sexta-feira, 8 de julho de 2016

A teoria da conspiração de Marilena Chauí

Por Miguel do Rosário, no blog Cafezinho:

O problema da esquerda, desde seus primórdios, há milhares de anos, quando algum bando de pobres se rebelou, numa aldeia do Egito Antigo, contra a opressão, e conseguiu formular suas demandas de maneira minimamente política, sempre foi a comunicação.

A razão é simples: a comunicação precisa de instrução para ganhar substância, e instrução é um luxo dos ricos. Os pobres sempre precisaram pegar no pesado, de manhã à noite, para obter o seu alimento e sustentar sua família.

Até hoje é assim.

O trabalhador que gasta oito horas diárias em seu emprego, e outras duas, três horas, no trânsito caótico de nossas cidades terceiro-mundistas, como terá tempo para assistir séries da Netflix ou estudar clássicos da filosofia?

A análise de hoje versará, como sempre faz, sobre comunicação.

E já que mencionaremos Chauí, uma das maiores especialistas do mundo em Baruch Espinoza, façamos antes uma homenagem à ela e à filosofia iniciando nosso post com uma frase de um antigo pensador grego.

τὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι

A frase é de Parmênides de Eléia, um dos principais filósofos gregos do período pré-socrático, e que eu traduziria assim:

pois igual é o pensar e o ser

Façamos uma tradução palavra a palavra, para dar ao internauta o gostinho de ler no original.

τὸ = artigo definido neutro. "o".

γὰρ = conjunção, pois, então, etc.

αὐτὸ = "o mesmo", "igual".

νοεῖν = pensar, imaginar, criar.

ἐστίν = verbo ser, terceira pessoa singular, "é".

τε καὶ = "e também".

εἶναι = infinitivo do verbo ser.

A frase pode ser pronunciada assim: tô gar auto nôein éstin, tê kai einai.

τὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι

pois igual é o pensar e o ser

Marilena Chauí causou frisson entre os bem pensantes do Brasil ao falar que o juiz Sergio Moro foi treinado nos Estados Unidos, dando a entender que ele é um agente americano a serviço do golpe.

Um jornalista da grande imprensa que eu acompanho no twitter, pessoa elegantérrima, vem há tempos fazendo uma campanha contra as teorias de conspiração envolvendo a participação dos Estados Unidos na política brasileira.

Serra aliado de petroleiras americanas contra o interesse nacional? Delírio! Ele só trocou ideias com a Chevron, e até a criticou!

Temer informante do governo americano? Ridículo! Ele só ia no consulado bater um papo: falar mal do governo do qual se participa e do partido aliado, para um governo estrangeiro, é normal!

A história de Sergio Moro recebendo instruções do governo americano, então, aí estamos diante da teoria da conspiração mais ridícula de todas!

Eu sou uma pessoa profundamente compreensiva. Um jornalista hoje, se quiser manter o emprego, precisa sambar miudinho.

Além do mais, eu concordo com ele. A teoria de Marilena Chauí soou ridícula mesmo. Sergio Moro treinado pelo FBI?

Ora, o FBI é voltado à repressão doméstica e, de qualquer forma, seria ridículo pensar que Moro fizesse um curso nos Estados Unidos voltado a construir um golpe que iria acontecer muitos anos depois.

Eu sempre evitei dar essa informação, para não produzir confusão, mas agora lá vai: Dilma Rousseff também fez curso de "liderança política" nos Estados Unidos: o famigerado International Visitor Leadership Program (IVLP), que já contou com bons alunos como Margaret Thatcher, Felipe Calderon, Tony Blair...

Ora, não é um tanto esquisito que uma ex-guerrilheira comunista ganhe uma bolsa para estudar política nos Estados Unidos?

O único brasileiro, além de Dilma, que ganhou bolsa similar foi... José Sarney.

Então se é para alimentar teorias de conspiração, então a gente pode botar Dilma no meio. Afinal, não foi ela que ajudou a desestruturar a esquerda brasileira?

Por outro lado, a teoria de conspiração da Chauí faz muito sentido, embora não da forma (desastrada, concordo) como ela colocou.

Eu acabei de assistir o volume 1 do premiadíssimo documentário de Patricio Guzmán, A Batalha do Chile, sobre o golpe de Estado naquele país.

Incrível: é a mesma coisa que aconteceu aqui e acontece agora em toda América Latina.

Salvador Allende era o presidente, mas a direita conseguiu maioria na Câmara dos Deputados (embora não os 2/3 que aspirava) e iniciou uma campanha de sabotagem da economia, criminalização da esquerda, instrumentalização do judiciário.

Tudo igual.

E a mídia privada, como sempre, exerceu um papel protagonista no golpe chileno.

O ódio fascista, como agora no Brasil, foi instrumentalizado para criar uma vanguarda política, com apoio maciço da classe média, disposta a qualquer violência.

Até mesmo as "guarimbas" venezuelanas e os estranhos protestos de direita de 2013, no Brasil, ambos com um perfil muito forte de violência anárquica, experimentaram seus primórdios no Chile dos anos 70, com manifestações estudantis violentas contra o governo.

A participação dos Estados Unidos no golpe do Chile ganha ares épicos com o bombardeio, por caças americanos, do Palácio de la Moneda, e o consequente assassinato de Salvador Allende. Ali não tem o que esconder.

Na verdade, a historiografia sabe hoje, documentalmente, que os Estados Unidos interferem na política da América Latina desde o século XIX.

No caso do Brasil, a desclassificação de uma série de documentos oficiais do governo americano permitiu a Flavio Tavares e Camilo Tavares, pai e filho, produzirem o filme O Dia que Durou 21 anos: está provada a participação da Casa Branca no golpe de Estado brasileiro de 1964.

