Por Giorgio Romano Schutte, na revista Teoria e Debate:
O surpreendente resultado do plebiscito sobre a saída do Reino Unido (RU) da União Europeia (UE) deve ser compreendido a partir de quatro dimensões que atuaram em seu conjunto e conspiraram para o pior desfecho possível: a dimensão histórica, a política, a econômica e a de migração.
Historicamente a relação entre o Reino Unido e o processo de integração europeia foi sempre muito conturbada. Nunca houve paixão ou lideranças britânicas que vestissem a camisa. Winston Churchill defendia, já na década de 1920, uma integração europeia para evitar o ressurgimento do conflito entre Alemanha e França. Falava em “Estados Unidos da Europa”, mas o Reino Unido deveria ficar fora, porque teria outro destino. Após a Segunda Guerra Mundial, com o apoio dos EUA, o esforço para a integração europeia se materializou no Tratado de Roma de 1957, que deu origem à Comunidade Europeia (CE), precursora da UE. O Reino Unido acompanhou as negociações, mas acabou não entrando, por vários motivos.
Em primeiro lugar, acreditava ainda que pudesse reconstituir em novas bases as vantagens econômicas do seu antigo império, em torno do Commonwealth. Trata-se de uma organização criada em 1949 pelo RU para manter suas ex-colônias de alguma forma associadas [1]. Junto com isso, defendeu uma integração somente comercial e sem tarifas externas comuns. Havia uma incompatibilidade entre a política agrícola proposta na Europa continental e a prática do RU, que desde o século 19 apostava em importação de alimentos baratos, em particular de suas colônias e ex-colônias. De outro lado, a CE iria apostar em uma proposta de segurança alimentar baseada em uma política comunitária de subsídios à produção interna e tarifas externas comuns. Essas tarifas seriam inclusive uma fonte para financiar essa política comunitária. Além disso, o Reino Unido apostava em uma relação especial (special relation) com os EUA, apesar de este, desde o início, tê-lo pressionado a entrar na CE. E, por último, mas não menos importante, havia uma desconfiança em relação ao eixo França-Alemanha que estava se tornando o motor do processo de integração.
Ao final, o RU foi o país que inventou a soberania democrática e resistiu bravamente desde então às tentativas de invadir a ilha, seja por Napoleão, seja por Hitler. Não havia por que abrir mão da sua soberania em prol de um projeto de integração. Se fosse assim, que isso se limitasse ao livre comércio, sem nenhuma pretensão de integração política ou o estabelecimento de normas ou instituições de caráter supranacional. Houve até uma tentativa de esvaziar a Comunidade Europeia, lançando como alternativa, em 1960, a Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA), que, diante da forte oposição do governo francês, já sob a liderança do presidente Charles de Gaulle, acabou se restringindo a um grupo de países de menor relevância econômica e política (Áustria, Dinamarca, Portugal, Noruega, RU, Suécia e Suíça) [2].
Quando ficou claro que os mercados da EFTA eram muito menores, que o processo de descolonização era irreversível e que os EUA continuavam pressionando para que o país entrasse, o governo conservador de Harold Macmillan mudou de ideia e solicitou a adesão, em 1961, embora o assunto não tivesse sido abordado na campanha eleitoral do ano anterior. Dessa vez, o presidente da França, Charles de Gaulle, acabou vetando a entrada por dois motivos. Primeiro porque o RU queria tratamento especial (special treatment), o que significava na prática não ter que comprar o pacote todo, mas somente o que o interessava, com o argumento da especificidade da sua estrutura econômica e política em relação à Europa continental. Segundo, porque de Gaulle estava desconfiado do provável aumento da influência dos EUA no processo de integração por meio de sua relação com o RU. Internamente, a iniciativa de Macmillan dividiu os Tories (partido conservador) e Labour (partido trabalhista). Em 1967, já sob o governo dos trabalhistas, o RU pediu novamente adesão e de Gaulle vetou. Foi somente em 1973 que o governo conservador de Edward Heath conseguiu o apoio interno e externo para a entrada do país. No ano seguinte, nas eleições gerais, os trabalhistas, liderados pelo Harold Wilson, lançaram a promessa de renegociar o acordo de adesão e submetê-lo a um referendo. Uma aposta que deu certo. Harold Wilson ganhou as eleições (1974) e em seguida o referendo (1975), com dois terços dos votos, apesar das resistências internas no seu partido. Esse episódio talvez tenha inspirado David Cameron, que também prometeu para sua campanha renegociação (para defender melhor os interesses do RU e conseguir ampliar seu tratamento especial) [3].
Os argumentos contra e a favor, utilizados nas campanhas nos plebiscitos de 1975 e de 2016, são em parte os mesmos. Mas, em 1975, a tensão se concentrava no Partido Trabalhista. A estratégia do Harold Wilson era de unificar o partido e superar a resistência das alas mais à esquerda apoiadas pelos sindicatos que, naquele momento, avaliavam que os trabalhadores poderiam avançar mais nas suas lutas dentro do contexto nacional. (Uma posição que iria mudar após os ataques contra os direitos trabalhistas dos governos de Thatcher.) Alguns anos depois, o conflito interno no Partido Trabalhista se agravou com o fortalecimento de alas mais ligadas aos sindicatos combativos. Uma minoria mais à direita, entre outras coisas decididamente pró-Europa, saiu do partido e criou, em 1981, o Partido da Social-Democracia (Social Democratica Party), que acabou se fundindo mais tarde com o tradicional Partido Liberal, criando a atual legenda de Lib Dem (Liberal Democrats), que sempre fora 100% pró-Europa [4].
Em um primeiro momento, Margaret Thatcher, primeira-ministra de 1979 até 1990, demostrou uma posição pró-europeia. Em meados da década de 1980, a Comissão Europeia passou a demonstrar forte ativismo e liderança política, sob a liderança do Jacques Delors, socialista francês, que estava convencido da necessidade de aprofundar o processo de integração a fim de manter o pacto social diante dos processos de internacionalização e reestruturação do capitalismo. Quanto mais Delors avançava, mais Thatcher se afastava da Europa e mais exigências começou a estabelecer.
O processo de intensificação da UE resultou no famoso Tratado de Maastricht (1992), com a União Monetária (a construção do Euro), o fortalecimento do Parlamento Europeu e, mais tarde, os Acordos de Schengen para superar de vez as fronteiras e tratar os deslocamentos entre esses países como viagens domésticas. Delors tinha uma preocupação com a legitimidade do processo e incluiu o chamado Capítulo Social prevendo normas mínimas de direitos trabalhistas. Foi introduzida também a obrigação de multinacionais com operações em vários países da UE constituírem um comitê europeu da empresa.
