Por Paulo Kliass, na revista Caros Amigos:
A tentativa golpista em curso e o processo de impeachment estão ancorados na ampla campanha desenvolvida pelos grandes meios de comunicação contra a corrupção. De acordo com a narrativa consensuada de forma quase unânime entre os principais órgãos de imprensa, tudo teria começado em 2003, quando o PT chegou ao governo federal pelo voto da maioria da população. Assim, de acordo com tal visão, repetida à exaustão para todos os cantos, os períodos anteriores da história de nosso país não guardariam nenhum registro a respeito de casos de malversação de recursos públicos.
A estratégia atual guarda bastante semelhança com outros momentos da vida política brasileira. O recurso à demonização moralista da denúncia estava presente no início da década de 1950 e envolvia o Presidente Getúlio Vargas. A radicalização do discurso da direita naquele momento era verbalizada pela UDN e repercutida por jornais, rádios e a incipiente televisão. Uma década mais tarde, o mesmo tipo de campanha passa a ser orquestrada contra o mandato de João Goulart.
Sem a coragem política para enfrentar a essência das políticas desenvolvimentistas levadas a cabo por esses governos de forte inspiração popular, a opção dos golpistas foi sempre o ataque pelo discurso moral e ético. E nesse contexto, a denúncia contra a corrupção se revelava extremamente eficiente para a tentativa de desestabilização dos governos legitimamente eleitos.
Não foi por mero acaso que o candidato Aécio Neves, muitas décadas mais tarde, tenha focado sua campanha oposicionista em outubro de 2014 utilizando também o mote do “mar de lama”. Trata-se de uma acusação fartamente utilizada pelas forças conservadoras nas tentativas de desestabilização dos governos de Getúlio e Jango.
A bem verdade, é importante reconhecer que o recurso ao tema da corrupção não é exclusividade da direita. Durante a época da ditadura e mesmo depois do processo de democratização as forças de esquerda também lançaram mão desse expediente, na tentativa de criticar os governos de plantão. Essa contradição, aliás, tem sido apontada por diversos analistas como uma das dificuldades que as forças progressistas vêm enfrentando para operar politicamente uma volta por cima nos momentos posteriores a 2003, com as denúncias envolvendo o chamado escândalo do mensalão e a operação Lava Jato.
Incorporar a consciência de que a crítica superficial à corrupção envolve elementos inequívocos do campo do moralismo não pode, por outro lado, deixar nenhuma margem a qualquer tipo de conivência com tais práticas ilegais e ilegítimas. Promover ato de natureza corrupta ou corruptora é crime - ponto final. E como tal deve ser avaliado e condenado do ponto de vista político. Simples assim!
Na verdade, o problema a ser enfrentado é outro. Trata-se de ampliar o conceito do que seja compreendido como prática de corrupção, uma vez que existem entre nós inúmeras formas de apropriação privada de recursos públicos que são encaradas com certa “naturalidade” pela própria sociedade. Essa banalização da privatização do patrimônio público ou das decisões em esfera pública favorecendo determinados grupos do setor privado acaba por ofuscar uma série de procedimentos que são essencialmente assemelhados à corrupção.
Nos tempos em que a FIESP sai às ruas com sua campanha demagógica e oportunista com a imagem do pato, o que precisa ser denunciado é que o problema não é a alta carga tributária, que supostamente existiria em nosso País. Ao contrário, o que mais chama a atenção são os elevados índices de sonegação tributária praticada pelas empresas em geral, com maior destaque para os grandes conglomerados. Essa forma muito particular de “corrupção de fato” vai desde a sofisticação dos instrumentos do chamado planejamento tributário até a sonegação pura e simples, que geralmente conta com a impunidade e/ou a benevolência de agentes públicos envolvidos com tal prática criminosa.
A campanha derrotada de Aécio Neves em outubro de 2014 e o programa do PMDB “A ponte para o futuro” são explícitos na defesa da retomada do processo de privatização como saída para a crise. Ora, essa opção de política pública é também uma forma expressa e inequívoca de corrupção. Afinal, trata-se da transferência para o setor privado de patrimônio público a preços reduzidos, como foi o caso da Vale do Rio Doce, das empresas públicas de telefonia e de energia elétrica, entre tantas outras. Contando com a benevolência dos atores públicos em posição de destaque na administração governamental, a privatização nada mais é do que uma apropriação privada de patrimônio público, à semelhança de tão conhecida prática de sobrepreço em alguma licitação pública.
