Por Marcelo Sevaybricker Moreira, na revista Teoria e Debate:
Durante boa parte de 2016, vimos, lemos e ouvimos especialistas, políticos profissionais etc. se digladiarem em torno da pergunta se a deposição de Dilma Rousseff da Presidência da República constituiria ou não um “golpe de Estado”. Se os ritos processuais foram garantidos, não haveria motivo para falar de golpe. De outro lado do fronte, argumentava-se que toda essa ritualística jurídico-parlamentar era só “perfumaria” e que o seu impeachment, sem crime de responsabilidade comprovado, configurava, sim, uma ação ilegal e ilegítima. A mídia, frequentemente, tratava a polêmica como algo a ser definido tecnicamente, por experts, o que só contribuía para a incompreensão generalizada, já considerável. Manter ou retirar um governante (por mais que, em sociedades modernas, dependa das regras do sistema jurídico) é sempre uma questão política, de disputa e arranjo de interesses.
Mas creio que a dificuldade de compreender o que ocorria seja decorrente da própria natureza da história, feita por seres humanos, ainda que sob circunstâncias já dadas, e sempre pródiga em criar situações inusitadas. O que aconteceu no Brasil de 2016 encontra, infelizmente, diversos antecedentes em nossa história, certamente recriou muito do sentido da política entre nós.
Golpe: o termo e sua história
Para aquilatar melhor o que há de velho e de novo na disputa política pelo mais alto cargo de poder da República no ano de 2016, analisemos sucintamente a própria noção de golpe.
Em relação à sua história conceitual, tanto o ator específico quanto a forma do ato foram identificados de modo variado ao longo dos séculos. O que se mantém, contudo, invariável é a ideia de que golpe é um ato praticado por algum ou alguns órgãos/agentes do próprio Estado. Cumpre dizer que essas mudanças de significado do termo “golpe de Estado” expressam os conflitos pela definição politicamente (e não técnica e imparcialmente) construída. A batalha política se ganha também no discurso.
O termo “coup d’etat” foi definido inicialmente no século 17 por Gabriel Naudè na obra Considérations Politiques Sur les Coups d’Etat.O autor fala de modo amplo em golpe de Estado, a se confundir com as próprias “razões do Estado”, que seriam “aquelas ações arrojadas e extraordinárias que os príncipes são forçados a tomar em situações difíceis e desesperadas, contrariamente à lei comum”1. Pensa-se, no caso, o golpe como uma ação do próprio soberano (que não se distingue do Estado a essa época) e que, através de conspirações, age energicamente de modo a manter o seu poder pessoal. Sob essa chave de leitura, o golpe de Estado pode ser legítimo já que necessário, como o massacre dos huguenotes de São Bartolomeu, em 1572, em Paris, promovido por Catarina de Médici.
A partir do século 19, começa a se fortalecer uma segunda definição do termo. Com a consolidação da tradição liberal e constitucionalista, golpe de Estado passa a ser utilizado para se referir a atos violentos e arbitrários do soberano, constituindo um verdadeiro atentado contra a ordem jurídica. Esse é o sentido que o livro O 18 de Brumário de Luís Bonaparte dá às ações do sobrinho de Napoleão Bonaparte para conservar-se no poder, pondo fim à República e restaurando o Império, em 2 de dezembro de 1851. Marx avalia que as alterações nas leis francesas em 1850, suprimindo o sufrágio universal, limitando o exercício da liberdade de imprensa, entre outros atos do Executivo e do Legislativo, promoveram um verdadeiro golpe de Estado contra a classe trabalhadora na França setecentista. O golpe, na concepção desse autor, representaria os sérios limites da democracia representativa e da estratégia do proletariado de se aliar à pequena burguesia, no tocante à promoção da emancipação humana. Cumpre salientar que o ator do golpe, segundo essa definição, não é mais, exclusiva e necessariamente, apenas o próprio chefe de Estado, pois pode ser praticado indiretamente por ou com a conivência de outras instituições estatais, como a Assembleia Nacional, um general etc.
Por último, no século 20, o termo golpe de Estado começa a ser utilizado com mais frequência com um novo sentido. Isso ocorre até porque muitos governos tiveram origem nessa época a partir de golpes de Estado, mais habituais do que as eleições ou a sucessão monárquica, em alguns países. Golpe de Estado significa, doravante, golpe militar, isto é, o ato de deposição do poder que tem as Forças Armadas como protagonistas da ação política. Pensemos, por exemplo, na América do Sul no século passado, um verdadeiro laboratório do golpismo militar: Paraguai em 1954, Brasil em 1937 e 1964, Chile em 1973, Argentina em 1966 e 1976, entre outras nações, a vivenciarem o mesmo padrão de (des)organização política.