Tudo isso foi longe demais para o governo neoliberal de Thatcher e seu sucessor, também conservador, John Major (1990-1997). O RU começou uma rodada de duras negociações exigindo vários tratamentos especiais, a essa altura conhecidas como opt-outs (ficar de fora). Ou seja, o RU continuava na UE, mas exigiu o direito de ficar fora de partes importantes da nova integração, em particular da união monetária, ou seja, vai ficar fora do euro, dos Acordos de Schengene, do Capítulo Social. Somente no último caso o governo trabalhista de Tony Blair (1997-2007) reverteu esse opt-out.
Conclusão: o RU sempre teve uma relação conturbada com o processo de integração, chegando a adotar uma estratégia de ficar com uma perna dentro e outra fora. Assim tornou-se o centro financeiro associado a Nova York, fazendo a ponte entre a esfera do dólar e a esfera do euro e garantindo um ambiente de negócios mais liberal, menos regulado. Isso garantiu também que o RU se tornasse a porta de entrada de capitais produtivos de outros países da UE, dos EUA e de países como Índia e China. A aposta sempre foi aproveitar o acesso ao mercado comum europeu, submetendo-se o mínimo possível à regulação europeia. E, do ponto de vista geopolítico, mantendo firme sua “special relation” com os EUA, expressa de forma dramática no apoio incondicional e na participação ativa na invasão no Iraque (2003), que contou com forte oposição da Alemanha e França.
A própria União Europeia conseguiu, em um primeiro momento, introduzir os Acordos de Schengen e o euro, sem maiores traumas, lembrando que dominava entre os analistas dos EUA que seria um fracasso desde o início. Em comparação com o governo Bush, a UE começou a ganhar certo prestígio, liderando o Protocolo de Kyoto, incluindo a Rússia, mas sem a participação dos EUA. E avançando na construção de uma identidade europeia, entre outros, por meio do programa Erasmus de intercâmbio acadêmico, que possibilitou a convivência de milhões de estudantes em outros países da UE. E usando ativamente a imagem da UE, capaz de criar as condições para defender o modelo social europeu, capitalista, mas não selvagem. Isso funcionou razoavelmente até a crise de 2008.
O Eurobarômetro que acompanha a opinião pública nos países da UE registrou, em 2007, avaliação da UE de 52% positiva, 34% neutra e 17% negativa. A partir de 2011, quando o impacto da crise financeira foi sentido, a avaliação positiva baixou para 30%, a negativa quase chegou a 30% e a neutra ficou em torno de 40% [5]. Embora tenha ficado evidente que o crescente descrédito em relação aos processos políticos nacionais se impactasse com mais força no âmbito europeu, por exemplo, nos altos índices de absenteísmo nas eleições para o Parlamento Europeu. Além disso, o entusiasmo da burocracia europeia a levou a subestimar a distância entre as estruturas europeias e o sentimento popular, em particular a ideia de chamar o novo tratado (fruto de mais uma rodada de maior integração) de Constituição Europeia. Teve de voltar atrás e saiu como Tratado de Lisboa (2007), em vigor desde 2009.
A crise financeira de 2008
Em um primeiro momento, o país mais afetado pela forte crise financeira global, em particular após a queda do banco de investimento Lehman Brothers, em setembro de 2008, foi o RU, exatamente pelo peso de seu setor financeiro e sua maior integração com a economia dos EUA. Em 2009 seu PIB caiu 4,2% em cima de uma queda de 0,5% já ocorrida em 2008. Para salvar seu sistema financeiro e aliviar os impactos sociais, o governo entrou em um déficit público de 5% em 2008, ampliando para 10,7% em 2009. Em 2012 ainda estava em 8,3% e só depois baixou para chegar a 4,4% em 2015, ainda elevado considerando a meta da UE de 3% [6]. O desemprego de menos de 5% subiu para quase 8% em 2010, embora em patamares sempre inferiores à média do continente [7].
O RU, como as demais economias principais da UE, conseguiu sair da recessão, mas não retomar um ritmo de crescimento. Importante observar que, como praticamente todos os demais países da UE, com exceção da Grécia, o RU estava na média anual dentro da meta de 3% de déficit público até a crise de 2008. Não há como negar que o aumento do déficit foi resultado direto da crise financeira. Embora as forças liberais tentem culpar o “custo europeu” (o Estado de bem-estar social) para justificar que a conta seja paga por meio de uma política de ajuste antissocial, que garanta a recuperação dos níveis de rentabilidade do setor financeiro e aumente a vulnerabilidade do trabalhador. No RU em particular isso gerou descontentamento, pois é sabido que anterior a 2008 o setor financeiro aproveitou-se muito, provocando inclusive um aumento expressivo da desigualdade de renda, cujo símbolo são os bônus milionários dos operadores do setor financeiro.
Esse descontentamento não acabou, ao contrário, parte significativa da classe trabalhadora na Europa, em geral, e no RU, em particular, têm a sensação de que estão pagando o pato. Pior é que várias forças de esquerda e centro-esquerda mobilizaram suas campanhas defendendo uma política alternativa, aquela do ajuste fiscal (Hollande na França, Renzi na Itália e Tsípras na Grécia), mas não conseguiram fazer a diferença, o que aumentou ainda mais a frustração com a classe política. No caso do RU, esse descontentamento generalizado foi canalizado para o Brexit, mobilizando os velhos sentimentos antieuropeus sempre presentes. Como se a saída da UE pudesse abrir caminhos melhores.
Ao mesmo tempo houve um esforço da União Europeia para regular e supervisionar o setor financeiro, entre outros, por meio da União Bancária. No início de 2016, entrou em vigor o Mecanismo de Resolução Única (Single Resolution Mechanism, SRM), com um fundo alimentado por contribuições do próprio setor. Todos os bancos da zona do euro devem contribuir obrigatoriamente [8]. Da mesma forma, avançou a discussão sobre taxação dos fluxos financeiros, embora sem grandes resultados por enquanto. Tudo isso não agrada o setor financeiro em Londres, que, exatamente por isso, gostaria de estar presente para liderar a oposição a este avanço da regulação estatal em âmbito comunitário. Não é a toa que o RU tenha brigado para sediar a Autoridade Bancária Europeia (European Banking Authority, EBA) em Londres. A EBA foi criada em 2011 como parte da nova estrutura de supervisão do setor financeiro e, caso se consolide o Brexit, terá de se instalar no continente. Esses esforços, porém, não trouxeram resultados visíveis e concretos para a população, embora tenham gerado oposição no setor financeiro.
