quarta-feira, 20 de julho de 2016

Doleira da Lava-Jato vira modelo na 'Veja'

Por Marcelo Auler, em seu blog:

Pelas informações do jornal O Estado de S.Paulo de domingo (17/07), graças às delações premiadas, quinze dos condenados pela Operação Lava Jato já reduziram suas penas em 326 anos. Isso corresponde a 28% dos 1.149 anos de prisão sentenciados pelo juiz Sérgio Moro.

Sorte maior, porém, teve a doleira Nelma Kodama. Com uma primeira condenação de 15 anos e investigada em mais 15 inquéritos ainda em andamento, mesmo sem ter delatado ninguém nas investigações da Lava Jato, teve a prisão domiciliar antecipada em três meses por Moro. Foi uma decisão atípica, em um despacho cujo teor está sendo mantido em segredo, como ele determinou:


“Por ora mantenho o sigilo sobre estes autos em relação a terceiros”.

Com isso, desde o final de junho ela está em casa, em São Paulo. Aproveitando-se da tornozeleira eletrônica de uso obrigatório, estreou como modelo em um ensaio fotográfico para a revista Veja.

É verdade que a foto que a revista publicou na edição desta semana (16 a 22 de julho) é até bem comportada entre outras da série clicada pelo fotógrafo Jefferson Coppola. Como admitiu o repórter no Instagram, houve fotos “mais ousadas”. Teriam sido, inclusive, rejeitadas pelo Facebook.

Aguarda-se os próximos capítulos desta “novela” da doleira. Quem sabe ela não surgirá nas revistas masculinas apenas com a tornozeleira, única peça que não pode despir, sob o risco de voltar para detrás das grades?

Para antecipar o benefício da doleira, Moro, que já admitiu que a presa tem a “personalidade voltada para o crime”, substituiu a prisão preventiva que ele havia decretado em domiciliar. Com isso, descobre-se que Nelma, mesmo já estando condenada em segundo grau – o TRF-4 ao analisar seu recurso, reduziu-lhe a pena para uma condenação de 15 anos – continua presa preventivamente, e não pelo cumprimento da sentença.Agora, em prisão domiciliar.

A doleira foi a primeira a ser detida na Operação Lava Jato, na noite de sábado, 15 de março de 2014. Não havia sequer mandado de prisão contra ela. No aeroporto internacional de Guarulhos, onde ela embarcaria para Milão (Itália) o delegado Mauricio Moscardi Grillo e o agente Ronaldo Massuia, repassaram a seus colegas de plantão uma “história cobertura”, para justificar a prisão sem falarem das investigações da Lava Jato: ela estaria transportando dinheiro ilegalmente. Usaram o argumento de denúncia anônima, para explicar a informação que pode ter sido captada pelas escutas telefônicas que vinham sendo feitas.

Encarregado do plantão na delegacia do aeroporto naquela noite, o delegado federal Cássio Luiz Nogueira comandou pessoalmente a busca nos pertences da passageira e nada encontrou. A solução foi mandar chamar a única agente federal, Eliane (hoje delegada da Polícia Civil no Paraná) que estava no mesmo plantão, mas em outro ponto do aeroporto. Foi ela que ao fazer uma revista íntima, no banheiro feminino, encontrou o paco de dinheiro muito bem embalado – “parecia embalagem à vácuo”, comenta um dos presentes – com 200 mil Euros, alojado na calcinha. O que ela nega.

Só assim pode ser feito o flagrante e ela ser mantida presa. Mas criou-se um outro problema. As três celas existentes no aeroporto estavam ocupadas por traficantes homens,. Nelma passou a noite sentada em um banco, com um dos braços algemado a um cano, até ser transportada na manhã seguinte para a Superintendência do DPF em São Paulo, no bairro da Lapa.

Com medo de que a notícia da prisão dela vazasse e atrapalhasse a execução dos demais mandados contra doleiros, inclusive Alberto Youssef, previstos para serem cumpridos na segunda-feira, 17 de março, houve até uma tentativa de convencê-la a adiar a viagem. Ocorreu dias antes, através de um telefonema de um agente da polícia federal, sem que ele se identificasse como tal, para uma pessoa próxima à doleira. A empreitada, porém, não teve êxito.


Na decisão, mantida em segredo, Moro confessa que a situação de Nelma é complicada. Mesmo ela ainda sendo investigada em outros inquéritos – 15, segundo a revista Veja – ele antecipou em três meses a progressão da pena. Mas, como declarou, a prisão da doleira era preventiva e passou a domiciliar. Reprodução editada da decisão de Moro

Duas delações

Pelo que se sabe, o único prejuízo que essa antecipação pode ter causado, foi nas buscas e apreensões realizada na casa dela, em São Paulo. Ao chegar lá, na segunda-feira, a polícia deparou-se com sinais de que haviam estado ali e remexido gavetas, como narra o jornalista Vladimir Neto no livro “Lava Jato” (Editora Primeira Pessoa), lançado recentemente.