Certamente, é com esse último sentido de golpe de Estado que nós, brasileiros, estamos mais habituados. A forte presença desse significado na imaginação política brasileira tem uma razão óbvia, qual seja, o reiterado protagonismo político dos militares como parte componente da história nacional. Lembremo-nos rapidamente: a República é proclamada por um golpe militar em 1889, destronando Pedro II e expulsando a família real. Quatro décadas depois, a República já é declarada “Velha”, com a Revolução de 1930, novamente um ato militar sustentado por uma aliança de oligarcas de Minas, Rio Grande do Sul e Paraíba, entre eles Getúlio Vargas. O mesmo Vargas, sete anos depois, dá um golpe militar contra a ordem por ele criada e decreta o Estado Novo (1937). Em 1945, os militares depõem Vargas e instauram a Segunda República. Essa, ainda jovem, 19 anos depois é encerrada por um golpe militar em 1o de abril 1964. Isso para não falar dos semigolpes ou golpes frustrados, como em 1954 e 1963. Se não me falha a memória, o país passou por cinco golpes militares num intervalo de tempo de 75 anos – em resumo, um golpe a cada quinze anos.
Mas o hábito, no caso, não deve entorpecer nossa capacidade de entendimento. Golpes de Estado não precisam ser uma tomada literal de poder, que ameaça com a prisão ou a morte o próprio chefe de Estado, como ocorrera com Jango. Golpes “palacianos” se tornaram cada vez mais raros no século 21. Em especial porque, dada a consolidação de uma cultura política minimamente liberal e democrática, é estratégico politicamente “agir com golpes” sem parecer golpista.
Brasil, agosto de 2016: obituário da Nova República
Considerando o modo como se deu a deposição da presidenta Dilma Rousseff, mas sem examinar aqui a fundo a questão, parte-se da premissa de que seu impeachment, não atendendo os princípios básicos de uma sociedade democrático-liberal, foi um golpe. Mas em que sentido? Claramente, não um golpe militar. Também por razões óbvias, a definição de golpe como um ato do próprio soberano para conservar o seu poder não se aplica a Dilma. Talvez o que tenha faltado a ela seja precisamente mais virtù, no sentido maquiaveliano, para conservar o poder legitimamente conquistado nas urnas. Resta, por conseguinte, a definição de golpe do século 19, isto é, golpe de Estado como um conjunto de atos praticados pelo Executivo, Legislativo ou por outras autoridades públicas, não necessariamente violentos, e que atentam contra as garantias fundamentais da ordem pública.
Um conjunto de estudos comparativos, inclusive, tem argumentado que os processos de impeachment têm se tornado uma solução política mais frequente para os processos de crise presidencial em diversos países, sobretudo da América Latina. Uma solução pacífica e que não envolve, aparentemente, rupturas institucionais mais evidentes. Podemos lembrar dos casos de impedimento dos presidentes Fernando Collor no Brasil (1992), Manuel Zelaya em Honduras (2009), Fernando Lugo no Paraguai (2012) e agora, Dilma Rousseff no Brasil (2016). Em todos esses casos, facções do poder Legislativo, do poder Judiciário e alguns órgãos importantes de comunicação de massa tiveram um papel decisivo, mais ou menos atuante na deposição desses presidentes. Cumpre notar que, em todos esses países também, a democracia representativa é um fenômeno recente e instável. Nesse contexto, o impeachment vem sendo utilizado como instrumento de disputa partidária, como uma “solução” casuística para situações de crise por elites que, como nos lembra Robert Dahl (2005), acham ainda mais proveitoso desrespeitar as normas fundamentais do sistema político do que aceitar o resultado desfavorável das urnas.
Outro indício de que o expediente constitucional do impeachmentvem sendo utilizado torpemente na disputa partidário-eleitoral (o que os regimes presidencialistas proíbem expressamente) é que, no Brasil, desde que o primeiro presidente foi eleito diretamente pelo sufrágio popular, após 21 anos de ditadura civil-militar, foram encaminhados à Câmara dos Deputados 132 pedidos de impeachment, muitos desses de autoria do próprio Partido dos Trabalhadores (PT), a mais recente vítima dessa prática no continente latino-americano.
Se tudo isso é verdade, vivenciamos no Brasil uma tentativa de instaurar um parlamentarismo a fórceps, mas que, ao cabo, tende apenas a desacreditar o sistema político como um todo, e não um governo em particular. Como numa espiral que se retroalimenta e se espalha por todo o país, passa-se a admitir que toda regra pode ser desobedecida segundo o “gosto do freguês”, visto que o princípio mais fundamental de nosso sistema político, o da soberania popular, já não mais impera plenamente.