Situação política
Não havia um grande motivo para o plebiscito. As diversas pesquisas de opinião mostravam que a população estava preocupada com saúde, educação, trabalho e migração e não havia uma pressão para sair da UE com a ideia de que os problemas que afetam a vida da maioria se resolveriam. Cameron errou feio em sua avaliação política. No fundo, queria repetir a jogada de Harold Wilson em 1975: ganhar uma margem de manobra para negociar mais algumas exceções com a UE, enquadrar os eurocéticos no seu partido e vencer as eleições em maio de 2015. Ele não tinha nenhuma dúvida de que ganharia o plebiscito quando se comprometeu no início de 2013. A única força realmente contrária seria o novo partido independentista do Reino Unido (United Kingdom Independence Party, UKIP), que, embora criado como partido antieuropeu em 1991, só ganhou relevância política a partir da liderança de Nigel Faraga (2009), que levou o partido a ganhar votos nas eleições municipais de 2013 e chegou a ser o partido mais votado nas eleições para o Parlamento Europeu em 2014 [9].
A maioria dos Torries, Labour, Lib Dems iriam juntos fazer a campanha pelo “Remain” (Ficar). Mas Cameron, no meio da campanha, foi vítima da disputa interna no seu partido. Em fevereiro de 2016, o conservador e ex-prefeito de Londres, sem dúvida, o mais popular político da Inglaterra, Boris Johnson, distanciou-se de Cameron e jogou seu peso político a favor do Brexit, alterando radicalmente os termos da disputa. É provável que o cálculo de Boris tenha sido muito diferente do resultado final: uma vitória apertada pelo “Leave”, ganhando visivelmente com os votos do Labour, significaria uma derrota para Cameron e abriria caminho para sua ascensão como novo líder dos conservadores. As reações de Boris desde a apuração tendem a confirmar isso, até sua, novamente surpreendente, retirada da disputa pela sucessão de Cameron, que imediatamente após a derrota declarou que iria se demitir em outubro. Isso não significa que ele, mais a frente, não possa, voltar a disputar a liderança do partido conservador. A questão é que ele não é confiável ao campo dos que querem sair de fato da UE. Segundo problema político para o cálculo de Cameron foi o Labour, que fez a campanha por “Remain”, mas com outra bandeira, distanciando-se da visão liberal de Cameron e defendendo uma união com outras forças progressistas no continente por uma Europa de direitos sociais e políticas de estímulo.
O Labour tinha acabado de fazer eleições para um novo líder depois da derrota nas eleições em 2015 e pela primeira vez, em mais de duas décadas, elegeu um expoente da esquerda do partido, Jeremy Corbyn, com forte apoio dos sindicatos. Ele não aceitou fazer campanha junto com Cameron porque fazia questão de se diferenciar. O fato é que não foi o Labour a convocar o plebiscito e dificilmente pode ser responsabilizado pelo seu resultado, independentemente de quem estiver na liderança. Acontece que os resultados mostram que as classes trabalhadoras, consideradas a base de Labour, votaram majoritariamente pelo “Leave”, embora não entre as faixas etárias de jovens até 35 anos.
Corbyn não quis vender uma UE que não existe e, ao se posicionar contra o Brexit, apontou também o que precisava mudar. Dessa forma, as frações mais à direita no partido, que nunca engoliram sua vitória e que são maioria na bancada, aproveitaram para colocar em dúvida também sua liderança no partido, o que gera ainda mais confusão. Uma campanha de Jeremy junto com Cameron dificilmente teria alterado os votos da base do Labour, mas teria com certeza afastado o partido ainda mais do sentimento popular. A grande dúvida agora é o que vai acontecer nas próximas eleições gerais com os votos do “Leave” da base trabalhista. A UKIP, evidentemente, está de olho, com muita sede. Um desafio grande para o Labour.
Migração
Sem dúvida o que Cameron mais subestimou foi o impacto da migração e dos refugiados sobre toda a dinâmica política na Europa, não somente no RU. Entre 2013 e 2015, o número de novos refugiados pedindo asilo nos países da UE cresceu de 430 mil para 1,3 milhão. No caso do RU já havia uma polêmica sobre os migrantes de outros países da UE, em particular dos países da Europa do Leste. Trata-se, infelizmente, de um assunto bastante complexo, mas de fácil manipulação. O que se viu na campanha pelo Brexit foi que se criaram dois fáceis alvos para explicar os problemas vividos pela população, em particular a mais vulnerável: a burocracia em Bruxelas (capital da UE) e os migrantes. Foi lembrado que lá trás o governo Cameron teria se comprometido com uma meta de não superar a marca de 100 mil novos migrantes por ano. E, em 2015, esse número foi de 333 mil, dos quais metade de países da própria UE. Contudo, na média, nos países da UE, menos de 7% têm outra cidadania (2,8% de outros países da UE e 3,9% extracomunitários). O RU não está muito acima dessa média, com 4,1% de outros países da UE e 3,8% com cidadania extracomunitária [10].
A dinâmica migratória já estava presente no debate, mas ganhou mais premência com a crise dos refugiados em 2015. Partidos com viés xenófobo se aproveitaram, em larga escala e de forma generalizada, da incapacidade das forças políticas tradicionais de darem resposta baseada na solidariedade e uma abordagem humanitária que, ao mesmo tempo, pudesse dialogar com os sentimentos de aumento da vulnerabilidade e ameaça de parcelas significativas da população.
Cameron, na verdade, entrou na onda quando apresentou como grande conquista de sua negociação com a UE o pré-plebiscito para dar direito ao RU de negar até 2023 acesso às políticas sociais para migrantes de outros países da UE, durante os primeiros quatro anos da sua entrada. Seja como for, não há como negar que a campanha pelo Brexit foi pesada na abordagem da migração, sugerindo que: ela é parte central dos problemas sociais e econômicos, que são reais e atingem grande parte da classe trabalhadora; a migração está fora de controle e isso é fruto das políticas formuladas em Bruxelas. A solução apresentada e repetida à exaustão foi “take back control of our borders” (retomar o controle sobre as nossas fronteiras).
Há de se lembrar que os jornais a favor do Brexit têm circulação muito maior que os que defenderam o “Remain” e entraram com força na ideia de projetar o plebiscito como se fosse uma luta pela retomada da soberania e da independência. Aliás, é da tradição dos tabloides ridicularizar a integração europeia e culpar a burocracia em Bruxelas. O próprio Boris Johnson, jornalista, teve um passado como correspondente de um desses jornais em Bruxelas.
Embora líderes dos conservadores como Boris Johnson tenham se distanciado dos excessos do UKIP, a questão da migração e do controle das fronteiras sempre esteve presente.
E agora?
