Na mesma semana, dois eventos aparentemente distintos permitem perceber o alcance de uma crise que já não é mais apenas de um governo ou partido, o PT, mas do pacto democrático que nas últimas três décadas fez o parto e sustentou a chamada “Nova República”. Na quinta (5), liminar do ministro do STF Teori Zavascki, suspendeu o mandato do deputado Eduardo Cunha (PMDB), agora ex-presidente da Câmara. Um dia antes, na quarta (4), estudantes paulistas ocuparam a Assembleia Legislativa de São Paulo, de onde dizem só sair depois de instalada a “CPI da merenda”.
A decisão de Zavascki conseguiu o feito de desagradar oposição e governistas. Os primeiros manifestaram seu estranhamento frente a uma deliberação que, dizem, extrapola os limites do judiciário, e alguns partidos – entre eles o PSC de Jair Bolsonaro, e o PMDB do vice Michel Temer – assinaram nota pública de repúdio contra o que consideraram “um desequilíbrio institucional entre os Poderes da República”. Paulinho da Força, do Solidariedade, também réu no STF, sintetizou a indignação dos aliados de Cunha: “Por essa base, ele [Teori Zavascki] cassa mais 200, 300 deputados que tem processo no Supremo”, disse, em um misto de preocupação e ato falho.
Entre os governistas – e digo governistas porque o governo, acertadamente, manteve um silêncio protocolar – a versão é que o afastamento veio tarde, e só depois que Cunha cumpriu seu papel no roteiro do impeachment, que tratam como “golpe”. A tese é conveniente a um governo que trava uma guerra, além de jurídica e política, narrativa. Por outro lado, baseado na liminar o Advogado Geral da União, José Eduardo Cardozo, deve entrar com pedido no STF solicitando a anulação da votação que decidiu pelo impeachment. Há ainda outro pedido de anulação na Câmara, e o deputado Waldir Maranhão, que assumiu a presidência da Casa, tem o poder de avaliá-lo e, eventualmente, considerar nula a sessão.
À exceção de PSDB e DEM, todos os partidos e personagens envolvidos na crise foram, em algum momento dos últimos trezes anos, governo ou estiveram próximo a ele. No caso do PMDB, mais especificamente, sua participação no consórcio foi fundamental para assegurar a tal governabilidade e nunca é demais lembrar que, apesar da decisão de romper com o governo, tomada em míseros três minutos, o partido ainda mantém o vice, que não renunciou, e um bom punhado de ministérios. No primeiro caso, seria coerente a renúncia do vice. No segundo, a demissão dos ministros dissidentes pela presidenta. Nada disso aconteceu.
Foi em parte para minar o poder peemedebista que o PT e o governo incentivaram o ex-prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, a fundar o PSD, hoje um dos principais articuladores do impeachment junto com PMDB e PP, que também já esteve no governo, onde ocupou ministérios importantes como o da Saúde e da Integração Nacional, entre outros. E se hoje há quem se horrorize com as negociações de Temer com Malafaia e outras lideranças religiosas, é recomendável não olvidar que a IURD já ocupou acento nas reuniões ministeriais do governo Dilma, e que a aproximação do PT com as igrejas evangélicas começou com Lula, que chamou José Alencar para seu vice.
Relembro isso porque há algo na narrativa do governo e aliados que não fecha. Mais que acusar o parlamento e o vice de desferirem um “golpe” (no duplo sentido da palavra), ao governo e ao PT caberiam, nesse momento, uma necessária e urgente autocrítica. Gostemos ou não, ambos foram em parte responsáveis pela enrascada institucional em que estamos todos metidos, porque não é possível supor que lideranças experientes como Lula, não soubessem dos riscos implicados em cada uma das alianças fisiologistas que firmou ao longo dos últimos 13 anos.
Há quem as justifique, alegando que no presidencialismo de coalizão não há outro modo de governar e que alianças são um “mal necessário”. Mas a ideia de “coalizão” foi reduzida a um balcão de negociações não raro escusas. E embora tais práticas não tenham sido criadas nas gestões petistas, o PT tampouco se esforçou para mudá-las. Antes pelo contrário, fez delas amplo uso enquanto lhe foi conveniente e possível. Tal continuidade foi em parte favorecida pelos parâmetros no interior dos quais se consolidou o pacto político que, em meados dos anos de 1980, forjou a “Nova República”.
