Por Tereza Cruvinel, em seu blog:
Nestes tempos de espanto diário com a transfiguração do Brasil em algo que vai se tornando irreconhecível, recordo o primeiro capítulo de “Conversa na Catedral”, sem dúvida o melhor romance de Mario Vargas Llosa, e não porque foi escrito quando ele ainda era um intelectual de esquerda. Num reencontro tardio, o fracassado jornalista Zavalita tem uma longa e etílica conversa com Ambrósio, antigo empregado de sua família. Exumando lembranças de um passado esperançoso e sepultado, ele se pergunta algumas vezes: “mas em que ponto foi que o Peru se fodeu?”. Lá estava em cacos o Peru que fora promissor, sob o tacão da ditadura de Odría, nos anos 1960. Aqui estamos nós, sob algo que não tem nome exato, sob esta desconstrução diária do que havia, sob violências de formas diversas e uma incerteza recorrente: haverá salvação para nós e o Brasil? Ou do descarrilhamento atual virá um país despedaçado, em que as partes não se entendem nem se reconhecem?.
No final do ano passado, Lula comparou o Brasil a um trem descarrilhado. Mas era só o começo. Ao longo deste ano, o surrealismo foi se impondo e tudo foi sendo naturalizado. Achamos natural que haja uma presidente eleita e afastada do cargo, sem crime de responsabilidade claro e provado, apesar de algumas demonstrações em contrário e de algumas confissões sobre a desimportância de aspectos jurídicos diante de um imperativo político, a troca de guarda no poder. Aliás, nesta sexta-feira, 29, vésperas do mês preferido pelas tragédias políticas, o vice-presidente em exercício Michel Temer explicou o que entende pelo impeachment: “Essa questão do impeachment no Senado não depende da nossa atuação. Depende da avaliação política –não uma avaliação jurídica– que o Senado está fazendo. Eu penso que o Senado vai avaliar as condições políticas de quem está hoje no exercício e de quem esteve no exercício da Presidência até um certo período.” Ou seja, trata-se da escolha entre Dilma e ele, sem povo, sem voto e sem urna. Se não é golpe, democracia não é. Mas tudo parece natural, a vida segue, os ipês começam a florir.
Parece natural também que o vice, ao ocupar interinamente o cargo, não tenha tido qualquer constrangimento em agir como se tivesse sido eleito, mudando tudo e até promovendo expurgos, como se eleito tivesse sido com uma programa oposto ao da eleição em que figurou na chapa vitoriosa.
Deve ter se perdido em algum desvão o país que em 2010 conferia mais de 90% de aprovação ao presidente que, por todas as transformações positivas propiciadas por seu governo, tornara-se o mais popular da História, Luiz Inácio Lula da Silva. Hoje, 62,6%, segundo apurou recentemente o instituto Paraná Pesquisas. 62,6% defendem a sua prisão. Crimes? Nenhum provado. Mas há uma operação, um juiz e alguns procuradores que mesmo assim estão dispostos a condená-lo por obras em um sítio que não é seu, e num apartamento que desistiu de comprar. Não há provas (atos de ofício) de que Lula, por benefícios que concedeu às empreiteiras, recebeu tais mimos como propina. Não importa, são indícios, dizem eles.
Os mesmos jornais de hoje noticiam com naturalidade algo que em outros tempos espantaria. Lula apresentou ao Comitê de Direitos Humanos da ONU, através do advogado inglês Geofferey Robertson, uma petição em que denuncia as violações do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e os recorrentes abusos de poder praticados contra sua pessoa pelo juiz Sérgio Moro, que preside os processos da Lava Jato. Lula corre riscos e é perseguido em seu próprio país? perguntarão lá fora. Aqui, as autoridades ignoraram fato tão grave e singular. Exceto Moro e a Lava Jato, que em represália fizeram vazar mais informações sobre as tais obras no dito sítio: Lula determinou que fossem feitas, informaram sem dar a cara a tapa. Sinceramente, a ditadura civil-militar se incomodava mais quando chegava lá fora uma denúncia sobre os crimes que cometia contra os direitos humanos. Pelo menos desmentia, atribuindo tudo aos “inimigos da revolução”.
Mas o que fez com que tantos, hoje, queiram ver Lula por conta de “indícios” que podem torná-lo inelegível em 2018? Certamente as nuvens de veneno que foram sendo sopradas sobre nós e agora estão chovendo. O Brasil é um país intoxicado e não parece haver antídoto capaz de restaurar sua antiga homeostase, aquele modo antigo modo de viver em que as diferenças existiam. Em que todos tinham seu Outro mas não desejavam destruí-lo.
