Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Seria preciso regredir à primeira metade do século XVIII e aos tempos do absolutismo para compreender o grau de barbárie a que o economista Guido Mantega foi submetido na manhã de quinta-feira. Você provavelmente já sabe: acompanhando a mulher que era submetida a uma cirurgia para operar um câncer, no Albert Einstein, em São Paulo, Mantega foi retirado do local pela Polícia Federal, que cumpria um mandato de prisão assinado pelo juiz Sérgio Moro, revogado após cinco horas.
Naquela longa fase da história da humanidade anterior ao nascimento dos direitos humanos como um valor universal, o suplício de pessoas condenadas – não é o caso de Mantega, diga-se – ocorria em praça pública. Antes de serem executadas, eram torturadas e, em alguns casos esquartejadas. A multidão aplaudia numa espécie de transe, e até pedia mais. Profissionais da morte e do sofrimento, os carrascos chegavam a ser personagens populares nas grandes cidades. Minutos antes de perder a cabeça na guilhotina de Paris, o revolucionário Danton pediu ao matador que a mostrasse ao povo reunido na praça da Revolução -- hoje da Concordia -- pois queria que a multidão visse “como é bela”.
Tentando explicar essa imensa evolução no direito e na sensibilidade humana, a historiadora Lynn Hunt lembra, num livrinho particularmente instrutivo, (“A Invenção dos Direitos Humanos”) que a noção de que todos são iguais perante a lei e assim devem ser tratados, é uma novidade recente da civilização, embora seja uma ideia tão repetida que parece ter vigorado já na idade das cavernas.
Na realidade, não chega a ter 300 anos de existência no passado deste bípede que anda pela Terra sabe-se lá quantos milhares de anos. Para Hunt, homens e mulheres precisaram superar vários degraus de cultura primitiva, baseada na desigualdade entre os homens e na tirania mais bruta do Estado sobre os indivíduos, para compreender que era necessário desenvolver uma relação de empatia de cada pessoa com toda a humanidade, única forma de garantir que não se faça com o próximo daquilo que não se deseja para si mesmo.
Hunt localiza o nascimento dessa ideia nos debates que deram origem à Constituição dos Estados Unidos, de 1776, confirmada pela Declaração dos Direitos do Homem da Revolução Francesa, de 1789. Foram decisões que representaram um imenso progresso, lembra, ainda que tenham ocorridos recuos graves, mais tarde, pois além da luta política, também havia uma disputa cultural. Hunt está convencida de que, criando epopeias românticas que envolviam heróis e heroínas de terras distantes, em sociedades da Ásia ou da África, que cultivavam costumes vistos como exóticos em Londres ou Paris, os noveleiros daquele tempo, que escreviam folhetins publicados em sequência pelos jornais, cumpriram um papel positivo no esforço para criar uma cultura de uma sociedade onde a igualdade é um valor fundamental.
A experiência futura ensinou que, como a luta global pela democracia, a defesa dos direitos humanos é um esforço que nunca termina. A opressão da mulher prosseguiu pelos séculos seguintes, a escravidão permaneceu como uma vergonha duradoura. A dominação de povos frágeis, do ponto de vista econômico, é uma realidade até hoje. A tortura jamais foi inteiramente abolida. Chegou a ser sistematizada pelo Exército francês na guerra da Argélia, nos anos 1950. Empregada em interrogatórios de prisioneiros na guerra do Vietnã, foi admitida por decreto de George W Bush após o 11 de setembro, numa regressão cujo maior exemplo é a prisão de homens sem direitos de Guantânamo. Há outros exemplos, mas este é o espírito da coisa.
No Brasil, a igualdade está presente em todas as Constituições escritas desde a independência. Mas foi na última, em 1988, que os constituintes providenciaram um longo e detalhado artigo, número 5, onde os direitos individuais são definidos de forma ampla e detalhada. Entre várias providências essenciais, como a proteção absoluta a liberdade de expressão e a proibição da censura, a Carta chamada “cidadã” pune a tortura como crime imprescritível, inafiançável. A partir deste artigo, que acertava contas com a ditadura de 1964, define-se, a começar pela defesa da integridade do corpo humano, a supremacia dos direitos do indivíduo frente ao Estado, que dá base para a noção de que todos são inocentes até que se prove contrário.