Redemocratizar a democracia, politizar a política
Em linhas gerais, tal acordo não supunha assegurar, como observa Marcos Nobre em seu “Imobilismo em movimento”, as condições para o desenvolvimento de “uma vida política substantivamente democratizada”. Mesmo depois de 30 anos de democracia formal ainda convivemos, por exemplo, com polícias militares para quem os movimentos sociais são inimigos a serem combatidos e eliminados, e com políticas públicas que, baseadas na anistia ampla geral e irrestrita, obra dos últimos governos ditatoriais, favorecem o esquecimento de uma violência de Estado que foi regra, e não exceção, ao longo de duas décadas.
O resultado é uma democracia frágil e precária, porque sustentada, praticamente, em acordos institucionais também eles frágeis, quando não baseados no fisiologismo e na corrupção. Um dos resultados mais lesivos dessa precariedade foi uma crescente despolitização da política, se a entendermos como gestão (no sentido de organizar e regular) do convívio entre diferentes. “A política”, segundo a filósofa Hannah Arendt, “baseia-se no fato da pluralidade dos homens”. E se tal pluralidade caminha no sentido de assegurar mais e maiores liberdades, ela pressupõem igualmente a existência de mecanismos amplos e sólidos de participação democrática que não se resumem às eleições, ainda que essas sejam componente indispensável aquela.
A abertura política e a retomada democrática foram insuficientes para superar as muitas experiências de repressão sistemática a movimentos sociais e populares, que antecedem mas foram substancialmente recrudescidas nos 20 anos de ditadura civil militar. A “Nova República” herdou e manteve praticamente intocado um sistema político montado, fundamentalmente, para marginalizar politicamente a grande massa da população. Infelizmente, e ainda que por caminhos distintos, algumas facetas da experiência petista de governo corroboraram essas práticas de despolitização da política. Se, por um lado, as gestões Lula e Dilma promoveram uma inédita e histórica diminuição dos índices de miséria e de desigualdade social, por outro agiram no sentido de neutralizar e, em alguns casos, criminalizar movimentos e manifestações que poderiam, se ouvidos com atenção, apontar alternativas para uma efetiva guinada à esquerda que, como Godot, nunca veio.
Premido pelas próprias contradições e sitiado por uma oposição hostil e desonesta que, parte dela, há até pouco tempo compunha sua base aliada, o governo acenou nas últimas semanas a setores da esquerda e dos movimentos sociais com os quais pouco dialogou na última década: destravou a reforma agrária; demarcou áreas à comunidades quilombolas e assinou decreto que permite o uso do nome social em crachá por servidores LGBTs, por exemplo. Louvável. Mas é pouco, talvez tenha chegado tarde e acaba por reforçar a impressão de que uma política de direitos não pode viver a reboque dos governos e suas prioridades que, normalmente, não coincidem com as dos movimentos sociais.
Cientes disso, pela segunda vez em menos de um ano estudantes paulistas decidiram – e desculpem se recorro a um jargão – “tomar a história nas mãos”. No ano passado foi para barrar a “reorganização escolar” proposta por Alckmin. Agora, é para exigir, entre outras coisas, que o governo tucano investigue efetivamente o desvio das verbas destinadas às merendas escolares. No ano passado, ocuparam escolas. Nesse, ocuparam também a Alesp. Enfrentaram e enfrentam uma das mais poderosas e violentas máquinas estatais, a do estado de São Paulo, que não titubeou em recorrer de decisão judicial para ter o direito de usar armas letais na desapropriação do Centro Paula Souza, ocupado pelos estudantes desde a semana passada.
Embora extremo, o gesto não é novo: uma parcela expressiva da juventude brasileira está nas ruas há muito tempo. Foram os jovens, principalmente, os que ocuparam as ruas para se solidarizar com as comunidades indígenas vitimadas pela truculência desenvolvimentista do Estado e das grandes empreiteiras; para denunciar a violência contra a mulher nas “Marchas das vadias”; para protestar contra o preconceito e festejar a liberdade nas “Paradas da Diversidade”; que acusam o nosso racismo; que sofrem no corpo e gritam corajosamente contra as muitas e cotidianas formas de violência policial.
Agora são eles, novamente, os que chamam a atenção para as precárias condições de nossas escolas e de nossa educação. E ao fazê-lo não apenas denunciam, mais uma vez, a truculência governamental, mas a fragilidade de uma democracia que teme a experiência democrática, e que só a tolera nos limites não raro estreitos da formalidade. Uma democracia que, em outras palavras, cultiva o ódio à democracia sempre que ela ameaça ultrapassar as fronteiras institucionais para afirmar-se como cultura democrática. Tempos sombrios se anunciam. Os estudantes paulistas estão sinalizando que o caminho para enfrenta-los é o aprofundamento da democracia, não o seu acovardamento. Recomendo que os ouçamos.
* Clóvis Gruner é historiador e professor na Universidade Federal do Paraná.
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