Por Ivanilda Figueiredo, no jornal Brasil de Fato:
Brasileiras e brasileiros querem um país melhor, onde possam viver em segurança, terem uma vida produtiva, divertida, saudável, exercer suas crenças e viver de acordo com suas convicções. Esses sentimentos em si unem grande parte da nação. No entanto, o debate sobre como conquistar tais objetivos divide a sociedade. Para uns, é preciso maiores garantias de direitos. Para outros, maior rigor penal. Para uns, é preciso se falar sobre cidadania, gênero, raça, orientação sexual, identidade de gênero e discriminação em sala de aula. Para outros, tais assuntos devem ser debatidos apenas no seio familiar sem qualquer interferência do Estado. Para uns, retomar o respeito a valores religiosos em todas as esferas da vida seria a solução para a pacificação social. Para outros, o respeito à Constituição é o único modo de viver numa sociedade plural, com inúmeras crenças e convicções diferentes, todas elas igualmente válidas.
Tais embates têm por característica estarem sendo travados em um período no qual as informações estão disponíveis de modo viral na internet e nos aplicativos de celular. As informações voam a velocidades impressionantes e se reproduzem de modo dinâmico. Muitas vezes, pelo formato no qual são divulgadas, é difícil até para pessoas com maior experiência na identificação de boatos notarem a falsidade. As notícias falsas, no entanto, são lançadas com um propósito: o de acirrar ainda mais os ânimos entre os dois polos. Há quem hoje finalize qualquer conversa ao ouvir palavras ou expressões como “direitos humanos”, “respeito à diversidade”, “ideologia de gênero”, “valores cristãos”. As duas primeiras expressões representam o grupo dos defensores de direitos humanos e as duas últimas as pessoas vinculadas à defesa de valores familiares e religiosos mais conservadores. A cada dia parece que se torna mais difícil os partidários de uma das correntes não se sentir ameaçado pelos filiados da outra.
Dia desses um aluno me disse que era contra o kit anti-homofobia (para ele, kit gay) porque não concordava que cenas de sexo explícito fossem expostas para crianças de tenra idade. Expliquei-lhe que isso nunca existiu, nenhum material didático seria produzido ou fornecido pelo Ministério da Educação e por órgãos das Nações Unidas com este tipo de conteúdo, garanti-lhe que havia tido todo o material em mãos e lá o que existia eram apenas histórias apropriadas para a idade nas quais se abordava o respeito às pessoas independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero. Não foi fácil convencê-lo, pois ele repetia a todo tempo ter visto o material na internet. Impressiona que um conteúdo produzido há mais de quatro anos e que nunca chegou sequer a ser distribuído ainda povoe o imaginário de pessoas como ele, hoje no auge dos seus 18 anos.
Trata-se, no entanto, de expressão dessa batalha de comunicação que vem sendo travada nos últimos anos. Nessa guerra o campo progressista defensor de direitos humanos tem se visto acuado pela ascensão de forças conservadoras que têm jogado com a linguagem de forma primorosa e tornado tudo que é defesa de direitos “ideologia” e tudo que é negação a estes direitos “neutralidade”.
Uma mulher é estuprada a cada 11 minutos no Brasil e mais de 13 são mortas por dia. O país é campeão de mortes violentas de travestis e convive com grave violência contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Lidar com essa realidade é tentar eliminar as mais graves violações de direitos que devem ser inaceitáveis em qualquer estado democrático. No entanto, tais temas recebem hoje a alcunha de serem propagações de uma “ideologia de gênero” e por isso foram retirados do Plano Nacional de Educação e de vários dos seus congêneres estaduais e municipais. Mas, mais que isso, há inúmeros projetos de lei nos três âmbitos federativos proibindo qualquer discussão sobre esses temas em sala de aula.
