Por Marly Vianna, no site da Fundação Maurício Grabois:
Um livro necessário
Por Marly de Almeida Vianna
Linhas Vermelhas: Marxismo e os dilemas da Revolução (artigos e ensaios críticos), de Augusto Buonicore, é editado em muito boa hora pela Anita Garibaldi. O autor, excelente pesquisador de nossa história política, em especial da história do marxismo e do Partido Comunista do Brasil, tem escrito vários artigos e ensaios, publicados principalmente nos portais Vermelho e Grabois, imprescindíveis para os estudiosos do assunto. Estes estavam, entretanto, dispersos – o que dificultava sua utilização. Agora, reunidos em livro, vem facilitar muito seu uso por estudiosos e pesquisadores.
Coletânea de artigos e ensaios, como explica o próprio autor, não tem toda ela a mesma unidade temática, pois eles foram escritos em momentos diferentes de sua “formação teórica e política e em 20 anos muitas coisas podem mudar”. O livro, no entanto, mesmo abordando diferentes assuntos, mantém uma coerência tanto temática quanto política.
Linhas Vermelhas: Marxismo e os dilemas da Revolução reúne, em 33 capítulos, temas que podem ser agrupados em cinco blocos. O primeiro, que reúne os capítulos de I a XII, trata da teoria marxista, discutindo principalmente os conceitos de Estado, modernidade, revolução, luta de classes, classes sociais, entre outros temas cuja importância teórica e política para a compreensão do marxismo não precisa ser explicitada.
No primeiro ensaio, A construção do homem no jovem Marx, diz Buonicore que, tendo sido escrito já há quase 25 anos, no final dos anos 1980, “é fortemente influenciado pela problemática lukacsciana. Nele, por exemplo, advoga-se a existência de um humanismo marxista, encarado como o resultado da evolução quase natural do humanismo feurbachiano. Ali, praticamente, são subestimadas as rupturas ocorridas no pensamento de Marx”. Ainda nesse primeiro bloco, tanto o segundo quanto o terceiro capítulos, Marx e a modernidade capitalista e Marx e Nietzsche diante da modernidade, apesar de algumas nuances, “são ainda tributários daquela tradição”, lembra Augusto. Esses doze primeiros capítulos estão vinculados ao pensamento teórico de Marx e Engels e, embora possam ser considerados como temas mais filosóficos, estão estreitamente ligados ao pensamento político e à História.
Os capítulos XIII a XVI tratam das questões que concernem ao liberalismo, à democracia e ao fascismo, analisadas dentro da tradição marxista. Com muita agudeza, ele discute o “principal mito político moderno: aquele que busca colocar um sinal de igualdade entre democracia e liberalismo.” Chamo a atenção para essa discussão da maior importância para a história política em geral, e particularmente para a nossa história política. “Marx e Engels” – diz o autor –“se inserem, plenamente, no interior da tradição democrática, na qual também se incluem Rousseau, Blanqui e os cartistas ingleses. Para esses, a democracia não podia ser definida – à moda schumpeteriana – como um simples método de selecionar os líderes encarregados de governar”. Augusto destaca, no entanto, o fato de o sufrágio universal ser “um dos primeiros passos para a implantação da democracia política moderna, transformando-se em bandeira do movimento operário”. E indaga: qual a posição assumida por Marx e Engels sobre o assunto? “Alguns grupos, como os anarquistas, consideravam o sufrágio universal um engodo, enquanto outros o consideravam um importante meio de emancipação dos trabalhadores” – para alguns até mesmo a própria conquista da democracia. Para Marx e Engels, a resposta a essa questão dependia diretamente da situação histórica de cada local, e os dois “contraditoriamente ou dialeticamente, consideravam que sufrágio universal poderia representar as duas coisas ao mesmo tempo: meio de ludíbrio e meio de emancipação, dependendo da época e do país”.
Trazendo a discussão para o Brasil, cita o conhecido – e polêmico – artigo A democracia como valor universal, de Carlos Nelson Coutinho – publicado na revista Encontros com a Civilização Brasileira–, que, radicalizando a tese do eurocomunismo italiano, esqueceu o termo “historicamente”. A democracia, diz Buonicore, deixava de ter um “valor historicamente universal” (sublinho o historicamente) e passava a ter “valor universal”. Diferença que está longe de ser secundária.