Um dos pontos essenciais dessa visão universal foi estabelecida por Voltaire, o mestre do iluminismo, para quem “é preferível um culpado solto do que um inocente preso”.
Em setembro de 2016, o repúdio a uma medida truculenta e desnecessária levou Moro a revogar o mandato contra Mantega, que, nos governos Lula e Dilma, somou a mais longa permanência continua no posto de Ministro da Fazenda em nossa história republicana.
Arrancar uma pessoa com endereço conhecido, que jamais se negou a prestar esclarecimentos solicitados, da companhia de uma mulher que desde 2011 luta de forma corajosa contra um câncer, não é apenas uma medida desnecessária.
É um ataque a sua dignidade, que não pode ser esquartejada em praça pública.
Isso interessa a quem promove o espetáculo da honra ferida, da cidadania diminuída, quem sabe atemorizada.
É uma forma de colocar o interesse do Estado por cima dos direitos do cidadão, quando seria perfeitamente compatibilizar uma coisa e outra.
A menos, claro, quando o show para a TV é a prioridade sobre todas as coisas.
Mesmo correta, a decisão de Moro não foi capaz de evitar um escândalo numa Operação marcada por outras denúncias que envolvem a violação de garantias constitucionais.
A primeira investigação, na pré-história da Lava Jato, envolveu um grampo telefônico que violava o sigilo das conversas entre um cliente -- assessor do falecido deputado José Janene – e seu advogado, garantido pela Constituição.
Quebrado por uma longa prisão preventiva, que incluía feriados sem banho de sol e sem visitas familiares, previstos em lei, o diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa fez uma delação premiada que mudou o curso de toda investigação.
Um ano mais tarde, o senador Delcidio do Amaral foi preso de forma ilegal, pois um parlamentar só pode ser levado para a cadeia em caso de flagrante, o que não era seu caso. Delcídio afirma que só decidiu falar depois de ser mantido incomunicável numa cela sem luz da Polícia Federal em Brasília, onde chegou a bater na porta pedindo por socorro mas não foi atendido.
Muitas pessoas costumam assumir uma postura tolerante diante de atos dessa natureza, com o argumento nocivo de que finalidades nobres podem justificar o emprego métodos condenáveis.
A verdade é que, justamente porque vivemos numa sociedade onde os homens têm direitos iguais, uma postura flexível diante dos ataques aos direitos de determinados indivíduos cedo ou tarde cobra um preço muito mais alto sobre o conjunto das instituições de governo. As prisões preventivas sem motivação justificável, empregadas com a finalidade óbvia de obter delações premiadas, são definidas como uma forma de tortura por juristas à prova de qualquer suspeita pelas preferências políticas dos acusados – e parece difícil encontrar, ao menos entre pessoas capazes de empatia pelo sofrimento alheio, este traço peculiar do aprendizado democrático segundo Lynn Hunt, quem conteste essa noção.
“Morra, terrorista” gritavam na rua para a guerrilheira Cida Costa, no momento em que era conduzida à prisão, na década de 1970. A própria Cida não foi executada, embora isso não fosse incomum, na época.
Da mesma forma que o choque elétrico e o pau de arara se tornaram peça essencial na ditadura militar, num circo de horrores onde chefes de tortura eram glorificados pelos jornais, promovidos e recebiam medalhas em datas cívicas, é difícil negar que a tolerância e mesmo aplauso diante de abusos e medidas de exceção da Lava Jato seja responsável pela criação de um ambiente político de conivência que permitiu o golpe de 31 de agosto, numa trama que produziu o impeachment sem prova de Dilma Rousseff, para dar posse a um sucessor envolvido nos mesmo crimes pelos quais ela foi afastada – sem falar em práticas pelas quais a presidente jamais foi acusada, inclusive uma condenação pela Justiça Eleitoral.
