quinta-feira, 20 de outubro de 2016

A hipocrisia do financismo e a Selic

Por Paulo Kliass, no site Carta Maior:

Na terça-feira, dia 18 de outubro, teve início a 201ª reunião do Comitê de Política Monetária (Copom). Com seus encontros regulares previamente agendados para intervalos a cada 45 dias, o colegiado responsável por esse importante instrumento do conjunto da política econômica deverá anunciar no final do dia 19 sua decisão a respeito do patamar da taxa oficial de juros, a Selic.

Trata-se do penúltimo encontro dos integrantes da diretoria do Banco Central (BC) com esse objetivo específico marcado para 2016. Durante dois longos dias esse grupo deverá discutir exaustivamente a respeito das condições da conjuntura econômica internacional e nacional, buscando avaliar as condições em cada um dois setores de atividade. Como costuma acontecer, ao final da reunião, as expectativas da imprensa e dos formadores de opinião no âmbito do financismo serão confrontadas com a decisão anunciada: i) elevação; ii) redução; ou iii) manutenção da taxa.

Queda da Selic depois de 15 meses.

Enquanto escrevo este artigo, a fumaça branca ainda não podia ser avistada no alto do imponente prédio escuro do BC, localizado no Setor de Autarquia Sul da Capital da República. De acordo com as fontes ouvidas pela grande imprensa, as apostas entre os “especialistas” do mercado financeiro oscilavam entre uma redução de 0,25% e de 0,50% na taxa referencial de juros. Isso significa dizer que havia um amplo consenso - quase uma unanimidade - a respeito da necessidade e da certeza de que o COPOM promoveria uma diminuição. A dúvida residiria apenas no valor de tal baixa.

Atualmente a SELIC está no nível de 14,25% anuais. Esse valor foi anunciado pelo COPOM no final de julho de 2015 - há quase 15 meses atrás, portanto. Desde então, o valor estratosférico veio sendo mantido ao longo de nove reuniões regulares. Essa opção por uma política monetária de arrocho tem assegurado ao Brasil a posição de líder mundial absoluto no quesito taxa real de juros. Converte-se em importante peça de apoio à política do austericídio.

O principal argumento levantado pela turma do financismo para justificar tamanha insanidade refere-se ao modelo macroeconômico embutido na cabeça dos operadores do mercado financeiro. De acordo com tal interpretação do fenômeno econômico, o Brasil enfrentava um problema sério de aquecimento da demanda, com sérios riscos de retorno da inflação em níveis descontrolados.

Retomada do crescimento exige queda maior

Realmente ao longo do período compreendido entre julho de 2014 e julho de 2015 a inflação anual saiu de 6,50% para quase 9%. Durante esses 12 meses, o COPOM elevou a SELIC de 11% para 14,25%. E o efeito prático desse reajuste sobre o nível de preços foi praticamente nulo. A manutenção dos atuais 14,25% ocorreu em processo de redução da inflação para os atuais 8,5% anuais, de acordo com a divulgação recente do IPCA relativo a setembro. Isso significa dizer que o diagnóstico a respeito dos fatores causadores da inflação está completamente equivocado. Nossa economia vem sendo completamente bombardeada com taxas de juros enormes e a as razões do crescimento não estão pelo lado do excesso da demanda. Muito pelo contrário! Afinal, atravessamos um período duro marcado por recessão da atividade, desemprego, falências e redução dos gastos públicos. Onde estariam os fatores impulsionadores desse suposto aquecimento das compras e impulsionador da elevação dos preços?

É importante recordarmos que, entre 2012 e 2013, a Presidenta Dilma ousou implementar uma política monetária fora dos padrões ditados pelo financismo. Durante nove meses a SELIC permaneceu a níveis abaixo de 8% ao ano. Com a inflação em torno de 5% e 6% anuais, esse período conheceu as menores taxas reais de juros dos últimos tempos – algo em torno de 2%. Some-se a esse fato o movimento orientando os grandes bancos federais a reduzirem seus spreads e oferecerem crédito mais barato do que a prática escandalosa promovida pela banca privada.

O desenrolar dos acontecimentos todos conhecemos. O governo foi completamente metralhado pelos meios de comunicação em suas intenções de colocar nossa economia em padrões minimamente civilizados em termos de espoliação do setor financeiro. A partir de então tem início o espancamento público de toda tentativa de fugir à cartilha da ortodoxia liberal, com a generalização da crítica da chamada “nova matriz econômica”. Ao fim e ao cabo, o governo terminou por ceder nesse embate, ao invés de fortalecer sua via por meio da busca de apoio popular ao projeto de desenvolvimento com promoção de inclusão e redução das desigualdades.

