Ilustração: Omar Al Abdallat/Cartoon Movement |
30 de outubro de 1974. Já altas horas da noite, meus olhos de menino não conseguem desviar a atenção do aparelho de TV em preto e branco. Toda a família já dormia.
Na tela, um drama: um dos meus ídolos no esporte, Muhammad Ali, visivelmente fora de forma devido a uma contusão que prejudicou sua preparação para a luta, é castigado no canto do ringue de forma impiedosa pelo então campeão George Foreman.
A luta acontece em Kinschasa, no antigo Zaire, hoje República Democrática do Congo, na África. Mas a plateia não para um minuto de incentivar o desafiante Ali, que sete meses antes batera Joe Frazier, na revanche da "luta do século" realizada em 1971.
Quanto mais Foreman batia, mais o público gritava "Ali, Ali, Ali." Nascido Cassius Marcellus Clay Jr., ele mudou seu nome para Muhammad Ali ao se converter ao islamismo.
Eis que de repente, Ali, no oitavo round, acerta um golpe certeiro e fulminante que nocauteia Foreman, levando a multidão ao delírio. E a mim também. O cinturão voltava ao seu legítimo dono.
Nesta noite mal dormida, pois as imagens do nocaute e do delírio do público não saiam da minha cabeça, percebi que o irreverente e carismático Ali era mais do que o maior lutador de boxe de todos os tempos, como já era apontado pela imprensa e pelos analistas.
Aficionado não só por futebol, mas também por vários outros esportes, eu já sabia que seu cinturão dos pesados, conquistado pela primeira vez em 1964 ao nocautear Sonny Liston, havia sido cassado em 1967 por ele ter se negado a lutar na guerra do Vietnã. Por esse motivo fora banido do esporte por três anos, chegando a ser preso.
Mas a partir daquela distante noite de 1974 passei a devorar todas as leituras possíveis sobre aquele instigante personagem. Também não perdia um especial de TV ou documentário de cinema sobre sua vida. Foi quando deparei com o revolucionário Ali, com uma liderança da luta pelos direitos civis e do combate ao racismo da linhagem de Martin Luther King e Malcolm X.
Quando recusou o alistamento no Exército para lutar no Vietnã, Ali produziu uma declaração antológica que lhe assegurou um lugar de destaque na história dos combatentes pela liberdade: "Por que me pedem para pôr um uniforme e viajar 10.000 milhas para jogar bombas e atirar em pessoas morenas no Vietnã, enquanto as pessoas chamadas de negras em Louisiville são tratadas como cães e lhe negam direitos básicos."
Louisiville vai parar nos funerais do seu filho mais ilustre. Depois de uma luta de mais de 30 anos contra o Mal de Parkinson, o campeão nos deixou aos 74 anos, vítima de problemas respiratórios, no hospital no qual estava internado, no estado do Arizona. No entanto, como lenda do esporte ou militante por um mundo mais justo e igualitário, Ali jamais morrerá.
Me despeço do atleta que assombrou o mundo com a conquista da medalha de ouro nas Olimpíadas de Roma, em 1960, bailando no ringue como jamais ousara um peso pesado, e do ser humano libertário agradecendo à vida por ter me dando a honra de ser contemporâneo de um gigante como Muhammad Ali.
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