Por Jean Wyllys, na revista Caros Amigos:
Toda mentira bem elaborada, para ser convincente, precisa começar apontando alguns fatos verdadeiros. É a arte da falácia, na qual os editorialistas do jornal O Globo são mestres e doutores.
É fato: o sistema universitário brasileiro ainda é profundamente injusto. O acesso dos mais pobres à universidade pública ainda é minoritário, mesmo tendo melhorado na última década, graças a algumas políticas públicas de inclusão dos governos petistas que, contudo, apesar de terem ajudado, foram insuficientes.
Também é fato: muitas pessoas pobres que não conseguiram passar na universidade pública estudam em universidades particulares de duvidosa qualidade, muito diferentes das universidades particulares de elite, e muitas pessoas dos segmentos mais ricos da população, depois de estudarem em escolas particulares de elite, ingressam às melhores universidades públicas. E eles poderiam pagar. Também é fato: o estado brasileiro e muitos estados da federação estão quase falidos.
Contudo, não é fato que a solução para esses problemas seja acabar com a gratuidade do ensino universitário público. Essa é uma grande mentira. A experiência internacional mostra que esse modelo é um fracasso e só produz mais desigualdade, mais injustiça social, mais exclusão. E não soluciona o problema do déficit fiscal, nem melhora a universidade pública.
Em seu Comunicado nº 75, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) revela a importância que os gastos sociais adquiriram no Brasil para o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) e a redução das desigualdades.
Segundo o estudo, que usou como base dados de 2006, cada R$ 1 gasto com educação pública gera R$ 1,85 para o PIB. A título de comparação, o gasto de R$ 1 com juros sobre a dívida pública, segundo o mesmo estudo, gerará apenas R$ 0,71 de crescimento do PIB. Ou seja, o dinheiro gasto com educação de qualidade, como é o caso das universidade federais, é um excelente investimento dos recursos públicos.
Então, por que que o editorial do Globo mente?
Primeira mentira do Globo: como aponta o economista Bruno Mandelli, a ideia de que "as universidade públicas só beneficiam os ricos, enquanto aos pobres restam as universidades particulares" é um mito bastante difundido, porém completamente equivocado.
Explica Mandelli: O ensino público é elitizado, mas não há nada que indique que o sistema privado de ensino superior seja mais popular. Pelo contrário, os levantamentos disponíveis indicam que, em termos de renda, os estudantes das universidades públicas são inclusive ligeiramente em média mais pobres que os estudantes das privadas.
Segundo a Pnad 2014, por exemplo, os estudantes que faziam parte dos 20% mais ricos da população brasileira correspondiam a 36% dos estudantes do ensino superior público e 40% do ensino superior privado. Ou seja, há mais 'ricos' no sistema privado do que no público.
Na ponta oposta, os estudantes que faziam parte dos 20% mais pobres da população brasileira representavam 7% dos estudantes do ensino superior público e apenas 3,4% do ensino superior privado. Ou seja, os 'mais pobres' estão nas universidades públicas no dobro da proporção verificada nas privadas.
Segunda mentira: ensino pago não soluciona o problema, muito pelo contrário. Países que adotaram esse caminho, como o Chile, têm um sistema universitário altamente elitizado e excludente – e hoje estão querendo mudar.
Acabar com a política pinochetista que O Globo propõe para o Brasil foi uma das promessas de campanha da presidenta Michele Bachelet! Outro exemplo paradigmático são os EUA, onde as possibilidades de acesso à universidade (e a qual universidade) dependem da renda das famílias, e os jovens mais pobres ou de classe média (sim, também a classe média) só podem estudar na universidade se endividando por décadas ou conseguindo uma bolsa esportiva, que os obriga a dedicar mais tempo ao treinamento que aos livros.
Terceira mentira: as bolsas não são suficientes para corrigir as injustiças do ensino pago. O Prouni é uma prova disso. Embora esse programa tenha tido alguns efeitos positivos (de fato, ajudou muitos jovens de baixa renda a entrar na universidade), ele não acabou com a elitização da universidade pública, beneficiou o ensino particular, ajudou à proliferação de fábricas de diplomas de baixa qualidade e não solucionou o problema da permanência.
