segunda-feira, 15 de agosto de 2016

O golpe e a salvação de Cunha

Por Aldo Fornazieri, no Jornal GGN:

Ainda existe e existirá forte polêmica acerca da natureza do processo político que levou ao afastamento da presidente Dilma Rousseff. Ou seja: o impeachment foi um processo legal e legítimo ou foi um golpe de Estado? Com o passar do tempo, este embate perderá importância política imediata, mas continuará como uma longa batalha pelas décadas futuras no âmbito da historiografia. O que estará em jogo é uma disputa de narrativas e de interpretações acerca dos acontecimentos históricos ocorridos no presente.

Existem dois tipos de equívocos naqueles que dizem que o afastamento de Dilma não foi um golpe. O mais simples é aquele que identifica o golpe de Estado apenas como uma intervenção militar que afasta o governante legítimo e instaura um regime de força. Para estes, bastaria ler o verbete “Golpe de Estado” do Dicionário de Política de Norberto Bobbio para perceber o reducionismo de seus raciocínios. Bobbio nota que o conceito de “Golpe de Estado” é pluralista e vai mudando de significado ao longo da história.

Surgido no século XVII, somente a partir do século XX, o coup d’Etat teve como atores principais chefes militares, detentores da força na burocracia estatal. A questão de um golpe de Estado, indica o verbete, é quem o faz. E neste aspecto, há uma constante histórica nos golpes de Estado: “é um ato de órgãos do próprio Estado”. Pode ser desfechado pelo próprio governante, por lideranças políticas do governo ou da oposição, por funcionários da burocracia civil, por militares ou por uma combinação desses vários segmentos.

Dentre os cinco principais indicadores destacados por Bobbio para caracterizar o golpe de Estado, um chama a atenção: “As consequências mais habituais do golpe de Estado consistem na simples mudança da liderança política”. Se o golpe é militar, normalmente ocorre a dissolução dos partidos políticos, repressão e restrição de direitos. Quanto aos partidos, não parece ser o caso presente, com exceção de um notório golpista – Gilmar Mendes – que quer dissolver o PT.

Desfeito o equivoco daqueles que reduzem a ideia do golpe de Estado a uma intervenção militar, resta um segundo equívoco, mais difícil de combater: a ideia de que não se trata de um golpe porque o impeachment seguiu um rito previsto na Constituição e teve um amplo direito de defesa. É preciso observar que nem tudo o que é praticado em nome da lei e da Constituição é legal e constitucional. Tanto em 1964, quanto nos confiscos de Collor de Melo, o Supremo Tribunal Federal conferiu constitucionalidade a atos flagrantemente anticonstitucionais.

Já existem evidências legais suficientes para sustentar a tese de que os atos de que Dilma é acusada de crime de responsabilidade não constituem crime de responsabilidade. Se a natureza de um golpe de Estado diz respeito a quem o pratica, aqui surge o problema da sua essência: Bobbio resgata o conceito francês de golpe de Estado caracterizando-o como “uma violação deliberada de formas constitucionais por um governo, uma assembleia ou um grupo de pessoas que detém autoridade”. No caso do afastamento de Dilma, houve uma conspiração deliberada de parcela do governo, de boa parte da Câmara dos Deputados e do Senado (assembleias) e de setores situados no Judiciário (STF, etc.) e no Ministério Público.

Sem subtrair os enormes erros do governo Dilma e do PT, é preciso analisar também o processo do golpe, aqui apenas indicado: boicote ao governo no Congresso por parte do PMDB e de outros partidos que integravam o governo; articulações sediciosas de lideranças governistas com a oposição, com setores do Judiciário e com o presidente da Câmara; sedição do PMDB, revelada por Sérgio Machado, com o objetivo de tomar o poder e bloquear a Lava Jato e evitar prisões; ações politicamente orientadas do juiz Moro, do Ministério Público, do TCU e de juízes do STF e de tribunais superiores.

