quinta-feira, 21 de abril de 2016

O que temer no governo de Michel?

Por Paulo Kliass, no site Carta Maior:

O Brasil conseguiu a proeza de oferecer ao mundo as lamentáveis imagens de encerramento do primeiro round da tentativa do golpeachment, com o apoio essencial do réu Eduardo Cunha no comando do processo no interior da Câmara dos Deputados. A aceitação da denúncia ocorreu sem a apresentação de nenhuma prova contra a Presidenta da República que justificasse seu impedimento, uma vez que a Constituição prevê a existência de crime de responsabilidade no mandato em curso.

Na verdade, trata-se de uma ampla articulação golpista destinada a conduzir ao Palácio do Planalto aquele partido político que não conseguiria se eleger em eleições diretas, o PMDB. Mais do que isso, esse precedente criminoso de ruptura da ordem democrática abre o espaço político para o retorno do programa de governo que havia sido derrotado em outubro de 2014, sob a candidatura de Aécio Neves.

Ao que tudo indica, a partir de meados de maio o vice-presidente Michel Temer será obrigado a sair de seu exercício diário de contemplação em frente do espelho e se preparar para a difícil tarefa de governar o País por longos 180 dias. Tendo participado ativamente da conspiração para usurpar o poder da legítima mandatária, ele foi eleito na mesma chapa e assinou mais de um decreto autorizativo de natureza orçamentária, similar aos que estão na base da arguição de crime de responsabilidade contra Dilma. Porém, no entender de sua tropa de choque, em seu caso não cabe o impedimento.

Mas como se explica que tal processo tenha conseguido avançar tão rapidamente em sua tramitação nas instâncias de nossa democracia republicana? A verdade é que as classes dominantes nunca engoliram que o país fosse presidido por dirigentes políticos vinculados a causas populares. No passado, estão os desfechos de Getúlio e Jango. Por mais que os governos de Lula e Dilma fizessem de tudo para agradar nossas elites em termos de política econômica, políticas setoriais e de ocupação de cargos na administração pública, sempre permaneceu por parte da burguesia uma desconfiança e o desejo de ver instalado no poder um grupo de gente de maior confiança.

A construção de um consenso em torno da estratégia do golpe midiático-jurídico permitia sonhar com esse objetivo. Os excessos da Operação Lava Jato, os abusos cometidos pelo Juiz Moro, o massacre dos meios de comunicação, tudo parecia compor uma partitura orquestrada à perfeição. As etapas e os objetivos seriam depor Dilma, condenar Lula e finalmente realizar o sonho de reconquistar o conjunto da Esplanada de porteira fechada.

Bastaria apenas assistir a colocação de tal enredo em movimento para que se justificasse um enorme receio em relação ao governo que viesse a substituir o atual. No entanto, infelizmente, há muito mais o que recear em uma equipe montada pelo presidente do PMDB e seus articuladores do golpe. As declarações de voto dos deputados na noite de 17 de abril, os venenos destilados por figuras como Bolsonaro e os fundamentalistas radicais, as perspectivas de encerramento das investigações da Lava Jato, a possível anistia aos processos perpetrados contra o Presidente da Câmara dos Deputados, a composição política com o PSDB, enfim são inúmeros os riscos de retrocesso político embutidos no putsch.

Mas afinal o que temer de um governo comandado por Michel? Muita coisa! As possibilidades de implementação de maldades são grandes. Vejamos.

Antes de mais nada, é preciso relembrar das propostas contidas no documento chamado “Uma ponte para o futuro”, que foi divulgado ainda no ano passado pela Fundação Ulysses Guimarães, do PMDB. À frente da organização do material, mais um ex integrante dos governos Lula e Dilma, Welington Moreira Franco. Ele ocupou a vice presidência da CEF (2007-10), a Secretaria de Assuntos Estratégicos (2011-13) e a Secretaria de Aviação Civil (2013-15).

A agenda de malvadezas contidas naquilo que denunciei como uma verdadeira ponte para o passado se orienta pelo mais fiel pensamento conservador. O documento sugere a retomada do processo de privatização, orienta a desconstrução das conquistas em torno das políticas sociais, propõe a ruptura com as políticas de integração regional na América do Sul, identifica o Regime Geral de Previdência Social (RGPS) como o programa que maior comprometeria o sucesso de um ajuste fiscal rigoroso, aponta para a desvinculação das despesas constitucionais obrigatórias com saúde e educação, entre outras pérolas.

Os líderes golpistas não economizavam palavras para criticar a timidez do governo Dilma na condução da Reforma da Previdência Social e o documento do PMDB explicita a necessidade de promover a retirada de direitos previdenciários, bem como a eliminação das vinculações com o piso do salário mínimo no RGPS. Na verdade, nada muito diferente do que vinha sendo apregoado pelo ex Ministro Joaquim Levy e por Nelson Barbosa. A diferença é que talvez não haja políticos no novo núcleo duro do gabinete do golpe com sensibilidade para ouvir um pouco mais os reclamos do movimento sindical e demais setores da sociedade organizada.

O presidente do Banco Central sob os 2 mandatos de Lula também participa ativamente das articulações do novo governo. Cotado para ocupar algum cargo importante no comando da economia sob Temer, Henrique Meirelles já começa a operar com doses um pouco mais carregadas de pragmatismo. O ex-presidente internacional do Bank of Boston rompe com a crítica principista dos liberalóides da oposição tucana e já avisa que a situação exige uma postura realista.

Às favas com a demagogia do pato da FIESP! Apesar de toda a crítica oportunista dos representantes mór da sonegação empresarial, Meirelles alerta que será necessário elevar impostos. Ó santa heresia! Afinal o discurso da direita contra Dilma se baseava, entre outros aspectos, na crítica à chamada sanha arrecadatória. Com isso logrou barrar diversas tentativas, como a CPMF e outras iniciativas de tributação. Mas a fina flor do financismo acabará aceitando aquilo que condenaram durante anos como sendo a base fundamental do “bolivarianismo”. Quem sentar na cadeira de ministro, logo sentirá a responsabilidade de promover a tal da “austeridade fiscal” em tempos de recessão aberta, falências crescentes e desemprego crítico. Se insistir na tecla do superávit primário, a exemplo do que fizeram os governos do PT, o novo governo deverá promover ainda mais cortes nas áreas sociais e aumentar a arrecadação. Tarefa inglória.

Talvez consiga alguma folga na área da política monetária, pois o austericídio promovido por Levy e Barbosa reduziu tanto a atividade econômica que a própria inflação começou a ceder um pouco. Assim, não está descartada até mesmo uma redução na SELIC, encaminhada - vejam só! - por um governo da oposição conservadora. Triste ironia da história. Se engatar isso com alguma outra vantagem para o capital, o novo-velho governo poderá conseguir até mesmo uma reversão de expectativas de curto prazo. E com isso talvez obtenha uma mudança de tendência na rota recessiva.

Finalmente, é importante lembrar que estamos em ano eleitoral. Assim a proximidade com o pleito municipal em outubro próximo certamente atuará como colchão contra medidas extremas, na área da política econômica e das reformas sociais. É inegável que existem dificuldades para o PMDB e os demais partidos fisiológicos em patrocinar de forma ativa uma pauta de redução de direitos e de promoção de maiores cortes orçamentários. Este será um dos inúmeros dilemas com os quais se defrontarão os usurpadores. Como conciliar a tal da agenda da mudança - tão prometida e esperada pelas elites - com a necessidade de apontar para algum tipo de esperança para a maioria da população?

Enfim, apesar disso, o cenário pós consolidação do golpe no Senado é bastante preocupante. Por mais que a situação político-eleitoral recomende cautela, a sanha revanchista dos putschistas é de tamanha magnitude que não devemos nos surpreender com medidas anti-populares até mesmo antes de outubro. Basta lembrar que ali estão Aécio Neves, Aloysio Nunes Ferreira, José Serra, José Agripino, Tasso Jereissati, Marta Suplicy, Zezé Perrela e tantos outros. Tendo em vista a necessidade de se legitimar politicamente perante as elites do financismo, o vice-presidente conspirador muito provavelmente comandará uma agenda conservadora. Fala-se em reforma administrativa, para dar continuidade à inexplicável iniciativa de Dilma nessa toada. Enfim, a velha e conhecida sinalização do “menos Estado”, tão ao gosto das editorias dos jornalões e da TV privada.

A mobilização e o combate dos setores que se sentirem prejudicados por tal agenda não pode ser menosprezada. Afinal, espera-se que setores do movimento sindical, parcela das direções de entidades como UNE e UBES e demais organizações associativas deverão reaprender a fazer seu trabalho de base e de luta, rompendo com os anos seguidos de acomodação adesista. Porém, deverão superar a fragilidade do movimento desorganizado e enfrentar a institucionalidade repressiva do aparelho de Estado “sob nova direção”. E contar também com a ameaça representada pelo verdadeiro presente oferecido por Dilma às classes dominantes, sob a forma da lei antiterrorista, que pode ser utilizada para punir e desmobilizar o movimento.

Há muito o que temer em um governo de Michel. Afinal, trata-se de uma avenida aberta pela retirada ilegal de um governo legitimamente eleito. Daí para a promoção integral das perversidades de um programa retrógrado de inspiração neoliberal é apenas um pulo. O único caminho é a incorporação autocrítica dos equívocos cometidos ao longo desses 13 anos e a construção unitária da resistência.

* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

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