Mas ficando livre de Dilma, de Lula, do PT e das esquerdas, com políticas “populistas” para os pobres, o país vai entrar nos trilhos, dizem os vencedores do golpe, no palco do grande faz-de-conta. Pois os mesmos jornais que pintam a paisagem para vender esta ilusão e abrir caminho para agosto são obrigados a publicar notícias que a desmentem. Nesta sexta-feira de tristes notícias, o Banco Central informou que o resultado das contas públicas para junho e para o primeiro semestre foi o pior da série histórica iniciada em 2001. Mas Temer não veio para sanear o estrago de Dilma?
A última sexta-feira antes de agosto nos informa também, através do IBGE/PNAD, que aumentou o número de pessoas vivendo na angústia do desemprego. A taxa do segundo trimestre fechou em 11,3%, contra os 10,9% do primeiro. É a maior desde que a série foi iniciada em 2012. São 11,6 milhões de pessoas os que não conseguem trabalhar nem pagar as contas. Alguma providência? Temer mandou dar um aumento para a Polícia Federal.
Não há melhora algumas das expectativas sobre a economia, como alardeado. Mas vai se acreditando no faz de conta pois, do contrário, acreditar em quê?
Voltando a Zavalita, onde foi que o Brasil se perdeu? Um Zavalita mais velho recordará que tudo parecia caminhar bem, que houve esperanças e sonhos entre 1945 e 1964, até que vieram as correntes de ódio e caímos na ditadura de 21 anos. Encerrada a transição, com seus trancos e barrancos, incluindo um impeachment – este com crime demonstrado – a partir do governo Itamar Franco (1992) teve início outra fase em que o trem andou nos trilhos, e andou para a frente. Inflação controlada por Itamar/FHC, Lula promoveu crescimento e distribuição de renda. Ganharam os mais pobres, ganharam os mais ricos, ganharam as empresas. E aí, veio junho de 2013. Ainda que as explicações não sejam claras, foi ali que o trem começou a descarrilhar, na economia e na política. Logo depois a Lava Jato ganhou impulso e espalhou o sentimento de desolação. Nada presta, ninguém presta, tudo está podre. E salve-se quem puder. Inclusive com delações premiadas e vazamentos selecionados.
Houve a mudança no cenário externo, é verdade, com a queda nos preços das commodities, afetando as exportações e o crescimento interno. A própria Dilma reconheceu que houve “erro de calibragem” nas políticas anti-cíclicas, em que o Estado gastou com desonerações, crédito fácil e investimentos próprios para manter a economia aquecida. Isso explica a desorganização fiscal mas não este descarrilhamento completo da vida nacional.
Dilma ganhou em 2014 uma eleição que parecia destinada a perder. Mas tudo teria sido diferente se a oposição tivesse aceitado que perdeu. Pediu recontagem de votos, deu corda para os que começaram a falar em impeachment, antes mesmo da segunda posse da presidente reeleita. Ela tomou um chá de sumiço inicial e aceitou fazer o que pediam, nomeando um ministro da Fazenda encarregado de implementar um arrocho fiscal. A Câmara passou ao comando de Eduardo Cunha, que tinha uma bancada conservadora de mais de cem deputados, e em vez de ajuste, o Congresso votou pautas bombas, demolidoras das contas públicas. Aí chegamos a 17 de abril, e agora chegaremos a agosto.
A Lava Jato teria sido benigna se, ao atacar a ferida da promiscuidade entre partidos/políticos e empresários, tivesse mirado o sistema, e não o PT e seu governo. Este desvio de objetivo contribuiu para o golpe e terminou nesta caçada a Lula, que o leva a denunciar lá fora as perseguições que sofre em seu país.
Mas quando a demolição de um sistema político começa, não há como salvar algumas paredes. Aí estão novamente as notícias, aqui já registradas, de que a Odebrecht denunciará pelo menos dez governadores e ex-governadores e mais de 100 parlamentares.
O sistema está ruindo e não há quem se habilite a restaurá-lo. Em volta, só destruição: da economia, das regras democráticas, do sistema político-eleitoral e, principalmente, de tudo o que representava o Brasil que não há mais: a tolerância para com a diferença, a capacidade de conviver com o outro, fosse ele pobre ou rico, conservador ou progressista, urbano ou rural. Agora, temos até intolerância religiosa. E uma ideologia retrógrada que vai sendo ministrada sutilmente, que mistura racismo, misoginia e preconceitos de toda ordem.
Quando tudo desmorona, os mais jovens, que viveram os últimos 20 anos esperançosos e não se lembram nem da ditadura nem da hiperinflação, têm ainda mais razões para se perguntar: onde foi que o Brasil se perdeu?