A situação de Nelma na Operação Lava Jato é, no mínimo, atípica.

Muito embora a Polícia Federal tenha espalhado que ela foi para a prisão domiciliar por conta da delação premiada, isto, de fato, não ocorreu. O próprio juiz Moro, em sua decisão, negou tal fato. Ele mesmo admitiu que a “situação processual da condenada é complicada”. E explicou na decisão mantida em segredo, como se constata na reprodução ao lado:

“A situação processual da condenada é complicada, pois foi feito um acordo de colaboração entre ela e a autoridade policial cuja validade é disputada pelo MPF.

Na pendência da resolução desta questão, surgiu outro complicador, a possível revelação, no acordo, de crime envolvendo pessoa com foro por prerrogativa de função”.

Pelo que se pode interpretar, a doleira fez uma “delação” na polícia e outra no MPF, onde entregou uma “pessoa com foro por prerrogativa de função”, cujo nome é mantido em sigilo.

Tem algum político? - Nelma foi condenada meses depois a 18 anos de prisão por Moro, pela lavagem de R$ 221 milhões. Em dois anos, ela teria enviado para o exterior U$S 5,2 milhões por meio de 91 operações de câmbio irregulares. A sentença foi revista pelo TRF-4. Depois de sentenciada, ela anunciou, em maio de 2015, que faria delação. Mas, já era tarde. Segundo sua própria versão, o interesse em delação premiada foi específico.

Como noticiamos em Quem com ferro fere… Força Tarefa da Lava Jato pode tornar-se alvo de delação premiada, a própria doleira, em carta endereçada ao desembargador Pedro Gebran Neto, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, relator dos recursos nas ações da Lava Jato, explicou os motivos de não ter feito a delação logo ao ser presa. Ao chegar à custódia da Polícia Federal de Curitiba, ouviu do delegado Marcio Adriano Anselmo e do procurador Deltan Dallagnol um recado bastante claro e direto, como escreveu de próprio punho:

“Quando cheguei à Superintendência da Polícia Federal de Curitiba, fui ouvida pelo delegado Márcio Anselmo, os procuradores Deltan Dallagnol e Orlando Martelo, os quais me perguntaram: A senhora tem algum político, ou negócio com tráfico de Drogas? Algum fato novo? Porque se a Sra. só tiver operaçõezinhas com chinesinhos não é do nosso interesse“(sic)



Conhecendo o inferno

Depois, ela foi procurada pela delegada Andréa, de Brasília, para que falasse do doleiro Fayed Traboulsi. Foi no dia em que o ministro Teori Zavascki determinou a liberação dos presos da Lava Jato, mas o juiz Sérgio Moro questionou a medida, Aguardava-se uma nova decisão de Zavascki. Nelma, então, propôs esperar a manifestação do ministro, no que a delegada não concordou. Na carta, a doleira descreveu o que lhe aconteceu:

“No dia 11 de junho de 2014, descem à sala da carceragem dois agentes federais, a Dra. Andréa e ela disse rudemente que eu seria transferida para o ‘Complexo Penitenciário, para o sistema’, que lá eu teria tempo de sobra para pensar na resposta do Ministro. Deram-me cinco minutos para pegar meus remédios, uma roupa e me algemaram nas mãos e nos pés e me transferiram para o Presídio Feminino de Piraquara”.

Ela continuou:

“Excelentíssimo desembargador, eu conheci o inferno, em meio a 450 detentas, fui ameaçada (abri inquérito) e nas minhas condições de saúde emagreci 15 quilos e fiquei emocionalmente abalada” (sic).

Da penitenciária ela foi retirada em março de 2015, quando então prestou depoimento ao delegado Mario Renato Fanton, endossando a tese de que seu ex-advogado, Marden Maués, junto com o advogado paulista Augusto de Arruda Botelho Neto, o delegado federal Paulo Renato Herrera e o ex-agente da polícia Federal, Rodrigo Gnazzo, estariam preparando um dossiê contra a Operação Lava Jato.

Neste período, acabou protagonizando um desentendimento entre Fanton e a delegada Daniele Gossenheimer Rodrigues, chefe do Núcleo de Inteligência Policial (NIP) e esposa de Igor. Tudo por conta de a presa ter reconhecido, entre as fotografias que lhes foram apresentadas, o Agente Fabio do NIP ligado a Daniele, como um dos presentes quando ela foi ouvida pelo delegado Moscardi em uma sindicância. De certa forma isto poderia significar o envolvimento do agente com o então seu advogado, Maués. Fanton manteve nos autos este reconhecimento, feito em cima de fotos mostrada à presa pelo delegado Igor. Daniele não queria que esta peça foi anexada ao inquérito. Achava inadmissível o agente Fabio ter sido reconhecido pela doleira. Tudo girava em torno do suposto dossiê contra a Lava Jato que estaria sendo preparado.

Contribuição de Nelma

A versão da existência desse dossiê, montado por um grupo “dissidente” surgiu da lavra do delegado Igor Romário de Paulo, Coordenado Regional da Delegacia de Repressão a Organizações Criminosas (DRCOR). Coincidentemente, a história do dossiê aparece após O Estado de S. Paulo, em novembro de 2014, divulgar postagens de delegados da Lava Jato no Face book apoiando o candidato tucano Aécio Neves e criticando o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua candidata Dilma Rousseff. Pelo que os delegados da Lava Jato levantaram, até com a estranha colaboração de jornalista, as postagens teriam chegado à imprensa após passarem pelas mãos de Herrera e Botelho Neto. Entre as postagens uma era de Igor.

As informações que Igor disse ter recebido de “fontes humanas” foram endossadas pela doleira Nelma. Ela então passou a ser peça fundamental nesta história. Após esse depoimento, com sua amiga e fiel companheira Iara, foi mantida na custódia da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, mesmo depois de confirmada a condenação em segunda instância. Mas, como se viu acima no despacho de Moro, ainda cumpria prisão preventiva.

Na época, quem tomou conhecimento dos três depoimentos de Nelma ficou com a nítida impressão de que ela, após a condenação a 18 anos – seu recurso não havia sido julgado – , estava desesperada para reverter a pena. Para tal, seria capaz de falar o que fosse conveniente. .

A questão é que não havia mais como reduzir esta condenação,. Afinal, ela não aceitou a delação premiada sobre a Lava Jato. Foi quando a Polícia Federal, para justificar sua permanência na custódia, obteve outro tipo de delação, ainda mantido em segredo, pois não homologada oficialmente. Pelo que saiu publicado na imprensa, ela confessou que fazia operações de câmbio para comerciantes da 25 de Março, principal centro de comércio informal de São Paulo. Seriam os “chinesinhos” dos quais Marcio Anselmo e Deltan não queriam saber?

Corrupção imaterial

O fato é que após o seu depoimento confirmando a existência do dossiê que jamais foi encontrado, Nelma não mais retornou à penitenciária, Continuou dividindo a cela da custódia da SR/DPF/PR com a amiga inseparável Iara. Com o retorno de Fanton para Bauru, sua delegacia de origem, o inquérito 737 que apurava a suposta existência do dossiê passou a ser presidido pela delegada Tânia Fogaça, da Corregedoria em Brasília. Ela não encontrou dossiê, tampouco descobriu qualquer pagamento aos “dissidentes”. Nos diversos depoimentos que tomou de advogados que militam na Justiça Federal, nenhum confirmou a existência do documento.

Ainda assim, o delegado Herrera foi indiciado por “corrupção passiva” e os demais por contribuírem para o crime ser efetivado. Foi a chamada corrupção imaterial, cujo ganho seria a queda da chefia da superintendência. Até hoje este inquérito não se encerrou, mas Nelma, que ajudou a deslanchá-lo, já se beneficiou com a prisão domiciliar, voltando para seu apartamento de 500 metros quadrados que, embora confiscado pela Justiça, ela continua a usufruí-lo.

Como disse à Veja, terá que recomeçar a vida. Alega estar sem dinheiro e devendo, inclusive ao advogado Maués. Talvez, mais do que nunca, possa repetir o que um dia escreveu em um e-mail:

“Sou um ser humano e não só a tia de aço. Como todos e muitos carrego defeitos e emoções às vezes a flor da pele… (…) Eu ainda tenho e carrego uma cicatriz muito exposta do meu passado … Primeiro obviamente como mulher … e obviamente a mais exposta … e dolorida. Segundo como pessoa jurídica … Pois ao longo desses anos e diante dessa profissão a qual muito me orgulho e confesso com tesão … Sou doleira sim e com muito orgulho …. KKK É, talvez eu seja mesmo a última dama do mercado tão respeitado e, hoje, infelizmente, tão avacalhado“.

O recomeço, quem sabe, tenha acontecido, com ela posando de modelo.

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