Há vários cenários possíveis e impactos variados sobre a economia internacional, a geopolítica e a dinâmica política no continente. O mundo ainda estava se recuperando da crise financeira de 2008, passando por ensaios de retomada, que logo são seguidos por choques negativos com retorno do risco global. Nesse contexto, o Brexit teve impacto negativo imediato que ainda corre o risco de ter desdobramentos caso não se chegue a um consenso sobre os próximos passos e permaneça a situação de incerteza. No próprio RU isso tende a paralisar os investimentos, com reflexos negativos sobre o nível de emprego, e criar um clima de expectativas ruins. Há um movimento de empresas instaladas no RU, sobretudo do setor financeiro, de “migrar” para o continente. Novos investimentos, em particular aqueles ligados à perspectiva de acesso ao mercado interno da UE, entraram na lista de espera. De outro lado, a forte desvalorização da libra esterlina, que caiu mais de 10% até o início de julho, se consolidada, aumenta a competitividade das indústrias instaladas no RU, o que pode aliviar, embora não compensar, os demais impactos negativos.
Na área política podemos verificar uma tentativa por parte do governo britânico de ganhar tempo no intuito de diluir o impacto do plebiscito. Há de se lembrar que, formalmente, ele não é vinculante, e a maioria dos congressistas é contra o Brexit. Sem dúvida o custo político de simplesmente ignorar o plebiscito, após uma intensa campanha e comparecimento ao voto elevado (72%), seria muito alto e aumentaria ainda mais o descrédito generalizado na classe política. A proposta inicial de Cameron de se demitir somente em outubro, e não de imediato, seguia essa lógica. Ele teve de recuar para não aumentar ainda mais o clima de incerteza.
No continente, de um lado, há pressão para uma definição rápida para evitar contágio da paralisia e das incertezas e, de outro lado, lideranças como Merkel querem dar tempo para evitar passos precipitados. O dilema para a UE é entre a racionalidade econômica e política. A primeira leva a tentar um “soft Brexit”, criando condições para o RU continuar associado ao mercado comum. Há um caminho para isso via a (re)entrada do RU na EFTA e desta entrar na Zona Econômica Europeia (ZEE). Mas há um enorme paradoxo com essa solução: a ZEE prevê também livre circulação de pessoas e contribuições para Bruxelas, sem, porém, participar das estruturas de tomada de decisão.
No caso de um “soft Brexit” de fato, o governo britânico tentará negociar um controle interno sobre a migração e um acesso ao mercado comum europeu. Politicamente isso é complicado para a UE porque, se o preço para sair foi baixo, haverá um estímulo para movimentos parecidos em outros países, ainda mais sendo migração o ponto de negociação. Um Brexit com uma ruptura mais forte, ou seja, barreiras de entrada para o RU ter acesso ao mercado comum europeu, terá um impacto econômico muito negativo e obrigará o RU a reorientar sua economia, sem muita perspectiva de êxito. Além do mais, nesse caso é muito provável que os nacionalistas na Escócia, que votou majoritariamente pelo “Leave” (62%), buscarão por sua vez um referendo para sair do RU e “ficar” na UE [11].
De outro lado, não está claro como o Labour entrará numa campanha. Infelizmente, como mencionado, ela ficou paralisada pela contestação à liderança do partido. É imaginável que isso provoque novas eleições internas, com uma forte possibilidade de Jeremy Corbyn eleger-se novamente, já que ele não se deixou intimidar pela maioria da bancada de seu partido, que até com apoio de Cameron está tentando tirá-lo de vez. Tanto em uma possível nova eleição interna, como em uma possível nova eleição mais para frente, caberá ao Labour mostrar uma alternativa.
No fundo não é somente o desafio do Labour no RU, mas de todas as forças progressistas na Europa que entendem que há uma dupla luta a ser travada simultaneamente: por uma Europa de direitos sociais, solidariedade e contra a lógica do ajuste fiscal, o que, em última instância, significa uma nova pactuação política e social e um reforço das políticas comunitárias, e ao mesmo tempo uma luta intransigente contra o avanço da direita nacionalista, populista e xenófoba. Sem a primeira, não é possível travar a segunda batalha. É exatamente por esse motivos, por exemplo, que Yanis Varoufkis, apesar de toda sua briga com a UE, que o levou inclusive a se demitir como ministro de Finanças do governo de Tsípras, apoiou firmemente a campanha contra o Brexit [12]. Em vez de limitar, haverá de aumentar e democratizar os espaços de concertação em nível europeu. Apostar na desintegração da União Europeia é na melhor das hipóteses reforçar o capitalismo selvagem e, na pior, ajudar a direita xenófoba e nacionalista a se tornar uma força hegemônica. Nesse sentido seria muito desejável que o Labour, sob liderança de Jeremy, buscasse rapidamente um diálogo com todas as forças antiausteridade, para criar uma verdadeira saída.
Referências bibliográficas
Bogdanor, Vernon. Britain and Europe since the War. Lectures Graham College, 2013/2014. Disponível: http://www.gresham.ac.uk/lectures-and-events/britain-and-the-continent
Overbeek, Henk. Global Capitalism and Britain´s Decline. Amsterdam: UvA, 1988.
Young, Hugo. This Blessed Plot. Britain and Europe from Churchill to Blair. New York: Overlook Press, 1998.
Giorgio Romano Schutte é professor de Relações Internacionais e Economia da Universidade Federal do ABC (UFABC) e membro do Grupo de Reflexão sobre RI (GR-RI)
Notas
1. Hoje ela conta com 53 membros e funciona mais como uma rede de intercâmbio e exercício de poder diplomático do RU. Ver:http://thecommonwealth.org/
O surpreendente resultado do plebiscito sobre a saída do Reino Unido (RU) da União Europeia (UE) deve ser compreendido a partir de quatro dimensões que atuaram em seu conjunto e conspiraram para o pior desfecho possível: a dimensão histórica, a política, a econômica e a de migração.
Historicamente a relação entre o Reino Unido e o processo de integração europeia foi sempre muito conturbada. Nunca houve paixão ou lideranças britânicas que vestissem a camisa. Winston Churchill defendia, já na década de 1920, uma integração europeia para evitar o ressurgimento do conflito entre Alemanha e França. Falava em “Estados Unidos da Europa”, mas o Reino Unido deveria ficar fora, porque teria outro destino. Após a Segunda Guerra Mundial, com o apoio dos EUA, o esforço para a integração europeia se materializou no Tratado de Roma de 1957, que deu origem à Comunidade Europeia (CE), precursora da UE. O Reino Unido acompanhou as negociações, mas acabou não entrando, por vários motivos.
