sábado, 2 de julho de 2016

“O indígena, aquele que deve morrer”

Por Leonardo Boff, em seu blog:

A questão indígena é um problema que nunca foi equacionado nas políticas públicas brasileiras. Grande parte foi exterminada, desde o tempo da colonização e hoje compõem apenas 0,4% da população o que equivale a 817 mil pessoas constituindo 300 povos. Vivem muito concentrados em apenas 200 municípios entre os mais de cinco mil existentes no Brasil.

Praticamente eles não contam. Só a partir de 1991 que começaram a entrar no censo populacional efetivado pelo IBGE.

A questão tornou-se aguda, como sempre foi, neste ano com o assassinato de Clodiode Aquileu Rodrigues de Souza, um guarani-kaiowá, de 26 anos, um agente de saúde, morto à bala na fazenda Yvu, em Caarapó, a 273 km de Campo Grande em Mato Grosso do Sul. Outros cinco membros da comunidade foram feridos entre eles um menino de 12 anos. Cerca de 200 caminhonetes e carros cercaram as tendas dos indígenas que fizeram um “retomada” como eles dizem de terras que lhes pertenciam desde sempre. Os repressores foram logo atirando com balas de borracha e balas letais.

Os guarani-kaiowá viviam na região desde tempos imemoriais. Mas a partir de 1882 começaram a ser expulsos para dar lugar ao plantio de erva-mate.

Posteriormente, o governo começou vender as terras com o intuito de criar fazendas para plantio de soja e criação de gado. Os indígenas ficaram reclusos em 8 pequenas áreas.

Mas na medida em que a população crescia, sentiram-se forçados a sair. Ai começou a ganhar força a ideia de retomar as terras que sempre foram deles.

Criou-se um conflito perigoso entre os novos proprietários que mostravam sua documentação de compra e os indígenas argumentando serem os donos originários daquelas terras.

Ocorreram vários embates. Especialmente o Mato Grosso do Sul foi o cenário de várias mortes. No final de agosto de 2015, Semião Fernandes Vilhalva, de 24 anos, foi barbaramente executado com um tiro na cabeça.

Em 2013, Ambrósio Vilhalba, de 52 anos foi vitimado a facadas perto de Dourados.

Em 2001 ocorreu algo mais grave. O cacique Nísio Gomes de 59 anos foi cercado e eliminado por homens armados a mando de fazendeiros.

Sabe-se hoje que sob o regime militar muitos indígenas foram presos, torturados e mortos cujas ossadas estão sendo identificadas.

Atualmente causa grande preocupação pelo fato de o Presidente interino tentar nomear (ainda a ser confirmado) um general da reserva, Roberto Peternelli, como novo presidente da Funai. É um homem de extrema direita que faz apologia da ditadura militar e apoia o impeachment da Presidenta Dilma. Houve reações de todos os lados, vendo nesse ato uma injúria aos indígenas e aos direitos humanos, pois pode implicar uma militarização da questão indígena.

O que ocorreu em Caarapó é a continuação dos embates por terras que o Governo tarda em demarcar. Apenas 1/3 das terra estão demarcadas, outro 1/3 se encontram em estudo e o ultimo 1/3 sequer entrou ainda na agenda.

Mas a decisão dos indígenas é clara: “O nosso futuro depende do nosso território, da nossa terra. A gente pretende fazer cada vez mais retomadas porque estamos cansados da demora do Governo brasileiro em demarcar nossa terra. Tomamos uma posição e decidimos que essa é a nossa única saída”, diz Gomes, a liderança indígena da área onde está a fazenda Yvu.

Há uma questão mal colocada por parte do Governo que torna complexa a demarcação e é fonte de permanentes conflitos. Pela legislação, os indígenas não integrados são tidos como relativamente incapazes (artigo 8º do Estatuto do Índio). Eles não possuem direito de propriedade privada sobre as terras demarcadas, consideradas coletivas e tuteladas pela Funai. Ademais a Constituição proíbe a comercialização destas terras (art.231 § 4º) considerando-os minorenes.