Quarta mentira: o ensino gratuito não é a causa do déficit fiscal. Vejamos, por exemplo, o caso da UERJ. A principal universidade do estado do Rio está quase falida, enquanto o governo local do PMDB desperdiça bilhões de reais em isenções fiscais que geram pouquíssimo emprego (da mesma forma que o governo federal os desperdiça com empréstimos de bancos públicos a juros de privilégio para as grandes empresas; por exemplo, o grupo Globo), ou com dívidas bilionárias de empresários, que acabam não sendo cobradas, ou com obras superfaturadas.
No nível federal, os recursos que o estado receberia acabando com a gratuidade das universidades públicas (com altíssimo custo social) são nada, se comparados ao que poderia ser arrecadado taxando as grandes fortunas, reestruturando a tabela do imposto de renda ou acabando com a isenção às operações financeiras e ao mercado de capitais.
Quinta mentira: se quisermos cobrar aos ricos que usam a universidade pública, a solução não é instaurar uma mensalidade. Estabeleçamos um tributo adicional para as faixas mais altas do Imposto de Renda (depois de mudar a tabela para que estas sejam pagas pelos ricos de verdade e não pela classe média) que alcance os cidadãos com alta renda que estudaram e se formaram numa universidade pública, e destinemos esse dinheiro a um fundo especial para abrir mais vagas e pagar bolsas de permanência para os estudantes mais pobres.
Dessa forma, o pagamento não seria uma barreira, mas uma devolução à sociedade paga por aqueles que já usufruíram da universidade pública e se deram muito bem na vida.
E se quisermos aumentar o número de pessoas de baixa renda nas universidades públicas, ampliemos a oferta de vagas, invistamos no ensino fundamental e médio (a baixa qualidade dele, combinada com o Enem e o vestibular, funciona como barreira para o ingresso dos mais pobres às universidades públicas, onde os que estudaram em boas escolas particulares têm mais chances de passar). E demos bolsas de permanência para que os mais pobres não abandonem os estudos.
Em resumo, o jornal O Globo tentou nos enganar. As soluções são outras. A educação pública gratuita é uma conquista democrática da qual jamais abriremos mão e é imprescindível para o desenvolvimento econômico, social e humano do Brasil.
* Jean Wyllys é jornalista e linguista, é deputado federal pelo PSOL-RJ e integrante da frente parlamentar em defesa dos direitos LGBT.
Toda mentira bem elaborada, para ser convincente, precisa começar apontando alguns fatos verdadeiros. É a arte da falácia, na qual os editorialistas do jornal O Globo são mestres e doutores.
É fato: o sistema universitário brasileiro ainda é profundamente injusto. O acesso dos mais pobres à universidade pública ainda é minoritário, mesmo tendo melhorado na última década, graças a algumas políticas públicas de inclusão dos governos petistas que, contudo, apesar de terem ajudado, foram insuficientes.
Também é fato: muitas pessoas pobres que não conseguiram passar na universidade pública estudam em universidades particulares de duvidosa qualidade, muito diferentes das universidades particulares de elite, e muitas pessoas dos segmentos mais ricos da população, depois de estudarem em escolas particulares de elite, ingressam às melhores universidades públicas. E eles poderiam pagar. Também é fato: o estado brasileiro e muitos estados da federação estão quase falidos.
Contudo, não é fato que a solução para esses problemas seja acabar com a gratuidade do ensino universitário público. Essa é uma grande mentira. A experiência internacional mostra que esse modelo é um fracasso e só produz mais desigualdade, mais injustiça social, mais exclusão. E não soluciona o problema do déficit fiscal, nem melhora a universidade pública.
Em seu Comunicado nº 75, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) revela a importância que os gastos sociais adquiriram no Brasil para o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) e a redução das desigualdades.
Segundo o estudo, que usou como base dados de 2006, cada R$ 1 gasto com educação pública gera R$ 1,85 para o PIB. A título de comparação, o gasto de R$ 1 com juros sobre a dívida pública, segundo o mesmo estudo, gerará apenas R$ 0,71 de crescimento do PIB. Ou seja, o dinheiro gasto com educação de qualidade, como é o caso das universidade federais, é um excelente investimento dos recursos públicos.
Então, por que que o editorial do Globo mente?
Primeira mentira do Globo: como aponta o economista Bruno Mandelli, a ideia de que "as universidade públicas só beneficiam os ricos, enquanto aos pobres restam as universidades particulares" é um mito bastante difundido, porém completamente equivocado.