O capitulo XVI, Liberalismo, colonialismo e fascismo, faz a transição para outro conjunto de reflexões sobre as questões nacional, colonial e das nacionalidades, incluída aí uma discussão que diz respeito de perto à realidade brasileira, Os comunistas, os índios e a nação. Faz então um histórico da questão de negros e índios como nacionalidades.
Foram Lênin e Rosa Luxemburgo, salienta o autor, “que fizeram as críticas mais acentuadas ao caráter opressivo, e, portanto, não civilizador, da expansão do capitalismo na sua fase imperialista”. E continua: “Lênin, invertendo a lógica predominante no movimento socialista internacional, afirmou que a revolução dos povos coloniais é que poderia impulsionar as revoluções socialistas no ocidente”. Foi a III Internacional, a Internacional Comunista, que “introduziu a ´questão racial´ na pauta do movimento socialista”.
Sobre a questão dos negros, Augusto conta, no capítulo IXI, que “A plenária da Internacional dos Sindicatos Vermelhos (ISV), presidida por Alexandre Lozovsky, reunida em julho de 1928, criou o Comitê Sindical Internacional dos Trabalhadores Negros (CSITN), que lançou o jornal O Trabalhador Negro”, fato tão mais importante quanto pouco conhecido.
Sobre os índios brasileiros indaga: “seriam mesmo povos-nações com direitos históricos? Ou seriam simplesmente apêndices da grande etnia brasileira tendentes a ser engolidos por ela ao longo do tempo? Qual o futuro dos povos indígenas e sua relação com a nação brasileira? O quanto de terras seria adequado para a manutenção e reprodução de sua identidade étnico-cultural?”
A discussão sobre negros e índios na América só entrou em pauta, oficialmente, na I Conferência dos Partidos Comunistas da América Latina, realizada na Argentina em 1929. Buonicore explica que a entrada do tema na pauta deu-se a partir do documento apresentado “pelo grande intelectual comunista peruano José Carlos Mariátegui (o Amauta)”, que resultou no texto O problema das raças na América Latina. Imprescindível essa discussão para entender o comportamento dos partidos comunistas da América Latina em relação a índios e negros em seus países.
As grandes questões da revolução, do entendimento de como se deve organizar um partido político e o conceito de hegemonia, são tratadas nos capítulos de XX a XXIV. “Uma parte significativa deles aborda a maneira que Marx, Engels e Lênin encararam a revolução europeia na segunda metade do século 19, tendo por centro a Alemanha, França e Rússia”, considerando cada situação histórica concreta. Tratam de questões políticas de grande importância e atualidade, como das fases ou etapas do processo revolucionário e da consequente política de alianças e formas de luta a serem adotadas pelos trabalhadores. Em especial, Augusto trata de uma questão fundamental para a estratégia dos partidos políticos de esquerda, ou seja, da “relação dialética entre as questões nacional e democrática”. Essa questão talvez tenha sido a de maior destaque na avaliação política dos comunistas brasileiros na década de 1960 que, a meu ver, não foi bem equacionada. Qual a relação entre a luta anti-imperialista e a luta pela conquista e construção do socialismo, entre luta nacional e luta democrática? Também o historiador Eric Hobsbawm chamou a atenção para a dificuldade de essa relação ser bem equacionada.
Buonicore traz ainda para a discussão a confluência entre o pensamento de Lênin e de Gramsci sobre a questão da hegemonia, importante por desmontar um tipo de posicionamento que tenta separar os dois maiores pensadores políticos do século 20.
Os últimos nove capítulos (XXV a XXXIII) tratam de questões diversas. De novo fazendo a transição de um grupo a outro, o capítulo XXV fala de Gramsci, expondo as ideias do pensador italiano sobre ideologia e o papel dos intelectuais. Uma pequena amostra da importância deste capítulo: “O que é ideologia para Gramsci? Ele a concebe enquanto ‘uma concepção de mundo que se manifesta implicitamente na arte, no direito, nas atividades econômicas e em todas as manifestações da vida intelectual e coletiva´. No entanto, somente as ´ideologias orgânicas´ vinculadas a uma das classes fundamentais da sociedade capitalista – a burguesia e o proletariado –teriam papel fundamental. E, em situações normais, a ideologia dominante seria a ideologia da classe econômica e politicamente dominante. Gramsci estabelece, então, diversos níveis entre a concepção de mundo produzida pelos intelectuais orgânicos da classe dominante e as ideias, senso comum, das classes subalternas, informadas por aquela concepção geral de mundo. Esta diferenciação em níveis (ou camadas) é engendrada pelas contradições objetivas inerentes à sociedade dividida em classes sociais antagônicas”.
