“Boooora bando de desgraca.
Quero ver se segunda ninguém vai oprimir esse filho da puta”.
“A gente tira uma foto com ele e na hora fala Bolsonaro presidente.
Alguém filma a gente na hora”.
O diálogo acima foi travado nas redes sociais em meados de junho, entre usuários de um grupo do aplicativo WhatsApp. O “filho da puta” a ser “oprimido” era o deputado federal Jean Wyllys (PSol-RJ), convidado pelo curso de cinema da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) para dar uma conferência sobre audiovisual, política e diversidade no campus da instituição em Vitória da Conquista (BA), a pouco mais de 500 quilômetros de Salvador – quase a mesma distância até Alagoinhas, cidade natal do deputado.
A conferência ocorreu em 27 de junho, uma segunda-feira. O grupo virtual foi criado pouco mais de dez dias antes com o objetivo específico de organizar algum tipo de manifestação contrária à presença de Jean Wyllys na cidade. Não por acaso, o nome dado ao agrupamento foi “Fora de VCA [Vitória da Conquista] Jeanus”. Os diálogos revelam que os membros eram simpatizantes do deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ), contra quem Jean Wyllys desferiu uma cusparada no dia 17 de maio, após ouvir dele ofensas de cunho homofóbico. A troca de insultos entre os dois ocorreu durante a sessão da Câmara dos Deputados que decidiu pelo prosseguimento do processo de impeachment contra a presidente eleita – e agora afastada – Dilma Rousseff (PT).
A postura ultraconservadora de Bolsonaro, militar da reserva e parlamentar representante de setores abertamente reacionários, assim como sua repulsa em relação ao que circula em torno de Jean Wyllys – único homossexual assumido na Câmara Federal, defensor de temas como a união afetiva, legalização do aborto e a descriminalização do consumo de maconha, além de ser filiado a um partido de esquerda –, foram reproduzidas pelos integrantes do grupo no WhatsApp. Inclusive quando eles discutiram sobre os métodos a serem utilizados num eventual ato de hostilidade contra o deputado do PSol.
“Vamos brigar tbm?”
“Se eu fosse ia esculhambar”
“Galera o que acha de chegarmos cedo no 'debate' do deputado, pegarmos as primeiras cadeiras e quando ele começar a falar, todos nós abrirmos um guarda-chuva?”
O ato de abrir guarda-chuvas seria uma alusão, pretensamente irônica, à cusparada com que o conferencista atingiu Bolsonaro. Um outro usuário, mais pragmático, parece reconhecer o poder de argumentação de “esquerdistas” como Jean Wyllys, e recomenda aos colegas do grupo que tenham prudência se conseguirem lhe dirigir alguma pergunta. Ao fazer isso, insiste em outra tentativa de chiste, desta vez ironizando a orientação sexual do parlamentar baiano.
“Todo esquerdista argumenta bem. Por isso se rolar pergunta ao deputado Jeanus, tem que ter calma pra não mandá-lo se fuder. Até pq ele gosta. Mas pra responder a altura”.
No mesmo grupo, outro usuário posta a fotografia de um produto que acabou de adquirir: um exemplar do livro A Verdade Sufocada: a História que a Esquerda não Quer que o Brasil Conheça, de autoria do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Morto em outubro de 2015, aos 83 anos, Ustra comandou, entre 1970 e 1974, o Destacamento de Operações de Informações (DOI-Codi) de São Paulo, um dos principais órgãos de repressão a militantes de esquerda durante a ditadura militar (1964-1985). O coronel foi apontado por dezenas de perseguidos políticos e familiares de vítimas da ditadura por responsabilidade na perseguição, tortura e morte de presos políticos.
‘O fascismo perdeu a vergonha’
Segundo Jean Wyllys, um exemplar desse mesmo livro também foi enviado a seu gabinete em Brasília, junto com a recomendação de que ele, Jean, conhecesse “o lado dele”, o coronel Ustra. “Não sei se ele pessoalmente enviou”, conta o deputado. “Claro que encaminhei o livro para o lugar certo: a lata de lixo da história”.