Financismo no comando

Ocorre que o golpeachment promoveu alguma mudança nos nomes do primeiro escalão e na orientação da política econômica. Aquele que havia obtido carta branca de Lula por oito longos anos na condução da política monetária tornou-se o todo poderoso da Fazenda com Temer. Outro legítimo representante da nata do financismo foi indicado para a presidência do BC. Assim, ainda que as condições objetivas da economia pouco tenham se alterado, aos olhos desse pessoal estaria chegada a hora de oferecer alguma boa notícia para o novo ocupante do Palácio do Planalto.

A inflação ainda continua acima do limite superior das metas oficiais? Bem, mas nesse caso estamos diante de uma equipe altamente tarimbada e reconhecida para promover o arranjo de nossa economia. Imagine se essa folga seria oferecida, assim, de bandeja para Dilma em algum momento atrás! De modo algum! Mas para Temer a turma do financismo aceita fazer um pecadilho em sua interpretação rigorosamente neoliberal e ortodoxa da dinâmica dos mercados. E deve mesmo reduzir a SELIC em uma conjuntura que os modelitos de planilha ainda consideram “perigosa”.

Essa é justamente a hipocrisia do financismo. Assim como os critérios de justiça de Moro e da turma de Curitiba têm sido marcados por seletividade e falta de isonomia de tatamento, a turma do COPOM também começa a operar com 2 pesos e 2 medidas. E ainda se valem da narrativa de “independência” nas ações do BC. Pura balela! Essa redução da SELIC evidencia a subordinação da política monetária aos interesses do Planalto. Fato esse, aliás, mais do que natural e perfeitamente compreensível. Só não me venham com esse discurso falacioso de um suposto véu de neutralidade técnica da decisão. É mais do que óbvio que foi motivada pela política. E ponto final!

Boa oferece notícia para Temer

As páginas de economia e os programas similares nas redes de rádio e televisão estão se dedicando intensamente a blindar o presidente e sua equipe. É um trabalho árduo de garimpar notícias boas ou “não tão ruins assim” para comprovar a tese estabelecida “a priori” de que o novo governo é competente e veio para recuperar nossa economia. A inflação continua alta? Ah, mas ela vem apresentando milésimos de tendência de queda em alguns setores. A recessão continua se impondo? Ah, mas os índices de confiança do empresariado estariam demonstrando que agora a coisa vai. O desemprego continua se elevando, com a superação da marca de 12 milhões de pessoas? Ah, mas as perspectivas para 2017 se apresentam com indícios de melhorias.

A decisão do COPOM se apresenta como mais um mecanismo para reverter as expectativas e ganhar as manchetes com notícias menos ruins. Longe de mim criticar essa decisão do Comitê. Qualquer decisão que reduza o custo do investimento, que contribua para diminuir o volume de despesas com encargos da dívida e que alimente a necessária retomada do crescimento é sempre bem vinda.

No entanto, é necessário analisar com certa cautela e reserva a notícia da nova SELIC. O BC nada tem feito para reduzir os spreads e os custos financeiros embutidos nas operações de crédito. Muito pelo contrário, estudos têm demonstrado que os bancos públicos estão praticando taxas até mais elevadas que os seus pares do setor privado. Mais ainda, se a inflação está mesmo com tendência de queda, estaria aí outro argumento forte para acelerar ainda mais a queda da SELIC, pois a taxa real de juros estaria sendo elevada. O governo nada faz nessa direção. Apenas martela o discurso monotônico do corte de despesas.

Mas aí já seria esperar demais dessa equipe econômica. Com dois representantes diretos do financismo no comando das coisas, pode-se até fazer algum agradinho ao Presidente da República. No entanto, a defesa do interesse de classe os impede de avançar na direção de um projeto que se oriente por protagonismo do setor produtivo e que se preocupe com distribuição de renda e inclusão.

Fazer uma nesguinha de hipocrisia e de demagogia até pode ser. Afinal, Temer está mesmo precisando anunciar alguma notícia boa de seu governo. Mas, veja bem, sempre no limite da responsabilidade fiscal e financista. Sem exageros, por favor! Estamos de olho, hein, Meirelles e Ilan?

* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

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