São abordadas também – agora do ponto de vista da contemporaneidade – questões como a posição de Lênin em relação à revolução e ao partido, questões estas que até atualmente suscitam discussões e diferentes entendimentos. Augusto trata da luta pelo socialismo hoje numa visão leninista, exemplificando com as rebeliões modernas: as questões ideológicas e políticas levantadas pelas rebeliões na França em 1968, pela Unidade Popular no Chile (1970-1973), pela Revolução dos Cravos em Portugal (1974-1976).
Outra questão de importância política atual é a do papel das mulheres na sociedade e na luta política, assunto tratado nos capítulos XXX, XXXI e XXXII. Buonicore traça a história dessas lutas das mulheres por sua participação ativa na política de seus países, desde as primeiras sufragistas. O tema é bastante atual, justamente quando as mulheres da Arábia Saudita conquistaram o direito de votar e serem votadas – e estamos no século 21.
O último capítulo do livro é uma idealização de uma entrevista com Georg Dimitrov, que teria ocorrido em 1935 logo após o 7º Congresso da Internacional Comunista. Como diz Buonicore: “o jornalista e a entrevista nunca existiram, mas as respostas de Dimitrov foram extraídas do seu famoso informe A Ofensiva do fascismo e as tarefas da Internacional Comunista, pronunciado em 4 de agosto de 1935. Um documento da maior importância e atualidade. Nele, Dimitrov falou da necessidade de alianças com o campesinato e a pequenaburguesia urbana para a Frente antifascista, e da necessidade da ação do proletariado no sentido de não permitir que o fascismo tivesse a iniciativa da luta. Afirmava que a Internacional Comunista estava disposta a negociar até mesmo com a 2ª Internacional, “para a criação da unidade da classe operária na luta contra a ofensiva do capital, contra o fascismo e contra a ameaça de uma guerra imperialista”.
Perguntado sobre “qual seria a sua última mensagem ao proletariado do Brasil e do mundo?” o dirigente comunista responde: “Que não desanimem diante do quadro mundial adverso. Lembrem-se sempre que a seu favor trabalha toda a marcha do desenvolvimento histórico. Os reacionários, os fascistas de todas as cores, a burguesia do mundo inteiro se esforçam em vão para voltar para trás a roda da história. Mas esta roda gira e continuará girando em direção da vitória definitiva do socialismo”.
Apesar de o autor considerar que algumas das opiniões expressas em Linhas Vermelhas: Marxismo e os dilemas da Revolução não correspondem mais integralmente às suas posições atuais, as questões tratadas nesse livro são, sem dúvida, da maior importância para a compreensão do pensamento marxista, na obra dos seus principais teóricos. Discute também as mais candentes questões enfrentadas em situações revolucionárias do século 20. As questões apresentadas no livro de Augusto Buonicore ajudam-nos a refletir sobre os problemas políticos das esquerdas no Brasil, em especial no momento que atravessamos.
Num tempo em que a teoria e a política tendem a ser desprezadas, em que o individualismo parece sobrepor-se ao social, em que os partidos políticos são considerados obsoletos e descartáveis, quando as ideologias saíram de moda, é um livro imprescindível!
* Título dado pela redação do Portal.
** Marly de Almeida Gomes Vianna é professora aposentada da UFSCar e do Mestrado em História da Universidade Salgado Filho. Autora do livro Revolucionários de 1935: sonho e realidade entre outras publicações.
O Portal Grabois disponibiliza a apresentação feita pela historiadora Marly Vianna ao livro Linhas Vermelhas: Marxismo e dilemas da Revolução, de Augusto Buonicore. No seu texto Marly afirma que a obra foi “editada em muito boa hora”. O autor, “teria escrito vários artigos imprescindíveis para os estudiosos do assunto. Mas, eles estavam dispersos – o que dificultava sua utilização. As questões tratadas são, sem dúvida, da maior importância para a compreensão do pensamento marxista. Elas ajudam-nos a refletir sobre os dilemas políticos das esquerdas no Brasil, em especial no momento que atravessamos. Num tempo em que a teoria e a política tendem a ser desprezadas, em que o individualismo parece sobrepor-se ao social, em que os partidos políticos são considerados obsoletos e descartáveis, quando as ideologias saíram de moda, é um livro imprescindível!”.