Nestes tempos de espanto diário com a transfiguração do Brasil em algo que vai se tornando irreconhecível, recordo o primeiro capítulo de “Conversa na Catedral”, sem dúvida o melhor romance de Mario Vargas Llosa, e não porque foi escrito quando ele ainda era um intelectual de esquerda. Num reencontro tardio, o fracassado jornalista Zavalita tem uma longa e etílica conversa com Ambrósio, antigo empregado de sua família. Exumando lembranças de um passado esperançoso e sepultado, ele se pergunta algumas vezes: “mas em que ponto foi que o Peru se fodeu?”. Lá estava em cacos o Peru que fora promissor, sob o tacão da ditadura de Odría, nos anos 1960. Aqui estamos nós, sob algo que não tem nome exato, sob esta desconstrução diária do que havia, sob violências de formas diversas e uma incerteza recorrente: haverá salvação para nós e o Brasil? Ou do descarrilhamento atual virá um país despedaçado, em que as partes não se entendem nem se reconhecem?.
No final do ano passado, Lula comparou o Brasil a um trem descarrilhado. Mas era só o começo. Ao longo deste ano, o surrealismo foi se impondo e tudo foi sendo naturalizado. Achamos natural que haja uma presidente eleita e afastada do cargo, sem crime de responsabilidade claro e provado, apesar de algumas demonstrações em contrário e de algumas confissões sobre a desimportância de aspectos jurídicos diante de um imperativo político, a troca de guarda no poder. Aliás, nesta sexta-feira, 29, vésperas do mês preferido pelas tragédias políticas, o vice-presidente em exercício Michel Temer explicou o que entende pelo impeachment: “Essa questão do impeachment no Senado não depende da nossa atuação. Depende da avaliação política –não uma avaliação jurídica– que o Senado está fazendo. Eu penso que o Senado vai avaliar as condições políticas de quem está hoje no exercício e de quem esteve no exercício da Presidência até um certo período.” Ou seja, trata-se da escolha entre Dilma e ele, sem povo, sem voto e sem urna. Se não é golpe, democracia não é. Mas tudo parece natural, a vida segue, os ipês começam a florir.
Parece natural também que o vice, ao ocupar interinamente o cargo, não tenha tido qualquer constrangimento em agir como se tivesse sido eleito, mudando tudo e até promovendo expurgos, como se eleito tivesse sido com uma programa oposto ao da eleição em que figurou na chapa vitoriosa.
Deve ter se perdido em algum desvão o país que em 2010 conferia mais de 90% de aprovação ao presidente que, por todas as transformações positivas propiciadas por seu governo, tornara-se o mais popular da História, Luiz Inácio Lula da Silva. Hoje, 62,6%, segundo apurou recentemente o instituto Paraná Pesquisas. 62,6% defendem a sua prisão. Crimes? Nenhum provado. Mas há uma operação, um juiz e alguns procuradores que mesmo assim estão dispostos a condená-lo por obras em um sítio que não é seu, e num apartamento que desistiu de comprar. Não há provas (atos de ofício) de que Lula, por benefícios que concedeu às empreiteiras, recebeu tais mimos como propina. Não importa, são indícios, dizem eles.
Os mesmos jornais de hoje noticiam com naturalidade algo que em outros tempos espantaria. Lula apresentou ao Comitê de Direitos Humanos da ONU, através do advogado inglês Geofferey Robertson, uma petição em que denuncia as violações do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e os recorrentes abusos de poder praticados contra sua pessoa pelo juiz Sérgio Moro, que preside os processos da Lava Jato. Lula corre riscos e é perseguido em seu próprio país? perguntarão lá fora. Aqui, as autoridades ignoraram fato tão grave e singular. Exceto Moro e a Lava Jato, que em represália fizeram vazar mais informações sobre as tais obras no dito sítio: Lula determinou que fossem feitas, informaram sem dar a cara a tapa. Sinceramente, a ditadura civil-militar se incomodava mais quando chegava lá fora uma denúncia sobre os crimes que cometia contra os direitos humanos. Pelo menos desmentia, atribuindo tudo aos “inimigos da revolução”.
Mas o que fez com que tantos, hoje, queiram ver Lula por conta de “indícios” que podem torná-lo inelegível em 2018? Certamente as nuvens de veneno que foram sendo sopradas sobre nós e agora estão chovendo. O Brasil é um país intoxicado e não parece haver antídoto capaz de restaurar sua antiga homeostase, aquele modo antigo modo de viver em que as diferenças existiam. Em que todos tinham seu Outro mas não desejavam destruí-lo.