Em primeiro lugar, acreditava ainda que pudesse reconstituir em novas bases as vantagens econômicas do seu antigo império, em torno do Commonwealth. Trata-se de uma organização criada em 1949 pelo RU para manter suas ex-colônias de alguma forma associadas [1]. Junto com isso, defendeu uma integração somente comercial e sem tarifas externas comuns. Havia uma incompatibilidade entre a política agrícola proposta na Europa continental e a prática do RU, que desde o século 19 apostava em importação de alimentos baratos, em particular de suas colônias e ex-colônias. De outro lado, a CE iria apostar em uma proposta de segurança alimentar baseada em uma política comunitária de subsídios à produção interna e tarifas externas comuns. Essas tarifas seriam inclusive uma fonte para financiar essa política comunitária. Além disso, o Reino Unido apostava em uma relação especial (special relation) com os EUA, apesar de este, desde o início, tê-lo pressionado a entrar na CE. E, por último, mas não menos importante, havia uma desconfiança em relação ao eixo França-Alemanha que estava se tornando o motor do processo de integração.
Ao final, o RU foi o país que inventou a soberania democrática e resistiu bravamente desde então às tentativas de invadir a ilha, seja por Napoleão, seja por Hitler. Não havia por que abrir mão da sua soberania em prol de um projeto de integração. Se fosse assim, que isso se limitasse ao livre comércio, sem nenhuma pretensão de integração política ou o estabelecimento de normas ou instituições de caráter supranacional. Houve até uma tentativa de esvaziar a Comunidade Europeia, lançando como alternativa, em 1960, a Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA), que, diante da forte oposição do governo francês, já sob a liderança do presidente Charles de Gaulle, acabou se restringindo a um grupo de países de menor relevância econômica e política (Áustria, Dinamarca, Portugal, Noruega, RU, Suécia e Suíça) [2].
Quando ficou claro que os mercados da EFTA eram muito menores, que o processo de descolonização era irreversível e que os EUA continuavam pressionando para que o país entrasse, o governo conservador de Harold Macmillan mudou de ideia e solicitou a adesão, em 1961, embora o assunto não tivesse sido abordado na campanha eleitoral do ano anterior. Dessa vez, o presidente da França, Charles de Gaulle, acabou vetando a entrada por dois motivos. Primeiro porque o RU queria tratamento especial (special treatment), o que significava na prática não ter que comprar o pacote todo, mas somente o que o interessava, com o argumento da especificidade da sua estrutura econômica e política em relação à Europa continental. Segundo, porque de Gaulle estava desconfiado do provável aumento da influência dos EUA no processo de integração por meio de sua relação com o RU. Internamente, a iniciativa de Macmillan dividiu os Tories (partido conservador) e Labour (partido trabalhista). Em 1967, já sob o governo dos trabalhistas, o RU pediu novamente adesão e de Gaulle vetou. Foi somente em 1973 que o governo conservador de Edward Heath conseguiu o apoio interno e externo para a entrada do país. No ano seguinte, nas eleições gerais, os trabalhistas, liderados pelo Harold Wilson, lançaram a promessa de renegociar o acordo de adesão e submetê-lo a um referendo. Uma aposta que deu certo. Harold Wilson ganhou as eleições (1974) e em seguida o referendo (1975), com dois terços dos votos, apesar das resistências internas no seu partido. Esse episódio talvez tenha inspirado David Cameron, que também prometeu para sua campanha renegociação (para defender melhor os interesses do RU e conseguir ampliar seu tratamento especial) [3].
Os argumentos contra e a favor, utilizados nas campanhas nos plebiscitos de 1975 e de 2016, são em parte os mesmos. Mas, em 1975, a tensão se concentrava no Partido Trabalhista. A estratégia do Harold Wilson era de unificar o partido e superar a resistência das alas mais à esquerda apoiadas pelos sindicatos que, naquele momento, avaliavam que os trabalhadores poderiam avançar mais nas suas lutas dentro do contexto nacional. (Uma posição que iria mudar após os ataques contra os direitos trabalhistas dos governos de Thatcher.) Alguns anos depois, o conflito interno no Partido Trabalhista se agravou com o fortalecimento de alas mais ligadas aos sindicatos combativos. Uma minoria mais à direita, entre outras coisas decididamente pró-Europa, saiu do partido e criou, em 1981, o Partido da Social-Democracia (Social Democratica Party), que acabou se fundindo mais tarde com o tradicional Partido Liberal, criando a atual legenda de Lib Dem (Liberal Democrats), que sempre fora 100% pró-Europa [4].
Em um primeiro momento, Margaret Thatcher, primeira-ministra de 1979 até 1990, demostrou uma posição pró-europeia. Em meados da década de 1980, a Comissão Europeia passou a demonstrar forte ativismo e liderança política, sob a liderança do Jacques Delors, socialista francês, que estava convencido da necessidade de aprofundar o processo de integração a fim de manter o pacto social diante dos processos de internacionalização e reestruturação do capitalismo. Quanto mais Delors avançava, mais Thatcher se afastava da Europa e mais exigências começou a estabelecer.
O processo de intensificação da UE resultou no famoso Tratado de Maastricht (1992), com a União Monetária (a construção do Euro), o fortalecimento do Parlamento Europeu e, mais tarde, os Acordos de Schengen para superar de vez as fronteiras e tratar os deslocamentos entre esses países como viagens domésticas. Delors tinha uma preocupação com a legitimidade do processo e incluiu o chamado Capítulo Social prevendo normas mínimas de direitos trabalhistas. Foi introduzida também a obrigação de multinacionais com operações em vários países da UE constituírem um comitê europeu da empresa.
Tudo isso foi longe demais para o governo neoliberal de Thatcher e seu sucessor, também conservador, John Major (1990-1997). O RU começou uma rodada de duras negociações exigindo vários tratamentos especiais, a essa altura conhecidas como opt-outs (ficar de fora). Ou seja, o RU continuava na UE, mas exigiu o direito de ficar fora de partes importantes da nova integração, em particular da união monetária, ou seja, vai ficar fora do euro, dos Acordos de Schengene, do Capítulo Social. Somente no último caso o governo trabalhista de Tony Blair (1997-2007) reverteu esse opt-out.
Conclusão: o RU sempre teve uma relação conturbada com o processo de integração, chegando a adotar uma estratégia de ficar com uma perna dentro e outra fora. Assim tornou-se o centro financeiro associado a Nova York, fazendo a ponte entre a esfera do dólar e a esfera do euro e garantindo um ambiente de negócios mais liberal, menos regulado. Isso garantiu também que o RU se tornasse a porta de entrada de capitais produtivos de outros países da UE, dos EUA e de países como Índia e China. A aposta sempre foi aproveitar o acesso ao mercado comum europeu, submetendo-se o mínimo possível à regulação europeia. E, do ponto de vista geopolítico, mantendo firme sua “special relation” com os EUA, expressa de forma dramática no apoio incondicional e na participação ativa na invasão no Iraque (2003), que contou com forte oposição da Alemanha e França.
A própria União Europeia conseguiu, em um primeiro momento, introduzir os Acordos de Schengen e o euro, sem maiores traumas, lembrando que dominava entre os analistas dos EUA que seria um fracasso desde o início. Em comparação com o governo Bush, a UE começou a ganhar certo prestígio, liderando o Protocolo de Kyoto, incluindo a Rússia, mas sem a participação dos EUA. E avançando na construção de uma identidade europeia, entre outros, por meio do programa Erasmus de intercâmbio acadêmico, que possibilitou a convivência de milhões de estudantes em outros países da UE. E usando ativamente a imagem da UE, capaz de criar as condições para defender o modelo social europeu, capitalista, mas não selvagem. Isso funcionou razoavelmente até a crise de 2008.
O Eurobarômetro que acompanha a opinião pública nos países da UE registrou, em 2007, avaliação da UE de 52% positiva, 34% neutra e 17% negativa. A partir de 2011, quando o impacto da crise financeira foi sentido, a avaliação positiva baixou para 30%, a negativa quase chegou a 30% e a neutra ficou em torno de 40% [5]. Embora tenha ficado evidente que o crescente descrédito em relação aos processos políticos nacionais se impactasse com mais força no âmbito europeu, por exemplo, nos altos índices de absenteísmo nas eleições para o Parlamento Europeu. Além disso, o entusiasmo da burocracia europeia a levou a subestimar a distância entre as estruturas europeias e o sentimento popular, em particular a ideia de chamar o novo tratado (fruto de mais uma rodada de maior integração) de Constituição Europeia. Teve de voltar atrás e saiu como Tratado de Lisboa (2007), em vigor desde 2009.
A crise financeira de 2008
Em um primeiro momento, o país mais afetado pela forte crise financeira global, em particular após a queda do banco de investimento Lehman Brothers, em setembro de 2008, foi o RU, exatamente pelo peso de seu setor financeiro e sua maior integração com a economia dos EUA. Em 2009 seu PIB caiu 4,2% em cima de uma queda de 0,5% já ocorrida em 2008. Para salvar seu sistema financeiro e aliviar os impactos sociais, o governo entrou em um déficit público de 5% em 2008, ampliando para 10,7% em 2009. Em 2012 ainda estava em 8,3% e só depois baixou para chegar a 4,4% em 2015, ainda elevado considerando a meta da UE de 3% [6]. O desemprego de menos de 5% subiu para quase 8% em 2010, embora em patamares sempre inferiores à média do continente [7].
O RU, como as demais economias principais da UE, conseguiu sair da recessão, mas não retomar um ritmo de crescimento. Importante observar que, como praticamente todos os demais países da UE, com exceção da Grécia, o RU estava na média anual dentro da meta de 3% de déficit público até a crise de 2008. Não há como negar que o aumento do déficit foi resultado direto da crise financeira. Embora as forças liberais tentem culpar o “custo europeu” (o Estado de bem-estar social) para justificar que a conta seja paga por meio de uma política de ajuste antissocial, que garanta a recuperação dos níveis de rentabilidade do setor financeiro e aumente a vulnerabilidade do trabalhador. No RU em particular isso gerou descontentamento, pois é sabido que anterior a 2008 o setor financeiro aproveitou-se muito, provocando inclusive um aumento expressivo da desigualdade de renda, cujo símbolo são os bônus milionários dos operadores do setor financeiro.
Esse descontentamento não acabou, ao contrário, parte significativa da classe trabalhadora na Europa, em geral, e no RU, em particular, têm a sensação de que estão pagando o pato. Pior é que várias forças de esquerda e centro-esquerda mobilizaram suas campanhas defendendo uma política alternativa, aquela do ajuste fiscal (Hollande na França, Renzi na Itália e Tsípras na Grécia), mas não conseguiram fazer a diferença, o que aumentou ainda mais a frustração com a classe política. No caso do RU, esse descontentamento generalizado foi canalizado para o Brexit, mobilizando os velhos sentimentos antieuropeus sempre presentes. Como se a saída da UE pudesse abrir caminhos melhores.
Ao mesmo tempo houve um esforço da União Europeia para regular e supervisionar o setor financeiro, entre outros, por meio da União Bancária. No início de 2016, entrou em vigor o Mecanismo de Resolução Única (Single Resolution Mechanism, SRM), com um fundo alimentado por contribuições do próprio setor. Todos os bancos da zona do euro devem contribuir obrigatoriamente [8]. Da mesma forma, avançou a discussão sobre taxação dos fluxos financeiros, embora sem grandes resultados por enquanto. Tudo isso não agrada o setor financeiro em Londres, que, exatamente por isso, gostaria de estar presente para liderar a oposição a este avanço da regulação estatal em âmbito comunitário. Não é a toa que o RU tenha brigado para sediar a Autoridade Bancária Europeia (European Banking Authority, EBA) em Londres. A EBA foi criada em 2011 como parte da nova estrutura de supervisão do setor financeiro e, caso se consolide o Brexit, terá de se instalar no continente. Esses esforços, porém, não trouxeram resultados visíveis e concretos para a população, embora tenham gerado oposição no setor financeiro.
Situação política
Não havia um grande motivo para o plebiscito. As diversas pesquisas de opinião mostravam que a população estava preocupada com saúde, educação, trabalho e migração e não havia uma pressão para sair da UE com a ideia de que os problemas que afetam a vida da maioria se resolveriam. Cameron errou feio em sua avaliação política. No fundo, queria repetir a jogada de Harold Wilson em 1975: ganhar uma margem de manobra para negociar mais algumas exceções com a UE, enquadrar os eurocéticos no seu partido e vencer as eleições em maio de 2015. Ele não tinha nenhuma dúvida de que ganharia o plebiscito quando se comprometeu no início de 2013. A única força realmente contrária seria o novo partido independentista do Reino Unido (United Kingdom Independence Party, UKIP), que, embora criado como partido antieuropeu em 1991, só ganhou relevância política a partir da liderança de Nigel Faraga (2009), que levou o partido a ganhar votos nas eleições municipais de 2013 e chegou a ser o partido mais votado nas eleições para o Parlamento Europeu em 2014 [9].
A maioria dos Torries, Labour, Lib Dems iriam juntos fazer a campanha pelo “Remain” (Ficar). Mas Cameron, no meio da campanha, foi vítima da disputa interna no seu partido. Em fevereiro de 2016, o conservador e ex-prefeito de Londres, sem dúvida, o mais popular político da Inglaterra, Boris Johnson, distanciou-se de Cameron e jogou seu peso político a favor do Brexit, alterando radicalmente os termos da disputa. É provável que o cálculo de Boris tenha sido muito diferente do resultado final: uma vitória apertada pelo “Leave”, ganhando visivelmente com os votos do Labour, significaria uma derrota para Cameron e abriria caminho para sua ascensão como novo líder dos conservadores. As reações de Boris desde a apuração tendem a confirmar isso, até sua, novamente surpreendente, retirada da disputa pela sucessão de Cameron, que imediatamente após a derrota declarou que iria se demitir em outubro. Isso não significa que ele, mais a frente, não possa, voltar a disputar a liderança do partido conservador. A questão é que ele não é confiável ao campo dos que querem sair de fato da UE. Segundo problema político para o cálculo de Cameron foi o Labour, que fez a campanha por “Remain”, mas com outra bandeira, distanciando-se da visão liberal de Cameron e defendendo uma união com outras forças progressistas no continente por uma Europa de direitos sociais e políticas de estímulo.
O Labour tinha acabado de fazer eleições para um novo líder depois da derrota nas eleições em 2015 e pela primeira vez, em mais de duas décadas, elegeu um expoente da esquerda do partido, Jeremy Corbyn, com forte apoio dos sindicatos. Ele não aceitou fazer campanha junto com Cameron porque fazia questão de se diferenciar. O fato é que não foi o Labour a convocar o plebiscito e dificilmente pode ser responsabilizado pelo seu resultado, independentemente de quem estiver na liderança. Acontece que os resultados mostram que as classes trabalhadoras, consideradas a base de Labour, votaram majoritariamente pelo “Leave”, embora não entre as faixas etárias de jovens até 35 anos.
Corbyn não quis vender uma UE que não existe e, ao se posicionar contra o Brexit, apontou também o que precisava mudar. Dessa forma, as frações mais à direita no partido, que nunca engoliram sua vitória e que são maioria na bancada, aproveitaram para colocar em dúvida também sua liderança no partido, o que gera ainda mais confusão. Uma campanha de Jeremy junto com Cameron dificilmente teria alterado os votos da base do Labour, mas teria com certeza afastado o partido ainda mais do sentimento popular. A grande dúvida agora é o que vai acontecer nas próximas eleições gerais com os votos do “Leave” da base trabalhista. A UKIP, evidentemente, está de olho, com muita sede. Um desafio grande para o Labour.
Migração
Sem dúvida o que Cameron mais subestimou foi o impacto da migração e dos refugiados sobre toda a dinâmica política na Europa, não somente no RU. Entre 2013 e 2015, o número de novos refugiados pedindo asilo nos países da UE cresceu de 430 mil para 1,3 milhão. No caso do RU já havia uma polêmica sobre os migrantes de outros países da UE, em particular dos países da Europa do Leste. Trata-se, infelizmente, de um assunto bastante complexo, mas de fácil manipulação. O que se viu na campanha pelo Brexit foi que se criaram dois fáceis alvos para explicar os problemas vividos pela população, em particular a mais vulnerável: a burocracia em Bruxelas (capital da UE) e os migrantes. Foi lembrado que lá trás o governo Cameron teria se comprometido com uma meta de não superar a marca de 100 mil novos migrantes por ano. E, em 2015, esse número foi de 333 mil, dos quais metade de países da própria UE. Contudo, na média, nos países da UE, menos de 7% têm outra cidadania (2,8% de outros países da UE e 3,9% extracomunitários). O RU não está muito acima dessa média, com 4,1% de outros países da UE e 3,8% com cidadania extracomunitária [10].
A dinâmica migratória já estava presente no debate, mas ganhou mais premência com a crise dos refugiados em 2015. Partidos com viés xenófobo se aproveitaram, em larga escala e de forma generalizada, da incapacidade das forças políticas tradicionais de darem resposta baseada na solidariedade e uma abordagem humanitária que, ao mesmo tempo, pudesse dialogar com os sentimentos de aumento da vulnerabilidade e ameaça de parcelas significativas da população.
Cameron, na verdade, entrou na onda quando apresentou como grande conquista de sua negociação com a UE o pré-plebiscito para dar direito ao RU de negar até 2023 acesso às políticas sociais para migrantes de outros países da UE, durante os primeiros quatro anos da sua entrada. Seja como for, não há como negar que a campanha pelo Brexit foi pesada na abordagem da migração, sugerindo que: ela é parte central dos problemas sociais e econômicos, que são reais e atingem grande parte da classe trabalhadora; a migração está fora de controle e isso é fruto das políticas formuladas em Bruxelas. A solução apresentada e repetida à exaustão foi “take back control of our borders” (retomar o controle sobre as nossas fronteiras).
Há de se lembrar que os jornais a favor do Brexit têm circulação muito maior que os que defenderam o “Remain” e entraram com força na ideia de projetar o plebiscito como se fosse uma luta pela retomada da soberania e da independência. Aliás, é da tradição dos tabloides ridicularizar a integração europeia e culpar a burocracia em Bruxelas. O próprio Boris Johnson, jornalista, teve um passado como correspondente de um desses jornais em Bruxelas.
Embora líderes dos conservadores como Boris Johnson tenham se distanciado dos excessos do UKIP, a questão da migração e do controle das fronteiras sempre esteve presente.
E agora?
Há vários cenários possíveis e impactos variados sobre a economia internacional, a geopolítica e a dinâmica política no continente. O mundo ainda estava se recuperando da crise financeira de 2008, passando por ensaios de retomada, que logo são seguidos por choques negativos com retorno do risco global. Nesse contexto, o Brexit teve impacto negativo imediato que ainda corre o risco de ter desdobramentos caso não se chegue a um consenso sobre os próximos passos e permaneça a situação de incerteza. No próprio RU isso tende a paralisar os investimentos, com reflexos negativos sobre o nível de emprego, e criar um clima de expectativas ruins. Há um movimento de empresas instaladas no RU, sobretudo do setor financeiro, de “migrar” para o continente. Novos investimentos, em particular aqueles ligados à perspectiva de acesso ao mercado interno da UE, entraram na lista de espera. De outro lado, a forte desvalorização da libra esterlina, que caiu mais de 10% até o início de julho, se consolidada, aumenta a competitividade das indústrias instaladas no RU, o que pode aliviar, embora não compensar, os demais impactos negativos.