Os interessados poderão adquirir o livro através do link da Editora Anita Garibaldi: CLICANDO AQUI
Leia o texto na integra:
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Um livro necessário
Por Marly de Almeida Vianna
Linhas Vermelhas: Marxismo e os dilemas da Revolução (artigos e ensaios críticos), de Augusto Buonicore, é editado em muito boa hora pela Anita Garibaldi. O autor, excelente pesquisador de nossa história política, em especial da história do marxismo e do Partido Comunista do Brasil, tem escrito vários artigos e ensaios, publicados principalmente nos portais Vermelho e Grabois, imprescindíveis para os estudiosos do assunto. Estes estavam, entretanto, dispersos – o que dificultava sua utilização. Agora, reunidos em livro, vem facilitar muito seu uso por estudiosos e pesquisadores.
Coletânea de artigos e ensaios, como explica o próprio autor, não tem toda ela a mesma unidade temática, pois eles foram escritos em momentos diferentes de sua “formação teórica e política e em 20 anos muitas coisas podem mudar”. O livro, no entanto, mesmo abordando diferentes assuntos, mantém uma coerência tanto temática quanto política.
Linhas Vermelhas: Marxismo e os dilemas da Revolução reúne, em 33 capítulos, temas que podem ser agrupados em cinco blocos. O primeiro, que reúne os capítulos de I a XII, trata da teoria marxista, discutindo principalmente os conceitos de Estado, modernidade, revolução, luta de classes, classes sociais, entre outros temas cuja importância teórica e política para a compreensão do marxismo não precisa ser explicitada.
No primeiro ensaio, A construção do homem no jovem Marx, diz Buonicore que, tendo sido escrito já há quase 25 anos, no final dos anos 1980, “é fortemente influenciado pela problemática lukacsciana. Nele, por exemplo, advoga-se a existência de um humanismo marxista, encarado como o resultado da evolução quase natural do humanismo feurbachiano. Ali, praticamente, são subestimadas as rupturas ocorridas no pensamento de Marx”. Ainda nesse primeiro bloco, tanto o segundo quanto o terceiro capítulos, Marx e a modernidade capitalista e Marx e Nietzsche diante da modernidade, apesar de algumas nuances, “são ainda tributários daquela tradição”, lembra Augusto. Esses doze primeiros capítulos estão vinculados ao pensamento teórico de Marx e Engels e, embora possam ser considerados como temas mais filosóficos, estão estreitamente ligados ao pensamento político e à História.
Os capítulos XIII a XVI tratam das questões que concernem ao liberalismo, à democracia e ao fascismo, analisadas dentro da tradição marxista. Com muita agudeza, ele discute o “principal mito político moderno: aquele que busca colocar um sinal de igualdade entre democracia e liberalismo.” Chamo a atenção para essa discussão da maior importância para a história política em geral, e particularmente para a nossa história política. “Marx e Engels” – diz o autor –“se inserem, plenamente, no interior da tradição democrática, na qual também se incluem Rousseau, Blanqui e os cartistas ingleses. Para esses, a democracia não podia ser definida – à moda schumpeteriana – como um simples método de selecionar os líderes encarregados de governar”. Augusto destaca, no entanto, o fato de o sufrágio universal ser “um dos primeiros passos para a implantação da democracia política moderna, transformando-se em bandeira do movimento operário”. E indaga: qual a posição assumida por Marx e Engels sobre o assunto? “Alguns grupos, como os anarquistas, consideravam o sufrágio universal um engodo, enquanto outros o consideravam um importante meio de emancipação dos trabalhadores” – para alguns até mesmo a própria conquista da democracia. Para Marx e Engels, a resposta a essa questão dependia diretamente da situação histórica de cada local, e os dois “contraditoriamente ou dialeticamente, consideravam que sufrágio universal poderia representar as duas coisas ao mesmo tempo: meio de ludíbrio e meio de emancipação, dependendo da época e do país”.