Caso tivessem esse direito poderiam ter outra relação com os latifundiários que, sabendo que os indígenas nãos são proprietários, invadem suas terras para o plantio da soja ou a criação de gado. Mais prudente seria, considerá-los adultos e entregar títulos de propriedade privada da terra a que os povos indígenas têm direito e deixá-los organizar-se nas formas de produção que lhe são peculiares e incorporando as formas modernas. Logicamente deveriam ser acompanhados pelo CIMI, pela Funai e outros órgãos no sentido de criar neles a consciência de seus direitos e não se deixarem enganar pelos homens do latifúndio e do agro-negócio. Assim ocorreu, por exemplo, no Canadá com bastante sucesso e garantia dos direitos.

Mas quero transcrever as ponderações do conhecido jurista Dalmo Dalari que fez a propósito destas minhas afirmações. Cabe ouvi-lo pois é conhecedor da questão. Refere-se ao fato “de índios serem proprietarios de suas terras, para melhor defende-las. Participei da discussão desse ponto na Constituinte”, diz Dalari “e fui dos que sustentaram que era preferível dar ao índio a condição jurídica de ocupante, com direito ao uso exclusivo das terras que tradicionalmente ocupam e direito sobre as riquezas nelas existentes”.

Continua Dalari: ”Muitos índios foram facilmente enganados por grileiros de luxo e falsos religiosos, pois muitos índios ja se mostraram deslumbrados com o oferecimento de tratores, motoserras e armas. E se forem proprietários das terras serão envolvidos por compradores, que irão fazer propostas de compra deslumbrantes e enganosas, com cláusulas dúbias que darão aos índios a ilusão de que eles continuarão habitando nas terras e sobrevivendo de seus produtos”.

“Para evitar essa armadilha recuperamos um conceito que tem fundamento histórico: a ocupação permanente. Os índios não são proprietários nem posseiros, mas ocupantes permanentes, que não podem ser removidos e têm direito sobre todas as riquezas existentes no seu território de ocupação tradicional. Esse conceito apareceu na primeira Lei de Terras brasileira, Lei 601 de 1850, cujo artigo 5 estabeleceu: “serão legitimadas as posses mansas e pacíficas, adquiridas por ocupação primária”. Graças a esse dispositivo as terras indígenas não foram incluídas entre as terras devolutas, que passaram para o patrimônio das Províncias e depois dos Estados, que fizeram vendas e doações para o agro-negócio. Ressalto aqui que as terras indígenas nunca foram enquadradas como devolutas e assim nunca integraram o patrimônio dos Estados, não tendo qualquer valor legal as doações e vendas de terras indígenas feitas por alguns Estados, como se fossem terras devolutas integrantes de seu patrimônio”.

“Um ponto fundamental é que as terras indígenas são patrimônio público federal, são de propriedade da União (art.20, inciso XI da Constituição). E os índios têm o direito constitucional de ocupação permanente e exclusiva (art. 231 da Constituição). Em decorrência, os órgãos federais, como o Ministério Público Federal e a Polícia Federal, estão legalmente obrigados a proteger os direitos dos ocupantes legítimos, os índios, repelindo os invasores. Isso é o que está faltando e deve ser denunciado e exigido: a atuação efetiva e eficiente dos órgãos federais legalmente competentes, para defesa do patrimônio da União contra os invasores, defendendo os direitos dos ocupantes legítimos, que são as comunidades indígenas”.

Este esclarecimento feito pelo eminente jurista Dalmo Dalari, por e-mail de 30/06/2016 vem esclarecer melhor a situação de direito dos território de nossos povos originários. A lei é clara. Não são, no entanto, como sabemos, coerentes as práticas daqueles que de forma inescrupulosa e ilegal avançam sobre as terras indígenas par alargaram seus espaços de produção de soja ou do cultivo de gado.

Esse sistemático desrespeito à legislação, e o pouco empenho dos governos de demarcarem as terras indígenas traz a eles imenso sofrimento, insegurança e até desespero.

Há um número significativo de suicídios. O organismo da Igreja que trabalha a questão indígena, o CIMI, computou na última estatística de 2014 um suicídio a cada três dias. A mortalidade infantil é altíssima. Em 2014, 785 crianças até a idade de 5 anos morreram por doenças evitáveis. Isso ocorre especialmente entre os xavantes do Mato Grosso.

Isso nos faz lembrar a denúncia feita por alguns bispos, missionários que publicaram nos anos 70 do século passado o impressionante: documento: “y-juca-pirama. O índio: aquele que deve morrer”.

Ele guarda permanente atualidade e traduz a situação atual dos povos originários de nosso país.

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