A pergunta que devemos fazer agora, portanto, não é sobre o papel de Sergio Moro numa conspiração patrocinada pelo governo norte-americano, e sim a seguinte: a troco de quê os Estados Unidos não iriam interferir na política brasileira?

E a troco de quê não jogariam muito mais sujo agora, que temos uma economia dez ou vinte vezes maior do que a de 1964?

Os EUA não torraram trilhões de dólares em guerras no oriente médio, não mataram um milhão de iraquianos, além de alguns milhares de cidadãos americanos, em busca de petróleo e ampliação de sua hegemonia política no mundo?

Ora, o Brasil tem 95% das reservas mundiais de nióbio, a maior reserva global de água potável, energia abundante (fóssil, solar, eólica, hidro), minério de ferro, além de um mercado consumidor de 206 milhões de habitantes.

Por que os EUA não iriam interferir no Brasil, sobretudo após descobrirmos grandes reservas de petróleo no pré-sal?

O Estadão divulgou há pouco uma reportagem segundo a qual uma ação coletiva judicial nos EUA pode arrancar uns 15 bilhões de dólares da Petrobrás. É incrível testemunhar, mais uma vez, que a imprensa brasileira torce contra o Brasil.

E a gente sabe que procuradores da Lava Jato foram aos EUA, no ano passado, entregar ao Departamento de Estado americano, informações contra a Petrobrás.

Sergio Moro é talvez apenas um boneco de uma articulação política para submeter o Brasil à hegemonia do imperialismo americano.

O erro da esquerda é a forma como ela denuncia isso, em especial a introdução de um elemento moral no debate: o maniqueísmo político é a mancha de toda teoria de conspiração.

O imperialismo não existe porque os americanos são maus; e sim porque é um fenômeno inevitável do grande capital, e que deve ser combatido com sangue frio e inteligência.

É claro que os Estados Unidos estão por trás do golpe de 2016. Sergio Moro, porém, assim como as castas burocráticas brasileiras, não precisam, necessariamente, ter recebido instruções normativas de como se portar no golpe; eles se alinham aos interesses americanos de maneira orgânica, instintiva, ideológica, porque os EUA tem hoje, mais que nunca na história, instrumentos poderosos para seduzir a "comprador elite" das novas repúblicas de banana.

E hoje, quarta-feira, amanhecemos com uma operação da Polícia Federal voltada para o desmantelamento dos nossos projetos de energia nuclear, levando ao presídio, pela segunda vez, o almirante Othon Ribeiro (e ele já estava preso, em regime domiciliar). Semana passada, uma outra operação foi desencadeada para destruir o centro de pesquisas de tecnologia de exploração em águas profundas da Petrobrás.

Ah, mas eu devo estar paranoico. Os EUA é a terra da liberdade, nunca teria a malícia de usar as contradições brasileiras para destruir nossos projetos mais estratégicos, mais importantes para nossa soberania!

Operações da PF para desmantelar todos os grandes projetos estratégicos, com ênfase naqueles de energia, como os da Petrobrás, da Eletronuclear, e o centro de pesquisa, são apenas etapas da luta contra a corrupção!

A quebra generalizada de sigilos, a delação premiada, a prisão como método de tortura e intimidação política, são instrumentos necessários!

Cuidado com as teorias de conspiração desses esquerdistas!

Mais uma vez homenageando a profesora Chauí, citamos o poderoso teorema VII (no capítulo sobre as Afeições) da Ética de Espinoza:

Conatus, quo unaquaeque res in suo esse perseverare conatur, nihil est praeter ipsius rei actualem essentiam.

O esforço, que toda coisa faz, de perseverar em si mesma, nada mais é do que a essência da própria coisa.

Isso vale para o império, que não tem culpa de se esforçar em permanecer um império, e vale também para a resistência contra o golpe.

A nossa resistência contra o golpe é, portanto, a essência do que somos.

O grito "não vai ter golpe - e vai ter luta" não é apenas um slogan vazio. É uma afirmação profunda de resistência, porque, para repetir Parmênides, o pensar e o ser são a mesma coisa.

Um comentário:

  1. O autor, a quem devemos profundo respeito por suas opiniões e luta contra as práticas fascistas em curso no país,com o objetivo de tentar esclarecer, pode, infelizmente, estar promovendo maior embaraço na capacidade de leitura do que está ocorrendo no Brasil.
    Não nos esqueçamos que, conforme o manual executado na "primavera árabe", na ruptura da Ucrânia, no Leste Europeu e na Venezuela,entre outros desde a invasão ao Iraque, o objetivo maior sempre foi, ainda é e sempre será o de controlar as fontes fundamentais de energia, petróleo, gás e, atualmente, o pré-sal, e sua distribuição no planeta.
    Portanto, penso que teorias conspiratórias nesta esfera quase sempre confirmam o bom e velho ditado de que onde há fumaça, há fogo.
    Por fim, adiciono a reflexão a respeito da velha postura das esquerdas latino-americanas, fundamentalmente, de apresentarem dificuldade na construção de um discurso coletivo que reúna a força necessária para o enfrentamento de um discurso conservador falso, dissimulado, mas incapaz de se dividir ou rachar diante da opinião pública. Perde-se muito tempo, como afirmou um velho pensador da esquerda mexicana, nos rachas internos e esquece-se o inimigo externo comum.
    Reafirmo, ainda, a saudável coexistência de opiniões divergentes, quadro pelo qual, hoje mais do que nunca, pautamos as lutas de nossas vidas.

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