A mais nova expressão dessa realidade são os projetos impulsionados por um movimento chamado “Escola sem Partido”. Para eles, o conteúdo das disciplinas em sala de aula deve ser neutro e não apresentar qualquer conteúdo político, religioso ou ideológico. De acordo com os autores do projeto, o intuito é proteger as crianças de professores que estariam propagando em salas de aulas suas próprias visões de mundo. Defende-se que os pais e mães têm direito a assegurar a seus filhos uma educação condizente com suas convicções. Dito desta forma, o movimento consegue persuadir muitas pessoas com seus argumentos, pois a neutralidade e os respeito aos valores familiares parece, para muitos, desejável. No entanto, olhando de forma mais detida para a proposta – na Câmara dos Deputados, PL 867/2015 – é possível se questionar com muita seriedade algumas de suas premissas:
I – quem definirá quais conteúdos são ideológicos e quais não são? Quem serão os censores do Século XXI responsáveis por ler os livros didáticos, fiscalizar os cadernos de anotações dos alunos? Escutar sorrateiramente as aulas dos professores?
II – quais conteúdos podem ser considerados ideológicos? Tratar de racismo, machismo, homofobia, democracia e respeito aos direitos é ideológico? E se calar diante as injustiças, perpetuar uma cultura de desigualdade e violência não é?
III – será construído um país melhor quando crianças, adolescentes e adultos forem obrigados a se submeter a um pensamento único e qualquer divergência seja punida? As salas de aulas precisarão ser completamente homogêneas para que os professores nunca expressem nenhuma opinião ou passem qualquer informação incompatível com as crenças e convicções dos pais e mães dos alunos?
IV – Ora, ninguém jamais contestou o direito de pais e mães conversarem com seus filhos e ensinarem e perpetuarem seus valores morais e religiosos, mas como obrigar que em qualquer nível de ensino os professores sejam tolhidos no seu direito a liberdade de cátedra para se garantir que não exista incompatibilidade entre o ensinado em sala de aula e o ensinado no lar?
Tais perguntas merecem uma reflexão social profunda: quem, quando e como estabeleceu que perpetuar injustiças, se calar diante de violências e opressões é ser neutro? E falar sobre elas é ser ideológico? Neutralidade não existe. Há visões de mundo diversas num país plural e para uma melhor convivência social não é melhor que todos sejam capazes de respeitar a pluralidade e a diversidade mesmo que em seu íntimo vivam de acordo com valores morais e religiosos diversos de seus vizinhos ou colegas de classe?
Mais que isso, é preciso ter em conta de que apesar de projetos como esse alegarem defender um Estado Laico, eles não tocam nos debates sobre ensino religioso confessional em sala de aula, por exemplo. Esse sim um debate essencial para quem pretende eliminar conteúdos sem rigor científico das salas de aula. A Constituição prevê a possibilidade do ensino religioso em escolas públicas, mas, para ele ser compatível com a laicidade do estado, seria necessário que se trata de explicar a respeito das diversas religiões e seus pressupostos, favorecendo assim o respeito constitucional a liberdade de crença. Precisariam, ainda, ser tratados apenas em uma disciplina específica e ser assegurado naquele período outro tipo de atividade aos alunos que não se interessassem pela disciplina. Nada disso ocorre nas salas de aula hoje. Inúmeros estados, como o Rio de Janeiro, por exemplo, tratam o ensino religioso como confessional e em grande parte do país a disciplina é tratada como de presença obrigatória.
Se há um princípio que merece a atenção de pais, mães e responsáveis hoje nos bancos das salas de aula é o do respeito à laicidade. Não se trata se impingir-lhe a alcunha de neutro, mas tão somente reconhecer que o Estado não pode tomar partido quando o assunto é religião. Para o Estado brasileiro qualquer crença é igualmente válida, incluindo o direito de não se filiar a nenhuma religião específica. Todos os brasileiros e brasileiras são iguais em direitos e obrigações e merecem a mesma consideração pelo Estado. Não há outro modo de se assegurar isso que não sejam promovendo em salas de aulas, nas ruas, nas praças, nos noticiários e na internet uma cultura de respeito à pluralidade e à diversidade que é incompatível com qualquer tipo de censura.
É hora, portanto, da sociedade perceber que nenhum desses dois polos de pensamento é neutro. É necessário mais do que nunca que o Ministério Público, a Defensoria Pública e a Ordem dos Advogados do Brasil se unam em torno do respeito à Constituição e na defesa, por uso dos meios jurídicos possíveis em cada caso, do respeito à pluralidade de pensamento, a liberdade de cátedra e a construção de uma cultura de respeito aos direitos humanos e a cidadania. É preciso ressaltar para todas as pessoas: não se está erguendo um país mais justo nem melhor quando uma política de inclusão educacional é desmontada.
* Ivanilda Figueiredo é doutora em Direito pela PUC-Rio e Relatora de Direitos Humanos e Estado Laico da Plataforma de Direitos Humanos – Dhesca Brasil.
Tais embates têm por característica estarem sendo travados em um período no qual as informações estão disponíveis de modo viral na internet e nos aplicativos de celular. As informações voam a velocidades impressionantes e se reproduzem de modo dinâmico. Muitas vezes, pelo formato no qual são divulgadas, é difícil até para pessoas com maior experiência na identificação de boatos notarem a falsidade. As notícias falsas, no entanto, são lançadas com um propósito: o de acirrar ainda mais os ânimos entre os dois polos. Há quem hoje finalize qualquer conversa ao ouvir palavras ou expressões como “direitos humanos”, “respeito à diversidade”, “ideologia de gênero”, “valores cristãos”. As duas primeiras expressões representam o grupo dos defensores de direitos humanos e as duas últimas as pessoas vinculadas à defesa de valores familiares e religiosos mais conservadores. A cada dia parece que se torna mais difícil os partidários de uma das correntes não se sentir ameaçado pelos filiados da outra.
Dia desses um aluno me disse que era contra o kit anti-homofobia (para ele, kit gay) porque não concordava que cenas de sexo explícito fossem expostas para crianças de tenra idade. Expliquei-lhe que isso nunca existiu, nenhum material didático seria produzido ou fornecido pelo Ministério da Educação e por órgãos das Nações Unidas com este tipo de conteúdo, garanti-lhe que havia tido todo o material em mãos e lá o que existia eram apenas histórias apropriadas para a idade nas quais se abordava o respeito às pessoas independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero. Não foi fácil convencê-lo, pois ele repetia a todo tempo ter visto o material na internet. Impressiona que um conteúdo produzido há mais de quatro anos e que nunca chegou sequer a ser distribuído ainda povoe o imaginário de pessoas como ele, hoje no auge dos seus 18 anos.
Trata-se, no entanto, de expressão dessa batalha de comunicação que vem sendo travada nos últimos anos. Nessa guerra o campo progressista defensor de direitos humanos tem se visto acuado pela ascensão de forças conservadoras que têm jogado com a linguagem de forma primorosa e tornado tudo que é defesa de direitos “ideologia” e tudo que é negação a estes direitos “neutralidade”.
Uma mulher é estuprada a cada 11 minutos no Brasil e mais de 13 são mortas por dia. O país é campeão de mortes violentas de travestis e convive com grave violência contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Lidar com essa realidade é tentar eliminar as mais graves violações de direitos que devem ser inaceitáveis em qualquer estado democrático. No entanto, tais temas recebem hoje a alcunha de serem propagações de uma “ideologia de gênero” e por isso foram retirados do Plano Nacional de Educação e de vários dos seus congêneres estaduais e municipais. Mas, mais que isso, há inúmeros projetos de lei nos três âmbitos federativos proibindo qualquer discussão sobre esses temas em sala de aula.
A mais nova expressão dessa realidade são os projetos impulsionados por um movimento chamado “Escola sem Partido”. Para eles, o conteúdo das disciplinas em sala de aula deve ser neutro e não apresentar qualquer conteúdo político, religioso ou ideológico. De acordo com os autores do projeto, o intuito é proteger as crianças de professores que estariam propagando em salas de aulas suas próprias visões de mundo. Defende-se que os pais e mães têm direito a assegurar a seus filhos uma educação condizente com suas convicções. Dito desta forma, o movimento consegue persuadir muitas pessoas com seus argumentos, pois a neutralidade e os respeito aos valores familiares parece, para muitos, desejável. No entanto, olhando de forma mais detida para a proposta – na Câmara dos Deputados, PL 867/2015 – é possível se questionar com muita seriedade algumas de suas premissas:
I – quem definirá quais conteúdos são ideológicos e quais não são? Quem serão os censores do Século XXI responsáveis por ler os livros didáticos, fiscalizar os cadernos de anotações dos alunos? Escutar sorrateiramente as aulas dos professores?
