de não ter sido investigado até o presente momento. Interessa também, de modo particular, entender como e por que se forma, no imaginário do senso comum, uma ideia inequívoca de verdade a partir de uma narrativa descontextualizada e partidarizada. Aí talvez esteja a principal pista sobre o que está em jogo a partir da circulação do discurso midiático nas redes sociais. 

Mais uma vez com base no que diz Foucault, pode-se afirmar que os usuários reverberam meias verdades, pois, motivados pela dinâmica da rede, estão desejosos de exercer poder, mesmo sem levar em conta o contraditório. Esse poder – uma ilusão de ter o direito à palavra – só se consagra na relação com o outro, mas não pertence a nenhum dos dois, pois já existe, na mídia, antes mesmo de ser transformado em postagem no Facebook. Não seria, desta forma, um saber legítimo, pois não é fruto do embate de ideias e sim mera reprodução aleatória do modo particular como um determinado grupo social julga os fatos.

É possível perceber nitidamente essa desorganização discursiva quando, por exemplo, alguém defende o impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT) alegando ser ela “corrupta” ou “defensora de bandido”. Tais argumentos são fruto de uma imagem construída por meio de enunciados repetidos a exaustão pelos grandes grupos de mídia, sem a devida problematização. Esse olhar enviesado, quando ganha o ambiente das redes sociais, faz com que muitos acreditem, equivocadamente, que a atual presidente estaria sendo julgada por corrupção. É um equívoco grave, que revela uma péssima cobertura dos acontecimentos. 

Deveria estar claro para toda a sociedade que não recaem sobre a atual mandatária nenhuma suspeita de desvio de recursos públicos ou enriquecimento ilícito. A discutível acusação sobre um suposto crime de responsabilidade – motivo do pedido de impeachment na Câmara dos Deputados – não está de modo algum relacionada às investigações da Lava Jato, mas muitos nem mesmo sabem disso. Assim, é possível constatar, de modo preocupante, que, a desordem discursiva promovida pela grande mídia está alienando justamente os que desejam atingir a verdade, pois os deixa incapazes de compreender que o poder legítimo só se exerce com respeito à ordem democrática.

* Eduardo Silveira de Menezes é jornalista e doutorando em Letras pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel).

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