Explica Mandelli: O ensino público é elitizado, mas não há nada que indique que o sistema privado de ensino superior seja mais popular. Pelo contrário, os levantamentos disponíveis indicam que, em termos de renda, os estudantes das universidades públicas são inclusive ligeiramente em média mais pobres que os estudantes das privadas.
Segundo a Pnad 2014, por exemplo, os estudantes que faziam parte dos 20% mais ricos da população brasileira correspondiam a 36% dos estudantes do ensino superior público e 40% do ensino superior privado. Ou seja, há mais 'ricos' no sistema privado do que no público.
Na ponta oposta, os estudantes que faziam parte dos 20% mais pobres da população brasileira representavam 7% dos estudantes do ensino superior público e apenas 3,4% do ensino superior privado. Ou seja, os 'mais pobres' estão nas universidades públicas no dobro da proporção verificada nas privadas.
Segunda mentira: ensino pago não soluciona o problema, muito pelo contrário. Países que adotaram esse caminho, como o Chile, têm um sistema universitário altamente elitizado e excludente – e hoje estão querendo mudar.
Acabar com a política pinochetista que O Globo propõe para o Brasil foi uma das promessas de campanha da presidenta Michele Bachelet! Outro exemplo paradigmático são os EUA, onde as possibilidades de acesso à universidade (e a qual universidade) dependem da renda das famílias, e os jovens mais pobres ou de classe média (sim, também a classe média) só podem estudar na universidade se endividando por décadas ou conseguindo uma bolsa esportiva, que os obriga a dedicar mais tempo ao treinamento que aos livros.
Terceira mentira: as bolsas não são suficientes para corrigir as injustiças do ensino pago. O Prouni é uma prova disso. Embora esse programa tenha tido alguns efeitos positivos (de fato, ajudou muitos jovens de baixa renda a entrar na universidade), ele não acabou com a elitização da universidade pública, beneficiou o ensino particular, ajudou à proliferação de fábricas de diplomas de baixa qualidade e não solucionou o problema da permanência.
Quarta mentira: o ensino gratuito não é a causa do déficit fiscal. Vejamos, por exemplo, o caso da UERJ. A principal universidade do estado do Rio está quase falida, enquanto o governo local do PMDB desperdiça bilhões de reais em isenções fiscais que geram pouquíssimo emprego (da mesma forma que o governo federal os desperdiça com empréstimos de bancos públicos a juros de privilégio para as grandes empresas; por exemplo, o grupo Globo), ou com dívidas bilionárias de empresários, que acabam não sendo cobradas, ou com obras superfaturadas.
No nível federal, os recursos que o estado receberia acabando com a gratuidade das universidades públicas (com altíssimo custo social) são nada, se comparados ao que poderia ser arrecadado taxando as grandes fortunas, reestruturando a tabela do imposto de renda ou acabando com a isenção às operações financeiras e ao mercado de capitais.
Quinta mentira: se quisermos cobrar aos ricos que usam a universidade pública, a solução não é instaurar uma mensalidade. Estabeleçamos um tributo adicional para as faixas mais altas do Imposto de Renda (depois de mudar a tabela para que estas sejam pagas pelos ricos de verdade e não pela classe média) que alcance os cidadãos com alta renda que estudaram e se formaram numa universidade pública, e destinemos esse dinheiro a um fundo especial para abrir mais vagas e pagar bolsas de permanência para os estudantes mais pobres.
Dessa forma, o pagamento não seria uma barreira, mas uma devolução à sociedade paga por aqueles que já usufruíram da universidade pública e se deram muito bem na vida.
E se quisermos aumentar o número de pessoas de baixa renda nas universidades públicas, ampliemos a oferta de vagas, invistamos no ensino fundamental e médio (a baixa qualidade dele, combinada com o Enem e o vestibular, funciona como barreira para o ingresso dos mais pobres às universidades públicas, onde os que estudaram em boas escolas particulares têm mais chances de passar). E demos bolsas de permanência para que os mais pobres não abandonem os estudos.
Em resumo, o jornal O Globo tentou nos enganar. As soluções são outras. A educação pública gratuita é uma conquista democrática da qual jamais abriremos mão e é imprescindível para o desenvolvimento econômico, social e humano do Brasil.
* Jean Wyllys é jornalista e linguista, é deputado federal pelo PSOL-RJ e integrante da frente parlamentar em defesa dos direitos LGBT.
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