Na área política podemos verificar uma tentativa por parte do governo britânico de ganhar tempo no intuito de diluir o impacto do plebiscito. Há de se lembrar que, formalmente, ele não é vinculante, e a maioria dos congressistas é contra o Brexit. Sem dúvida o custo político de simplesmente ignorar o plebiscito, após uma intensa campanha e comparecimento ao voto elevado (72%), seria muito alto e aumentaria ainda mais o descrédito generalizado na classe política. A proposta inicial de Cameron de se demitir somente em outubro, e não de imediato, seguia essa lógica. Ele teve de recuar para não aumentar ainda mais o clima de incerteza.
No continente, de um lado, há pressão para uma definição rápida para evitar contágio da paralisia e das incertezas e, de outro lado, lideranças como Merkel querem dar tempo para evitar passos precipitados. O dilema para a UE é entre a racionalidade econômica e política. A primeira leva a tentar um “soft Brexit”, criando condições para o RU continuar associado ao mercado comum. Há um caminho para isso via a (re)entrada do RU na EFTA e desta entrar na Zona Econômica Europeia (ZEE). Mas há um enorme paradoxo com essa solução: a ZEE prevê também livre circulação de pessoas e contribuições para Bruxelas, sem, porém, participar das estruturas de tomada de decisão.
No caso de um “soft Brexit” de fato, o governo britânico tentará negociar um controle interno sobre a migração e um acesso ao mercado comum europeu. Politicamente isso é complicado para a UE porque, se o preço para sair foi baixo, haverá um estímulo para movimentos parecidos em outros países, ainda mais sendo migração o ponto de negociação. Um Brexit com uma ruptura mais forte, ou seja, barreiras de entrada para o RU ter acesso ao mercado comum europeu, terá um impacto econômico muito negativo e obrigará o RU a reorientar sua economia, sem muita perspectiva de êxito. Além do mais, nesse caso é muito provável que os nacionalistas na Escócia, que votou majoritariamente pelo “Leave” (62%), buscarão por sua vez um referendo para sair do RU e “ficar” na UE [11].
De outro lado, não está claro como o Labour entrará numa campanha. Infelizmente, como mencionado, ela ficou paralisada pela contestação à liderança do partido. É imaginável que isso provoque novas eleições internas, com uma forte possibilidade de Jeremy Corbyn eleger-se novamente, já que ele não se deixou intimidar pela maioria da bancada de seu partido, que até com apoio de Cameron está tentando tirá-lo de vez. Tanto em uma possível nova eleição interna, como em uma possível nova eleição mais para frente, caberá ao Labour mostrar uma alternativa.
No fundo não é somente o desafio do Labour no RU, mas de todas as forças progressistas na Europa que entendem que há uma dupla luta a ser travada simultaneamente: por uma Europa de direitos sociais, solidariedade e contra a lógica do ajuste fiscal, o que, em última instância, significa uma nova pactuação política e social e um reforço das políticas comunitárias, e ao mesmo tempo uma luta intransigente contra o avanço da direita nacionalista, populista e xenófoba. Sem a primeira, não é possível travar a segunda batalha. É exatamente por esse motivos, por exemplo, que Yanis Varoufkis, apesar de toda sua briga com a UE, que o levou inclusive a se demitir como ministro de Finanças do governo de Tsípras, apoiou firmemente a campanha contra o Brexit [12]. Em vez de limitar, haverá de aumentar e democratizar os espaços de concertação em nível europeu. Apostar na desintegração da União Europeia é na melhor das hipóteses reforçar o capitalismo selvagem e, na pior, ajudar a direita xenófoba e nacionalista a se tornar uma força hegemônica. Nesse sentido seria muito desejável que o Labour, sob liderança de Jeremy, buscasse rapidamente um diálogo com todas as forças antiausteridade, para criar uma verdadeira saída.
Referências bibliográficas
Bogdanor, Vernon. Britain and Europe since the War. Lectures Graham College, 2013/2014. Disponível: http://www.gresham.ac.uk/lectures-and-events/britain-and-the-continent
Overbeek, Henk. Global Capitalism and Britain´s Decline. Amsterdam: UvA, 1988.
Young, Hugo. This Blessed Plot. Britain and Europe from Churchill to Blair. New York: Overlook Press, 1998.
Giorgio Romano Schutte é professor de Relações Internacionais e Economia da Universidade Federal do ABC (UFABC) e membro do Grupo de Reflexão sobre RI (GR-RI)
Notas
1. Hoje ela conta com 53 membros e funciona mais como uma rede de intercâmbio e exercício de poder diplomático do RU. Ver:http://thecommonwealth.org/
2. Ela sobrevive, e a volta do Reino Unido à EFTA é apontada por alguns defensores do Brexit como opção. São membros hoje Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suíça. É através da EFTA que os três primeiros países estão associados à União Europeia na chamada Área Econômica Europeia. Esta prevê livre circulação de capital, bens, serviços e pessoas, mas sem aderir às demais políticas da UE, como as políticas comercial, agrícola ou monetária. Esta adesão prevê contribuições para a UE.
3. Observe que, de acordo com relatos não contestados, Cameron teria declarado a seus colegas, em uma reunião do G-20 em 2014, que ganharia com dois terços dos votos...
4. Entre 1994 e 2007, Tony Blair ficou na presidência do Labour e levou o partido mais ao centro, esvaziando o espaço político para os sociais-democratas.
6. Embora o RU não participe da União Monetária, as metas de 3% de déficit público e 60% de dívida pública são uma referência.
7. Todos os dados são da Eurostat (http://ec.europa.eu/eurostat).
9. Nas eleições gerais de 2015 conseguiu 12,6% dos votos, foi o terceiro partido mais votado, atrás dos conservadores e trabalhistas, mas pelo sistema distrital elegeu somente um parlamentar.
10. Os números são referentes a 2014 e não dizem respeito ao local de nascimento, mas somente à cidadania. Verhttp://ec.europa.eu/eurostat/documents/2995521/7113991/3-18122015-BP-EN....
11. Não há nenhuma previsão no Tratado de Lisboa a respeito de uma região se tornar independente e poder herdar a filiação. Na época do referendo pela independência da Escócia em 2014, a UE se manifestou oficialmente dizendo que não seria o caso e deveria entrar no procedimento de nova filiação, que tende a demorar muitos anos. Mas não está excluído que, no caso de um Brexit, a UE mude de ideia e os governos aceitem uma emenda ao tratado, possibilitando um procedimento rápido para a possível filiação de uma Escócia independente sem ter que sair de fato da UE junto com o resto do RU. Isso dependerá muito do posicionamento da Espanha, que está diante de um movimento independentista majoritariamente pró-europeu na Catalunha.
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