Seria preciso regredir à primeira metade do século XVIII e aos tempos do absolutismo para compreender o grau de barbárie a que o economista Guido Mantega foi submetido na manhã de quinta-feira. Você provavelmente já sabe: acompanhando a mulher que era submetida a uma cirurgia para operar um câncer, no Albert Einstein, em São Paulo, Mantega foi retirado do local pela Polícia Federal, que cumpria um mandato de prisão assinado pelo juiz Sérgio Moro, revogado após cinco horas.
Naquela longa fase da história da humanidade anterior ao nascimento dos direitos humanos como um valor universal, o suplício de pessoas condenadas – não é o caso de Mantega, diga-se – ocorria em praça pública. Antes de serem executadas, eram torturadas e, em alguns casos esquartejadas. A multidão aplaudia numa espécie de transe, e até pedia mais. Profissionais da morte e do sofrimento, os carrascos chegavam a ser personagens populares nas grandes cidades. Minutos antes de perder a cabeça na guilhotina de Paris, o revolucionário Danton pediu ao matador que a mostrasse ao povo reunido na praça da Revolução -- hoje da Concordia -- pois queria que a multidão visse “como é bela”.
Tentando explicar essa imensa evolução no direito e na sensibilidade humana, a historiadora Lynn Hunt lembra, num livrinho particularmente instrutivo, (“A Invenção dos Direitos Humanos”) que a noção de que todos são iguais perante a lei e assim devem ser tratados, é uma novidade recente da civilização, embora seja uma ideia tão repetida que parece ter vigorado já na idade das cavernas.
Na realidade, não chega a ter 300 anos de existência no passado deste bípede que anda pela Terra sabe-se lá quantos milhares de anos. Para Hunt, homens e mulheres precisaram superar vários degraus de cultura primitiva, baseada na desigualdade entre os homens e na tirania mais bruta do Estado sobre os indivíduos, para compreender que era necessário desenvolver uma relação de empatia de cada pessoa com toda a humanidade, única forma de garantir que não se faça com o próximo daquilo que não se deseja para si mesmo.
Hunt localiza o nascimento dessa ideia nos debates que deram origem à Constituição dos Estados Unidos, de 1776, confirmada pela Declaração dos Direitos do Homem da Revolução Francesa, de 1789. Foram decisões que representaram um imenso progresso, lembra, ainda que tenham ocorridos recuos graves, mais tarde, pois além da luta política, também havia uma disputa cultural. Hunt está convencida de que, criando epopeias românticas que envolviam heróis e heroínas de terras distantes, em sociedades da Ásia ou da África, que cultivavam costumes vistos como exóticos em Londres ou Paris, os noveleiros daquele tempo, que escreviam folhetins publicados em sequência pelos jornais, cumpriram um papel positivo no esforço para criar uma cultura de uma sociedade onde a igualdade é um valor fundamental.
A experiência futura ensinou que, como a luta global pela democracia, a defesa dos direitos humanos é um esforço que nunca termina. A opressão da mulher prosseguiu pelos séculos seguintes, a escravidão permaneceu como uma vergonha duradoura. A dominação de povos frágeis, do ponto de vista econômico, é uma realidade até hoje. A tortura jamais foi inteiramente abolida. Chegou a ser sistematizada pelo Exército francês na guerra da Argélia, nos anos 1950. Empregada em interrogatórios de prisioneiros na guerra do Vietnã, foi admitida por decreto de George W Bush após o 11 de setembro, numa regressão cujo maior exemplo é a prisão de homens sem direitos de Guantânamo. Há outros exemplos, mas este é o espírito da coisa.
No Brasil, a igualdade está presente em todas as Constituições escritas desde a independência. Mas foi na última, em 1988, que os constituintes providenciaram um longo e detalhado artigo, número 5, onde os direitos individuais são definidos de forma ampla e detalhada. Entre várias providências essenciais, como a proteção absoluta a liberdade de expressão e a proibição da censura, a Carta chamada “cidadã” pune a tortura como crime imprescritível, inafiançável. A partir deste artigo, que acertava contas com a ditadura de 1964, define-se, a começar pela defesa da integridade do corpo humano, a supremacia dos direitos do indivíduo frente ao Estado, que dá base para a noção de que todos são inocentes até que se prove contrário.