Foi à memória de Ustra que Bolsonaro dedicou seu voto favorável ao impeachment, ressaltando que o coronel seria “o pavor de Dilma Rousseff”. Explica-se: em 1970, Dilma, então com 22 anos e militante do grupo guerrilheiro Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), foi submetida a sessões de tortura durante os 22 dias em que esteve presa no DOI-Codi paulista.
Bolsonaro qualificou o dia 17 de maio como um “dia de glória para o povo brasileiro”, e parabenizou o então presidente da Casa, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) – hoje afastado do cargo e respondendo a processo no Conselho de Ética da Câmara por quebra de decoro, além de envolvido em várias citações de corrupção – pela forma como “conduziu os trabalhos”. Afirmou que os que “perdiam” em 2016 eram os mesmos que “perderam” em 1964. Para justificar seu “sim” ao pedido de impeachment, citou “a família”, a “inocência das crianças em sala de aula”, a “nossa liberdade”, o “Exército de Caxias”, a “nossas Forças Armadas” e “Deus”. O mesmo voto, segundo ele, era contra “o comunismo” e o “Foro de São Paulo”.
Por outro lado, a sessão que Bolsonaro chamou de gloriosa foi classificada por Jean Wyllys como uma “farsa sexista”, da qual o deputado se disse “constrangido” por participar. Cunha, parabenizado por Bolsonaro, mereceu do parlamentar do PSol os predicados de “traidor” e “conspirador”. E seu voto, contrário ao impeachment, foi dedicado aos “direitos da população LGBT”, ao “povo negro das periferias”, aos “trabalhadores da cultura”, aos “sem teto” e aos “sem terra”.
Os integrantes do grupo “Fora de VCA Jeanus” sabiam, portanto, de que lado estavam. E não eram os únicos. “O fascismo, no Brasil, perdeu a vergonha na cara”, observa Jean Wyllys. “Está muito mais visível e foi estimulado, de certa forma, pelos partidos de direita, DEM, PSDB, Solidariedade, PPS. Esses partidos flertaram com os grupos de extrema-direita, contaram com a difamação que eles moveram nas redes sociais. E agora, como diz o ditado, crea cuervos, y te sacarán los ojos. Agora, os grupos fascistas saíram do controle. Então, nós tomamos cuidado com isso. Mas eles não me amedrontam”, prossegue o deputado.
No dia da conferência, o “filho da puta” Jean Wyllys não chegou a ser “oprimido” de fato por nenhum integrante do “bando de desgraça”. Não houve “brigas” de verdade, e as “esculhambações” se limitaram a algumas camisetas com a mensagem “Bolsonaro presidente” – que permaneceram do lado de fora do Teatro Glauber Rocha, onde Jean Wyllys falou ao público. Do lado de dentro, o espaço foi lotado por aproximadamente 300 pessoas que queriam ouvi-lo. Certamente não estavam lá apenas militantes ou simpatizantes das ideias do deputado. Mas se havia ali alguém disposto a hostilizá-lo, calou-se.
Nenhum guarda-chuva se abriu (pelo menos não ali dentro, pois lá fora neblinava), nem houve quem se dispusesse a desferir pessoalmente algum impropério contra o parlamentar durante sua fala. Houve, sim, manifestações pessoais à distância, partidas da área externa, onde o público que não conseguiu entrar – devido à lotação máxima do local – acompanhou a conferência por um telão. Houve ainda algumas tentativas frustradas de abordá-lo no momento em que deixava a universidade. Mas o “protesto” teve seu auge mesmo em comentários agressivos e homofóbicos nas redes sociais. Alguns, além de desancar o deputado do PSol, exaltavam Bolsonaro – chamado por alguns pelo epíteto com que vem sendo tratado há tempos por seus acólitos: “Bolsomito”.
O ‘mito’ está nu
Bem menos amistosos foram os ataques ocorridos dez dias antes na Universidade de Brasília (UnB), onde militantes de grupos de direita se muniram com bombas caseiras, spray de pimenta, canos de PVC e armas de choque e se insurgiram contra estudantes no Instituto Central de Ciências. Gabavam-se de serem pagadores de impostos e tentavam impedir alunos de participar de uma paralisação, chamando-os de “vagabundos”. Envolvidos em bandeiras do Brasil, vestiam camisas pretas, estampadas com o rosto do juiz Sérgio Moro, e as indefectíveis camisas amarelas da Seleção Brasileira, com a insígnia da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) no peito. O grupo gritava palavras de ordem contra “gays safados”, “parasitas” e “comunistas”, e a favor de Moro (“Viva Sérgio Moro!”) e de Bolsonaro (“Bolsonaro presidente!”).
Apropriavam-se de um histórico bordão da esquerda mundial e bradavam: “Golpistas cotistas não passarão!”. Exaltavam a “democracia” brasileira, dizendo que “aqui não é ditadura de esquerda”. Talvez não soubessem que a mesma UnB foi invadida por forças policiais pelo menos três vezes, só nos primeiros quatro anos do regime militar que hoje é defendido com fervor pelo deputado que desejam ver na Presidência da República.
A ofensiva em Brasília, que também foi orquestrada a partir de grupos no WhatsApp – mensagens e áudios trocados pelos ativistas estão disponíveis na internet, graças ao trabalho do grupo Mídia Ninja – teve consequências mais graves. Segundo o Correio Braziliense, dois estudantes registraram boletins de ocorrência na 2ª Delegacia de Polícia, na Asa Norte de Brasília.
Desde o dia 21 de junho, o “mito” Bolsonaro é réu no Supremo Tribunal Federal (STF) em duas ações penais, uma por incitação ao estupro e outra por injúria. A denúncia, feita pela deputada Maria do Rosário (PT-RS) e pela Procuradoria-Geral da República, baseia-se numa discussão na Câmara ocorrida em 2014, quando Bolsonaro disse a Maria do Rosário que não a estupraria porque ela “não merecia ser estuprada”.
Nos últimos dias de junho deste ano, a homenagem ao coronel Ustra ainda rendeu a Bolsonaro uma consequência a mais, além dos já costumeiros aplausos de pessoas saudosas da ditadura militar. Desta vez, ele será julgado por seus próprios pares, graças à instauração de um processo disciplinar no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados. O processo, proposto pelo Partido Verde (PV), pretende apurar se Bolsonaro teria quebrado o decoro parlamentar ao evocar a memória de um personagem que, em 2008, foi reconhecido pela Justiça como tendo sido torturador durante o regime militar.
É tempo de extremismos. Em Vitória da Conquista, um internauta se declarou “hiper satisfeito” por ver que a presença de Jean Wyllys na cidade gerou “a revolta da maioria da população conquistense nas publicações dos blogs”. Nas mesmas redes sociais, outro usuário acusou o deputado de ser “cristofóbico”. Uma internauta achou que conseguiria ser engraçada: “Jean deve ta queimando a rosca pra se aquecer nesse frio”.
“O fascismo é essa estrutura de pensamento infantil, pueril, rasteira, em que a pessoa não para para pensar. A gente está vivendo um momento de burrice, de ignorância motivada”, acredita Jean Wyllys, para quem um dos problemas está, justamente, no fato de as pessoas “não pararem para pensar”.
“A homofobia não é um dado da natureza. Ela tem a ver com falsas certezas. E essas falsas certezas são adquiridas. Essas pessoas praticam a homofobia não porque elas são más por natureza, mas porque elas aprenderam a ser homofóbicas”, defende o parlamentar.
Em meio ao clima de radicalismo e intolerância motivado pela instabilidade política e institucional, e inflada cotidianamente na mídia, há que se concordar numa coisa com aqueles que, por motivações supostamente religiosas, acusam o deputado do PSol de ser “cristofóbico”: é recomendável que se tenha muito cuidado para não se utilizar certas palavras em vão. “Mito”, com certeza, é uma delas. É necessário bom senso para discernir os verdadeiros dos que jamais o serão.
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