Trazendo a discussão para o Brasil, cita o conhecido – e polêmico – artigo A democracia como valor universal, de Carlos Nelson Coutinho – publicado na revista Encontros com a Civilização Brasileira–, que, radicalizando a tese do eurocomunismo italiano, esqueceu o termo “historicamente”. A democracia, diz Buonicore, deixava de ter um “valor historicamente universal” (sublinho o historicamente) e passava a ter “valor universal”. Diferença que está longe de ser secundária.
O capitulo XVI, Liberalismo, colonialismo e fascismo, faz a transição para outro conjunto de reflexões sobre as questões nacional, colonial e das nacionalidades, incluída aí uma discussão que diz respeito de perto à realidade brasileira, Os comunistas, os índios e a nação. Faz então um histórico da questão de negros e índios como nacionalidades.
Foram Lênin e Rosa Luxemburgo, salienta o autor, “que fizeram as críticas mais acentuadas ao caráter opressivo, e, portanto, não civilizador, da expansão do capitalismo na sua fase imperialista”. E continua: “Lênin, invertendo a lógica predominante no movimento socialista internacional, afirmou que a revolução dos povos coloniais é que poderia impulsionar as revoluções socialistas no ocidente”. Foi a III Internacional, a Internacional Comunista, que “introduziu a ´questão racial´ na pauta do movimento socialista”.
Sobre a questão dos negros, Augusto conta, no capítulo IXI, que “A plenária da Internacional dos Sindicatos Vermelhos (ISV), presidida por Alexandre Lozovsky, reunida em julho de 1928, criou o Comitê Sindical Internacional dos Trabalhadores Negros (CSITN), que lançou o jornal O Trabalhador Negro”, fato tão mais importante quanto pouco conhecido.
Sobre os índios brasileiros indaga: “seriam mesmo povos-nações com direitos históricos? Ou seriam simplesmente apêndices da grande etnia brasileira tendentes a ser engolidos por ela ao longo do tempo? Qual o futuro dos povos indígenas e sua relação com a nação brasileira? O quanto de terras seria adequado para a manutenção e reprodução de sua identidade étnico-cultural?”
A discussão sobre negros e índios na América só entrou em pauta, oficialmente, na I Conferência dos Partidos Comunistas da América Latina, realizada na Argentina em 1929. Buonicore explica que a entrada do tema na pauta deu-se a partir do documento apresentado “pelo grande intelectual comunista peruano José Carlos Mariátegui (o Amauta)”, que resultou no texto O problema das raças na América Latina. Imprescindível essa discussão para entender o comportamento dos partidos comunistas da América Latina em relação a índios e negros em seus países.
As grandes questões da revolução, do entendimento de como se deve organizar um partido político e o conceito de hegemonia, são tratadas nos capítulos de XX a XXIV. “Uma parte significativa deles aborda a maneira que Marx, Engels e Lênin encararam a revolução europeia na segunda metade do século 19, tendo por centro a Alemanha, França e Rússia”, considerando cada situação histórica concreta. Tratam de questões políticas de grande importância e atualidade, como das fases ou etapas do processo revolucionário e da consequente política de alianças e formas de luta a serem adotadas pelos trabalhadores. Em especial, Augusto trata de uma questão fundamental para a estratégia dos partidos políticos de esquerda, ou seja, da “relação dialética entre as questões nacional e democrática”. Essa questão talvez tenha sido a de maior destaque na avaliação política dos comunistas brasileiros na década de 1960 que, a meu ver, não foi bem equacionada. Qual a relação entre a luta anti-imperialista e a luta pela conquista e construção do socialismo, entre luta nacional e luta democrática? Também o historiador Eric Hobsbawm chamou a atenção para a dificuldade de essa relação ser bem equacionada.
Buonicore traz ainda para a discussão a confluência entre o pensamento de Lênin e de Gramsci sobre a questão da hegemonia, importante por desmontar um tipo de posicionamento que tenta separar os dois maiores pensadores políticos do século 20.