Mas ficando livre de Dilma, de Lula, do PT e das esquerdas, com políticas “populistas” para os pobres, o país vai entrar nos trilhos, dizem os vencedores do golpe, no palco do grande faz-de-conta. Pois os mesmos jornais que pintam a paisagem para vender esta ilusão e abrir caminho para agosto são obrigados a publicar notícias que a desmentem. Nesta sexta-feira de tristes notícias, o Banco Central informou que o resultado das contas públicas para junho e para o primeiro semestre foi o pior da série histórica iniciada em 2001. Mas Temer não veio para sanear o estrago de Dilma?
A última sexta-feira antes de agosto nos informa também, através do IBGE/PNAD, que aumentou o número de pessoas vivendo na angústia do desemprego. A taxa do segundo trimestre fechou em 11,3%, contra os 10,9% do primeiro. É a maior desde que a série foi iniciada em 2012. São 11,6 milhões de pessoas os que não conseguem trabalhar nem pagar as contas. Alguma providência? Temer mandou dar um aumento para a Polícia Federal.
Não há melhora algumas das expectativas sobre a economia, como alardeado. Mas vai se acreditando no faz de conta pois, do contrário, acreditar em quê?
Voltando a Zavalita, onde foi que o Brasil se perdeu? Um Zavalita mais velho recordará que tudo parecia caminhar bem, que houve esperanças e sonhos entre 1945 e 1964, até que vieram as correntes de ódio e caímos na ditadura de 21 anos. Encerrada a transição, com seus trancos e barrancos, incluindo um impeachment – este com crime demonstrado – a partir do governo Itamar Franco (1992) teve início outra fase em que o trem andou nos trilhos, e andou para a frente. Inflação controlada por Itamar/FHC, Lula promoveu crescimento e distribuição de renda. Ganharam os mais pobres, ganharam os mais ricos, ganharam as empresas. E aí, veio junho de 2013. Ainda que as explicações não sejam claras, foi ali que o trem começou a descarrilhar, na economia e na política. Logo depois a Lava Jato ganhou impulso e espalhou o sentimento de desolação. Nada presta, ninguém presta, tudo está podre. E salve-se quem puder. Inclusive com delações premiadas e vazamentos selecionados.
Houve a mudança no cenário externo, é verdade, com a queda nos preços das commodities, afetando as exportações e o crescimento interno. A própria Dilma reconheceu que houve “erro de calibragem” nas políticas anti-cíclicas, em que o Estado gastou com desonerações, crédito fácil e investimentos próprios para manter a economia aquecida. Isso explica a desorganização fiscal mas não este descarrilhamento completo da vida nacional.
Dilma ganhou em 2014 uma eleição que parecia destinada a perder. Mas tudo teria sido diferente se a oposição tivesse aceitado que perdeu. Pediu recontagem de votos, deu corda para os que começaram a falar em impeachment, antes mesmo da segunda posse da presidente reeleita. Ela tomou um chá de sumiço inicial e aceitou fazer o que pediam, nomeando um ministro da Fazenda encarregado de implementar um arrocho fiscal. A Câmara passou ao comando de Eduardo Cunha, que tinha uma bancada conservadora de mais de cem deputados, e em vez de ajuste, o Congresso votou pautas bombas, demolidoras das contas públicas. Aí chegamos a 17 de abril, e agora chegaremos a agosto.
A Lava Jato teria sido benigna se, ao atacar a ferida da promiscuidade entre partidos/políticos e empresários, tivesse mirado o sistema, e não o PT e seu governo. Este desvio de objetivo contribuiu para o golpe e terminou nesta caçada a Lula, que o leva a denunciar lá fora as perseguições que sofre em seu país.
Mas quando a demolição de um sistema político começa, não há como salvar algumas paredes. Aí estão novamente as notícias, aqui já registradas, de que a Odebrecht denunciará pelo menos dez governadores e ex-governadores e mais de 100 parlamentares.
O sistema está ruindo e não há quem se habilite a restaurá-lo. Em volta, só destruição: da economia, das regras democráticas, do sistema político-eleitoral e, principalmente, de tudo o que representava o Brasil que não há mais: a tolerância para com a diferença, a capacidade de conviver com o outro, fosse ele pobre ou rico, conservador ou progressista, urbano ou rural. Agora, temos até intolerância religiosa. E uma ideologia retrógrada que vai sendo ministrada sutilmente, que mistura racismo, misoginia e preconceitos de toda ordem.
Quando tudo desmorona, os mais jovens, que viveram os últimos 20 anos esperançosos e não se lembram nem da ditadura nem da hiperinflação, têm ainda mais razões para se perguntar: onde foi que o Brasil se perdeu?
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