Um dos pontos essenciais dessa visão universal foi estabelecida por Voltaire, o mestre do iluminismo, para quem “é preferível um culpado solto do que um inocente preso”.
Em setembro de 2016, o repúdio a uma medida truculenta e desnecessária levou Moro a revogar o mandato contra Mantega, que, nos governos Lula e Dilma, somou a mais longa permanência continua no posto de Ministro da Fazenda em nossa história republicana.
Arrancar uma pessoa com endereço conhecido, que jamais se negou a prestar esclarecimentos solicitados, da companhia de uma mulher que desde 2011 luta de forma corajosa contra um câncer, não é apenas uma medida desnecessária.
É um ataque a sua dignidade, que não pode ser esquartejada em praça pública.
Isso interessa a quem promove o espetáculo da honra ferida, da cidadania diminuída, quem sabe atemorizada.
É uma forma de colocar o interesse do Estado por cima dos direitos do cidadão, quando seria perfeitamente compatibilizar uma coisa e outra.
A menos, claro, quando o show para a TV é a prioridade sobre todas as coisas.
Mesmo correta, a decisão de Moro não foi capaz de evitar um escândalo numa Operação marcada por outras denúncias que envolvem a violação de garantias constitucionais.
A primeira investigação, na pré-história da Lava Jato, envolveu um grampo telefônico que violava o sigilo das conversas entre um cliente -- assessor do falecido deputado José Janene – e seu advogado, garantido pela Constituição.
Quebrado por uma longa prisão preventiva, que incluía feriados sem banho de sol e sem visitas familiares, previstos em lei, o diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa fez uma delação premiada que mudou o curso de toda investigação.
Um ano mais tarde, o senador Delcidio do Amaral foi preso de forma ilegal, pois um parlamentar só pode ser levado para a cadeia em caso de flagrante, o que não era seu caso. Delcídio afirma que só decidiu falar depois de ser mantido incomunicável numa cela sem luz da Polícia Federal em Brasília, onde chegou a bater na porta pedindo por socorro mas não foi atendido.
Muitas pessoas costumam assumir uma postura tolerante diante de atos dessa natureza, com o argumento nocivo de que finalidades nobres podem justificar o emprego métodos condenáveis.
A verdade é que, justamente porque vivemos numa sociedade onde os homens têm direitos iguais, uma postura flexível diante dos ataques aos direitos de determinados indivíduos cedo ou tarde cobra um preço muito mais alto sobre o conjunto das instituições de governo. As prisões preventivas sem motivação justificável, empregadas com a finalidade óbvia de obter delações premiadas, são definidas como uma forma de tortura por juristas à prova de qualquer suspeita pelas preferências políticas dos acusados – e parece difícil encontrar, ao menos entre pessoas capazes de empatia pelo sofrimento alheio, este traço peculiar do aprendizado democrático segundo Lynn Hunt, quem conteste essa noção.
“Morra, terrorista” gritavam na rua para a guerrilheira Cida Costa, no momento em que era conduzida à prisão, na década de 1970. A própria Cida não foi executada, embora isso não fosse incomum, na época.
Da mesma forma que o choque elétrico e o pau de arara se tornaram peça essencial na ditadura militar, num circo de horrores onde chefes de tortura eram glorificados pelos jornais, promovidos e recebiam medalhas em datas cívicas, é difícil negar que a tolerância e mesmo aplauso diante de abusos e medidas de exceção da Lava Jato seja responsável pela criação de um ambiente político de conivência que permitiu o golpe de 31 de agosto, numa trama que produziu o impeachment sem prova de Dilma Rousseff, para dar posse a um sucessor envolvido nos mesmo crimes pelos quais ela foi afastada – sem falar em práticas pelas quais a presidente jamais foi acusada, inclusive uma condenação pela Justiça Eleitoral.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente: