terça-feira, 17 de maio de 2016

Golpe, golpistas e as metáforas perigosas

Por Flavio Aguiar, de Berlim, no site Carta Maior:

Chamou a atenção a cara de desolação com que as comentaristas presentes na Globo News receberam a fala de Jorge Pontual, desde Nova Iorque, sobre a péssima recepção inicial do governo Temer na mídia internacional.

Em outra oportunidade, chamou a atenção também a reação ressentida de comentaristas da Globo a editorial do New York Times criticando o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Uma das comentaristas chamou de doideira ou palavra semelhante. Sinal de o golpe foi duro. O New York Times é considerado um jornal modelar por grande parte do mundo leitor e jornalistas do mundo inteiro. Ou seja, a Globo acusou o golpe - não o que ajudou a patrocinar contra Dilma, mas o que recebeu no fígado.

Acontece que a Globo cometeu um harakiri moral. Como a paciente continua viva, o harakiri deixa de ser um suicídio e se torna muito mais uma auto-mutilação. Com o golpe, o Brasil perdeu todo o prestígio internacional que acumulara nos últimos tempos. E a Globo, como co-patrocinadora e ainda com a insistência em dizer que o golpe não é golpe, foi junto. Até o momento a narrativa de que o golpe não é golpe, bem como o status dos golpistas, são vistos com reações que variam do ceticismo à denúncia. A automutilação provoca uma sensível fuga da realidade e um lastro de irritação constante a cada vez que a realidade volta à tona. Esta negação programada e compulsiva precisa do reconhecimento dos outros para se afirmar dentro do próprio paciente.

A não concordância dos demais deixa o paciente desarmado, e a única reação possível, já que a volta atrás é percebida histericamente como uma desmoralização - e é - é a repetição da negativa em decibéis mais altos. É preciso muita grandeza em matéria de jornalismo para fazer o que o Le Monde fez: depois de uma cobertura inicial reproduzindo a narrativa golpista de que o golpe não era golpe, voltou atrás e pediu desculpas aos leitores por não dar as informações completas, isto é, de que o assunto era, no mínimo, controverso. Mas quem nasceu para Rede Gobo jamais chegará a Le Monde ou New York Times. Seu limite é a antiga Tribuna da Imprensa lacerdista.

Mas há ainda mais curiosidades a explorar nesta seara das coberturas do golpe. Folha de S. Paulo e Estadão deram exemplo curioso, porque desavisado, de como os feitiços, sem bem olhados, podem se voltar contra os feiticeiros. Quiseram ambos desmoralizar a presidenta Dilma Rousseff com a construção de metáforas fotográficas de seu “fim”. A primeira publicou, na primeira página, uma série de fotos da presidenta sendo incomodada por uma mosca. O segundo publicou, também na primeira página, uma foto do rosto da presidenta envolto em chamas, que provinham da pira olímpica recém acesa.

A construção de uma metáfora sobre um alvo revela tanto o que o construtor pensa sobre aquele, quanto o que este deixa, no mais das vezes inadvertidamente, escapar sobre si mesmo ou sobre seu ponto de vista. Imagino o halo de satisfação eivada de sarcasmo, desdém e arrogância que devem ter feito parte da reação de todos os envolvidos: do fotógrafo pusilânime, ao leitor sádico que se compraz com tal “ofensa”, passando, naturalmente, pelo editor da primeira página, o redator-chefe, os editorialistas, os donos do jornal, etc. “Agora assim acabamos com esta…” - deixo a palavra seguinte para ser imaginada pelas leitoras e leitores.

Porém as metáforas podem ter um insuspeito efeito bumerangue.

No primeiro caso, o da mosca, a série de fotos se tornou uma poderosa extensão da imagem - também já desenhada - que mostra a presidenta sendo atacada por um bando desordenado de ratazanas. Aliás, esta é uma imagem que foi explorada também em relação à “invasão” do Palácio do Planalto pelos usurpadores: um bando de ratos. A mosca reforça uma atribuição moral para o ataque que se faz à presidência: os atacantes têm a dimensão de insetos. Além de roedores, podem ser nocivos à saúde… Acho que esta dimensão subliminar da metáfora passou desapercebida aos seus construtores, pois fica no ponto cego de sua identidade.

O segundo caso, o da fogueira, é mais complexo, pois denota uma ignorância mais profunda sobre o universo metafórico e suas possíveis consequências. Aquela da mosca tem a dimensão de uma maldade travessa e infantil. A da fogueira carrega consigo uma intenção simbolicamente assassina. Mas sem querer os perpetradores deste “assassinato” promoveram a imagem da presidenta atingida à condição de Joana d’Arc, e vestiram a toga - ou o hábito dos inquisidores. Desvelaram-se e desvelaram algo sobre o julgamento efetuado: uma falcatrua do ponto de vista jurídico para abrir as portas para um crime político, condenando a inocente à fogueira e consagrando a fúria roedora dos diminutos (moralmente) algozes como vencedora. 

Uma das fotos seguintes deste ágape da malignidade, divulgada e comentada internacionalmente, simplesmente coroou esta sequência de burrices metafóricas: aquela da posse de Miguel Temer cercado pelos varões assinalados por seus ternos pretos (luto e símbolo da opacidade, no caso, machista, imperceptível aos que assim procediam). Ou seja, a foto da fogueira consagrou a presidenta com o manto histórico e simbólico do martírio, enquanto consagrava seus construtores como arautos da ignominia político-jurídica e da burrice jornalística, simultaneamente.

Com todas estas manifestações que têm tanto de planejamento quanto de insanidade, esta mídia conseguiu registrar a devolução da presidenta a seu povo. É verdade que a presidenta se afastara, no mínimo em termos de imagem, do povo que a elegera, com a adoção, no segundo mandato, de medidas dignas da austeridade que atualmente devasta a Europa sob a alegação de “cura-la”. E o que se viu desde o começo do iníquo processo de impeachment foi o seu retorno aos braços de onde não deveria ter saído.

As metáforas são facas de muito gumes, para tomar de empréstimo outra, de autoria de um amigo meu. Usa-las, como viver, é muito perigoso, pois assim como as usamos, elas podem nos deixar nus em plena rua, ou na banca de jornais, neste caso. Decididamente, não é brinquedo para principiantes. Muito menos para ignorantes.

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