O impeachment foi uma grande farsa, comandada por grupos de interesse que ser articularam dentro e fora das instituições e na grande mídia. Lamentavelmente, a farsa foi convalidada pelos partidos de esquerda e pelo próprio governo Dilma na medida em que participaram do processo. O governo, o PT e os demais partidos de esquerda acreditaram nas suas próprias ilusões, apostaram em forças institucionais que não tinham e revelaram o quanto a esquerda é pueril e inconsequente. A forma mais correta de enfrentar o golpe consistia em deslegitima-lo desde o início, não participando da farsa dos ritos do impeachment e de defesa nas casas legislativas.

A salvação de Cunha e o custo do impeachment

A última votação no Senado acerca do relatório do impeachment sinaliza que Dilma será afastada em definitivo com o voto contrário de mais de 60 senadores, circunstância que mostra que ela e o PT vêm perdendo forças desde que foi afastada da presidência. Mas o afastamento de Dilma não será o último ato formal do golpe. Esse ato consistirá na salvação do mandato de Eduardo Cunha. Este movimento está sendo articulado na Câmara dos Deputados, com o aval de seu presidente, Rodrigo Maia, e pelo Palácio do Planalto.

Cunha será salvo por duas razões: 1) porque controla, ainda, parte significativa da Câmara, pois muitos deputados lhe devem favores; 2) porque, se cair, representará um enorme perigo para os ocupantes do Palácio do Planalto com uma provável delação premiada. Cunha joga com a arma na qual é perito: a chantagem. Foi assim com Dilma e está sendo assim com Temer. Consumado o afastamento de Dilma e se se confirmar a salvação de Cunha, o caráter conspirador do impeachment ficará ainda mais indesmentível.

Com a área limpa das principais indefinições políticas – Dilma e Cunha – o governo terá condições de avançar para consolidar o seu programa via a aprovação do PEC 241, em meio a várias concessões aos governadores e aos deputados e senadores que votaram pelo afastamento de Dilma, dificultando o ajuste fiscal. A redução de direitos trabalhistas e sociais será inevitável.

O outro viés que se acentuará, será o da repressão aos movimentos sociais, numa articulação entre o Ministério da Justiça e governos estaduais. Há que se acompanhar também qual será a conduta do STF, do Ministério Público e do juiz Moro em face de denúncias pendentes e de delações que atingem figuras do atual governo e do PSDB. Tudo indica que o judiciário entrará no jogo das protelações, buscando acomodar-se ao estado de coisas do novo governo.

A história do Brasil como equívoco lamentável

Tudo isto somado, começará o jogo de longo prazo: o jogo das narrativas e das biografias. As circunstâncias do afastamento de Dilma e o significado do atual governo sinalizam a tendência de que o processo em curso será visto com os olhos desabonadores da historiografia. O processo será visto como um golpe de Estado. Mesmo que os vitoriosos de hoje sejam vistos como golpistas amanhã, não terão muito que lamentar. Em primeiro lugar, venceram e exercerão o poder. Em segundo lugar, tendem a se salvarem dos percalços da justiça, dada a natureza cúmplice do judiciário brasileiro.

Em terceiro lugar, e isto é trágico, as narrativas, a historiografia e as biografias no Brasil não significam grande coisa. No Brasil há uma convivência promíscua entre a tragédia e a farsa, entre a moralidade e a corrupção, entre a dignidade e a covardia, entre a grandeza e a mediocridade. No Brasil, nem a biografia dos malvados deixa lições negativas e nem a biografia dos heróis (se é que os há) deixa lições positivas. Nem as biografias e nem a historiografia são capazes de exercer a pedagogia do exemplo reclamada por Maquiavel. Com um histórico de vários golpes, os brasileiros não aprenderam o valor da democracia e não têm compromisso com ela. Sérgio Buarque de Holanda asseverou que a democracia, no Brasil, é um grande mal entendido. Na verdade, deve-se acrescentar que a nossa história é um grande mal entendido, um enorme desconforto, uma junção de fatos lamentáveis.

* Aldo Fornazieri é professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

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