Nesse sentido, há um golpe mais profundo ainda em curso, que não se limita apenas ao ato de deposição ilegal e ilegítima da presidenta, como notou acertada e recentemente o senador da República Roberto Requião, curiosamente membro do partido golpista, o PMDB. Certamente o impeachment da presidenta criou condições para esse golpe “silencioso”, gradual, “a conta gotas”, e que continua a ser realizado. Um golpe de morte contra o acordo mais fundamental que organiza a atual sociedade brasileira – a Constituição de 1988 –, a “Cidadã”, segundo alcunha utilizada emblematicamente por Ulisses Guimarães que completaria 100 anos neste mês de outubro. Por que “Cidadã”? Precisamente porque está inscrita em seus parágrafos mais fundamentais uma ideia de cidadania ativa e substantiva, isto é, que implica não apenas o gozo passivo de direitos civis e políticos, mas no usufruto de bens sociais que possam propiciar ao cidadão e à cidadã brasileira plena capacidade para o autodesenvolvimento moral, político e cultural. Lembremos os objetivos de nossa organização política, tais como definidos pela referida Carta:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
Durante boa parte de 2016, vimos, lemos e ouvimos especialistas, políticos profissionais etc. se digladiarem em torno da pergunta se a deposição de Dilma Rousseff da Presidência da República constituiria ou não um “golpe de Estado”. Se os ritos processuais foram garantidos, não haveria motivo para falar de golpe. De outro lado do fronte, argumentava-se que toda essa ritualística jurídico-parlamentar era só “perfumaria” e que o seu impeachment, sem crime de responsabilidade comprovado, configurava, sim, uma ação ilegal e ilegítima. A mídia, frequentemente, tratava a polêmica como algo a ser definido tecnicamente, por experts, o que só contribuía para a incompreensão generalizada, já considerável. Manter ou retirar um governante (por mais que, em sociedades modernas, dependa das regras do sistema jurídico) é sempre uma questão política, de disputa e arranjo de interesses.
Mas creio que a dificuldade de compreender o que ocorria seja decorrente da própria natureza da história, feita por seres humanos, ainda que sob circunstâncias já dadas, e sempre pródiga em criar situações inusitadas. O que aconteceu no Brasil de 2016 encontra, infelizmente, diversos antecedentes em nossa história, certamente recriou muito do sentido da política entre nós.
Golpe: o termo e sua história
Para aquilatar melhor o que há de velho e de novo na disputa política pelo mais alto cargo de poder da República no ano de 2016, analisemos sucintamente a própria noção de golpe.
Em relação à sua história conceitual, tanto o ator específico quanto a forma do ato foram identificados de modo variado ao longo dos séculos. O que se mantém, contudo, invariável é a ideia de que golpe é um ato praticado por algum ou alguns órgãos/agentes do próprio Estado. Cumpre dizer que essas mudanças de significado do termo “golpe de Estado” expressam os conflitos pela definição politicamente (e não técnica e imparcialmente) construída. A batalha política se ganha também no discurso.
O termo “coup d’etat” foi definido inicialmente no século 17 por Gabriel Naudè na obra Considérations Politiques Sur les Coups d’Etat.O autor fala de modo amplo em golpe de Estado, a se confundir com as próprias “razões do Estado”, que seriam “aquelas ações arrojadas e extraordinárias que os príncipes são forçados a tomar em situações difíceis e desesperadas, contrariamente à lei comum”1. Pensa-se, no caso, o golpe como uma ação do próprio soberano (que não se distingue do Estado a essa época) e que, através de conspirações, age energicamente de modo a manter o seu poder pessoal. Sob essa chave de leitura, o golpe de Estado pode ser legítimo já que necessário, como o massacre dos huguenotes de São Bartolomeu, em 1572, em Paris, promovido por Catarina de Médici.
A partir do século 19, começa a se fortalecer uma segunda definição do termo. Com a consolidação da tradição liberal e constitucionalista, golpe de Estado passa a ser utilizado para se referir a atos violentos e arbitrários do soberano, constituindo um verdadeiro atentado contra a ordem jurídica. Esse é o sentido que o livro O 18 de Brumário de Luís Bonaparte dá às ações do sobrinho de Napoleão Bonaparte para conservar-se no poder, pondo fim à República e restaurando o Império, em 2 de dezembro de 1851. Marx avalia que as alterações nas leis francesas em 1850, suprimindo o sufrágio universal, limitando o exercício da liberdade de imprensa, entre outros atos do Executivo e do Legislativo, promoveram um verdadeiro golpe de Estado contra a classe trabalhadora na França setecentista. O golpe, na concepção desse autor, representaria os sérios limites da democracia representativa e da estratégia do proletariado de se aliar à pequena burguesia, no tocante à promoção da emancipação humana. Cumpre salientar que o ator do golpe, segundo essa definição, não é mais, exclusiva e necessariamente, apenas o próprio chefe de Estado, pois pode ser praticado indiretamente por ou com a conivência de outras instituições estatais, como a Assembleia Nacional, um general etc.