II – quais conteúdos podem ser considerados ideológicos? Tratar de racismo, machismo, homofobia, democracia e respeito aos direitos é ideológico? E se calar diante as injustiças, perpetuar uma cultura de desigualdade e violência não é?
III – será construído um país melhor quando crianças, adolescentes e adultos forem obrigados a se submeter a um pensamento único e qualquer divergência seja punida? As salas de aulas precisarão ser completamente homogêneas para que os professores nunca expressem nenhuma opinião ou passem qualquer informação incompatível com as crenças e convicções dos pais e mães dos alunos?
IV – Ora, ninguém jamais contestou o direito de pais e mães conversarem com seus filhos e ensinarem e perpetuarem seus valores morais e religiosos, mas como obrigar que em qualquer nível de ensino os professores sejam tolhidos no seu direito a liberdade de cátedra para se garantir que não exista incompatibilidade entre o ensinado em sala de aula e o ensinado no lar?
Tais perguntas merecem uma reflexão social profunda: quem, quando e como estabeleceu que perpetuar injustiças, se calar diante de violências e opressões é ser neutro? E falar sobre elas é ser ideológico? Neutralidade não existe. Há visões de mundo diversas num país plural e para uma melhor convivência social não é melhor que todos sejam capazes de respeitar a pluralidade e a diversidade mesmo que em seu íntimo vivam de acordo com valores morais e religiosos diversos de seus vizinhos ou colegas de classe?
Mais que isso, é preciso ter em conta de que apesar de projetos como esse alegarem defender um Estado Laico, eles não tocam nos debates sobre ensino religioso confessional em sala de aula, por exemplo. Esse sim um debate essencial para quem pretende eliminar conteúdos sem rigor científico das salas de aula. A Constituição prevê a possibilidade do ensino religioso em escolas públicas, mas, para ele ser compatível com a laicidade do estado, seria necessário que se trata de explicar a respeito das diversas religiões e seus pressupostos, favorecendo assim o respeito constitucional a liberdade de crença. Precisariam, ainda, ser tratados apenas em uma disciplina específica e ser assegurado naquele período outro tipo de atividade aos alunos que não se interessassem pela disciplina. Nada disso ocorre nas salas de aula hoje. Inúmeros estados, como o Rio de Janeiro, por exemplo, tratam o ensino religioso como confessional e em grande parte do país a disciplina é tratada como de presença obrigatória.
Se há um princípio que merece a atenção de pais, mães e responsáveis hoje nos bancos das salas de aula é o do respeito à laicidade. Não se trata se impingir-lhe a alcunha de neutro, mas tão somente reconhecer que o Estado não pode tomar partido quando o assunto é religião. Para o Estado brasileiro qualquer crença é igualmente válida, incluindo o direito de não se filiar a nenhuma religião específica. Todos os brasileiros e brasileiras são iguais em direitos e obrigações e merecem a mesma consideração pelo Estado. Não há outro modo de se assegurar isso que não sejam promovendo em salas de aulas, nas ruas, nas praças, nos noticiários e na internet uma cultura de respeito à pluralidade e à diversidade que é incompatível com qualquer tipo de censura.
É hora, portanto, da sociedade perceber que nenhum desses dois polos de pensamento é neutro. É necessário mais do que nunca que o Ministério Público, a Defensoria Pública e a Ordem dos Advogados do Brasil se unam em torno do respeito à Constituição e na defesa, por uso dos meios jurídicos possíveis em cada caso, do respeito à pluralidade de pensamento, a liberdade de cátedra e a construção de uma cultura de respeito aos direitos humanos e a cidadania. É preciso ressaltar para todas as pessoas: não se está erguendo um país mais justo nem melhor quando uma política de inclusão educacional é desmontada.
* Ivanilda Figueiredo é doutora em Direito pela PUC-Rio e Relatora de Direitos Humanos e Estado Laico da Plataforma de Direitos Humanos – Dhesca Brasil.
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