Fala-se muito em retomar as políticas de desoneração tributária para as empresas como mecanismo de estimular a retomada do crescimento econômico. Tais medidas são efetivamente bastante importantes e adequadas no momento atual, cada vez mais marcado pela recessão, pelas falências e pelo desemprego. No entanto, a tradição histórica em nossas terras é a da política de desoneração tão somente como mecanismo de favorecer determinados grupos do capital privado às custas do Tesouro Nacional. As empresas deixam de recolher os tributos e delas não se exige nenhuma contrapartida ou garantia de decisões que justifiquem o esforço realizado pela maioria da população naquele caminho.
A obtenção de empréstimos públicos a juros subsidiados também é prática comum. Volumes expressivos de recursos do BNDES ou de outros fundos governamentais são encaminhados para determinados grupos econômicos e o diferencial de seu custo financeiro é pago pelo conjunto da sociedade por meio das políticas de equalização da taxa de juros. Ao escolher algumas empresas ou setores específicos, o governo promove um direcionamento de sua estratégia de facilidades de forma viesada.
Independentemente de considerarmos correta ou não tal política, o fato é que se trata aqui também de concessão de benesses públicas a alguns poucos eleitos do setor privado.
A conivência do Banco Central com as práticas abusivas desenvolvidas por um punhado de gigantes financeiros também é muita próxima da corrupção. O próprio silêncio da autoridade encarregada pela regulação e fiscalização do setor bancário fala por si só. Os conglomerados oligopolistas da banca cobram spreads extorsivos em suas operações de crédito e empréstimo a famílias e empresas. O Banco Central não condena nem reprime tal prática e os próprios bancos estatais federais mantêm o mesmo comportamento em sua relação coma clientela. Além disso, a autoridade central não regulamenta as tarifas abusivas cobradas pelos bancos por serviços cobrados.
O modelo das agências reguladoras também serve como exemplo bastante ilustrativo da naturalização da prática da corrupção. Elas deveriam operar como instituições cuja missão precípua seria zelar pelos interesses do lado mais fraco na relação mercantil nas áreas de prestação de serviços públicos. Assim, usuários e cidadãos que não encontrassem capacidade de questionar a força de uma empresa de telefonia ou de energia elétrica poderiam encontrar nas agências reguladoras um amparo político, jurídico e institucional. Ocorre que tais órgãos têm se revelado, na verdade, como espaços de legitimação pelo pode públicos de políticas que atendem basicamente aos interesses das grandes corporações. É o caso das tarifas exorbitantes, das políticas de investimentos, da exigência de qualidade mínima do serviço e tantas outras reclamações existentes no setor.
A verdadeira indústria de concessões, permissões e as modalidades de pareceria-público-privada (PPPs) também podem ser consideradas um tipo particular de mecanismo de corrupção. Afinal, nada mais são do que formas antigas ou sofisticadas de transferência do patrimônio estatal a ser gerido pelo setor privado. Por exemplo, a gestão de um hospital público por uma empresa de saúde do capital privado prevê a remuneração pela prestação desse tipo de serviço com recursos orçamentários. A saúde deixa de ser um bem cidadão e um direito republicano para se transformar em mercadoria.
Enfim, é longa a lista de “corrupções” que ainda não foram convertidas juridicamente ao conceito mais tradicional de “corrupção”. Mas em sua essência terminam por não apresentar tanta diferença assim.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
O modelo das agências reguladoras também serve como exemplo bastante ilustrativo da naturalização da prática da corrupção. Elas deveriam operar como instituições cuja missão precípua seria zelar pelos interesses do lado mais fraco na relação mercantil nas áreas de prestação de serviços públicos. Assim, usuários e cidadãos que não encontrassem capacidade de questionar a força de uma empresa de telefonia ou de energia elétrica poderiam encontrar nas agências reguladoras um amparo político, jurídico e institucional. Ocorre que tais órgãos têm se revelado, na verdade, como espaços de legitimação pelo pode públicos de políticas que atendem basicamente aos interesses das grandes corporações. É o caso das tarifas exorbitantes, das políticas de investimentos, da exigência de qualidade mínima do serviço e tantas outras reclamações existentes no setor.
A verdadeira indústria de concessões, permissões e as modalidades de pareceria-público-privada (PPPs) também podem ser consideradas um tipo particular de mecanismo de corrupção. Afinal, nada mais são do que formas antigas ou sofisticadas de transferência do patrimônio estatal a ser gerido pelo setor privado. Por exemplo, a gestão de um hospital público por uma empresa de saúde do capital privado prevê a remuneração pela prestação desse tipo de serviço com recursos orçamentários. A saúde deixa de ser um bem cidadão e um direito republicano para se transformar em mercadoria.
Enfim, é longa a lista de “corrupções” que ainda não foram convertidas juridicamente ao conceito mais tradicional de “corrupção”. Mas em sua essência terminam por não apresentar tanta diferença assim.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
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