Os últimos nove capítulos (XXV a XXXIII) tratam de questões diversas. De novo fazendo a transição de um grupo a outro, o capítulo XXV fala de Gramsci, expondo as ideias do pensador italiano sobre ideologia e o papel dos intelectuais. Uma pequena amostra da importância deste capítulo: “O que é ideologia para Gramsci? Ele a concebe enquanto ‘uma concepção de mundo que se manifesta implicitamente na arte, no direito, nas atividades econômicas e em todas as manifestações da vida intelectual e coletiva´. No entanto, somente as ´ideologias orgânicas´ vinculadas a uma das classes fundamentais da sociedade capitalista – a burguesia e o proletariado –teriam papel fundamental. E, em situações normais, a ideologia dominante seria a ideologia da classe econômica e politicamente dominante. Gramsci estabelece, então, diversos níveis entre a concepção de mundo produzida pelos intelectuais orgânicos da classe dominante e as ideias, senso comum, das classes subalternas, informadas por aquela concepção geral de mundo. Esta diferenciação em níveis (ou camadas) é engendrada pelas contradições objetivas inerentes à sociedade dividida em classes sociais antagônicas”.
São abordadas também – agora do ponto de vista da contemporaneidade – questões como a posição de Lênin em relação à revolução e ao partido, questões estas que até atualmente suscitam discussões e diferentes entendimentos. Augusto trata da luta pelo socialismo hoje numa visão leninista, exemplificando com as rebeliões modernas: as questões ideológicas e políticas levantadas pelas rebeliões na França em 1968, pela Unidade Popular no Chile (1970-1973), pela Revolução dos Cravos em Portugal (1974-1976).
Outra questão de importância política atual é a do papel das mulheres na sociedade e na luta política, assunto tratado nos capítulos XXX, XXXI e XXXII. Buonicore traça a história dessas lutas das mulheres por sua participação ativa na política de seus países, desde as primeiras sufragistas. O tema é bastante atual, justamente quando as mulheres da Arábia Saudita conquistaram o direito de votar e serem votadas – e estamos no século 21.
O último capítulo do livro é uma idealização de uma entrevista com Georg Dimitrov, que teria ocorrido em 1935 logo após o 7º Congresso da Internacional Comunista. Como diz Buonicore: “o jornalista e a entrevista nunca existiram, mas as respostas de Dimitrov foram extraídas do seu famoso informe A Ofensiva do fascismo e as tarefas da Internacional Comunista, pronunciado em 4 de agosto de 1935. Um documento da maior importância e atualidade. Nele, Dimitrov falou da necessidade de alianças com o campesinato e a pequenaburguesia urbana para a Frente antifascista, e da necessidade da ação do proletariado no sentido de não permitir que o fascismo tivesse a iniciativa da luta. Afirmava que a Internacional Comunista estava disposta a negociar até mesmo com a 2ª Internacional, “para a criação da unidade da classe operária na luta contra a ofensiva do capital, contra o fascismo e contra a ameaça de uma guerra imperialista”.
Perguntado sobre “qual seria a sua última mensagem ao proletariado do Brasil e do mundo?” o dirigente comunista responde: “Que não desanimem diante do quadro mundial adverso. Lembrem-se sempre que a seu favor trabalha toda a marcha do desenvolvimento histórico. Os reacionários, os fascistas de todas as cores, a burguesia do mundo inteiro se esforçam em vão para voltar para trás a roda da história. Mas esta roda gira e continuará girando em direção da vitória definitiva do socialismo”.
Apesar de o autor considerar que algumas das opiniões expressas em Linhas Vermelhas: Marxismo e os dilemas da Revolução não correspondem mais integralmente às suas posições atuais, as questões tratadas nesse livro são, sem dúvida, da maior importância para a compreensão do pensamento marxista, na obra dos seus principais teóricos. Discute também as mais candentes questões enfrentadas em situações revolucionárias do século 20. As questões apresentadas no livro de Augusto Buonicore ajudam-nos a refletir sobre os problemas políticos das esquerdas no Brasil, em especial no momento que atravessamos.
Num tempo em que a teoria e a política tendem a ser desprezadas, em que o individualismo parece sobrepor-se ao social, em que os partidos políticos são considerados obsoletos e descartáveis, quando as ideologias saíram de moda, é um livro imprescindível!
* Título dado pela redação do Portal.
** Marly de Almeida Gomes Vianna é professora aposentada da UFSCar e do Mestrado em História da Universidade Salgado Filho. Autora do livro Revolucionários de 1935: sonho e realidade entre outras publicações.
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