Por último, no século 20, o termo golpe de Estado começa a ser utilizado com mais frequência com um novo sentido. Isso ocorre até porque muitos governos tiveram origem nessa época a partir de golpes de Estado, mais habituais do que as eleições ou a sucessão monárquica, em alguns países. Golpe de Estado significa, doravante, golpe militar, isto é, o ato de deposição do poder que tem as Forças Armadas como protagonistas da ação política. Pensemos, por exemplo, na América do Sul no século passado, um verdadeiro laboratório do golpismo militar: Paraguai em 1954, Brasil em 1937 e 1964, Chile em 1973, Argentina em 1966 e 1976, entre outras nações, a vivenciarem o mesmo padrão de (des)organização política.
Certamente, é com esse último sentido de golpe de Estado que nós, brasileiros, estamos mais habituados. A forte presença desse significado na imaginação política brasileira tem uma razão óbvia, qual seja, o reiterado protagonismo político dos militares como parte componente da história nacional. Lembremo-nos rapidamente: a República é proclamada por um golpe militar em 1889, destronando Pedro II e expulsando a família real. Quatro décadas depois, a República já é declarada “Velha”, com a Revolução de 1930, novamente um ato militar sustentado por uma aliança de oligarcas de Minas, Rio Grande do Sul e Paraíba, entre eles Getúlio Vargas. O mesmo Vargas, sete anos depois, dá um golpe militar contra a ordem por ele criada e decreta o Estado Novo (1937). Em 1945, os militares depõem Vargas e instauram a Segunda República. Essa, ainda jovem, 19 anos depois é encerrada por um golpe militar em 1o de abril 1964. Isso para não falar dos semigolpes ou golpes frustrados, como em 1954 e 1963. Se não me falha a memória, o país passou por cinco golpes militares num intervalo de tempo de 75 anos – em resumo, um golpe a cada quinze anos.
Mas o hábito, no caso, não deve entorpecer nossa capacidade de entendimento. Golpes de Estado não precisam ser uma tomada literal de poder, que ameaça com a prisão ou a morte o próprio chefe de Estado, como ocorrera com Jango. Golpes “palacianos” se tornaram cada vez mais raros no século 21. Em especial porque, dada a consolidação de uma cultura política minimamente liberal e democrática, é estratégico politicamente “agir com golpes” sem parecer golpista.
Brasil, agosto de 2016: obituário da Nova República
Considerando o modo como se deu a deposição da presidenta Dilma Rousseff, mas sem examinar aqui a fundo a questão, parte-se da premissa de que seu impeachment, não atendendo os princípios básicos de uma sociedade democrático-liberal, foi um golpe. Mas em que sentido? Claramente, não um golpe militar. Também por razões óbvias, a definição de golpe como um ato do próprio soberano para conservar o seu poder não se aplica a Dilma. Talvez o que tenha faltado a ela seja precisamente mais virtù, no sentido maquiaveliano, para conservar o poder legitimamente conquistado nas urnas. Resta, por conseguinte, a definição de golpe do século 19, isto é, golpe de Estado como um conjunto de atos praticados pelo Executivo, Legislativo ou por outras autoridades públicas, não necessariamente violentos, e que atentam contra as garantias fundamentais da ordem pública.
Um conjunto de estudos comparativos, inclusive, tem argumentado que os processos de impeachment têm se tornado uma solução política mais frequente para os processos de crise presidencial em diversos países, sobretudo da América Latina. Uma solução pacífica e que não envolve, aparentemente, rupturas institucionais mais evidentes. Podemos lembrar dos casos de impedimento dos presidentes Fernando Collor no Brasil (1992), Manuel Zelaya em Honduras (2009), Fernando Lugo no Paraguai (2012) e agora, Dilma Rousseff no Brasil (2016). Em todos esses casos, facções do poder Legislativo, do poder Judiciário e alguns órgãos importantes de comunicação de massa tiveram um papel decisivo, mais ou menos atuante na deposição desses presidentes. Cumpre notar que, em todos esses países também, a democracia representativa é um fenômeno recente e instável. Nesse contexto, o impeachment vem sendo utilizado como instrumento de disputa partidária, como uma “solução” casuística para situações de crise por elites que, como nos lembra Robert Dahl (2005), acham ainda mais proveitoso desrespeitar as normas fundamentais do sistema político do que aceitar o resultado desfavorável das urnas.
Outro indício de que o expediente constitucional do impeachmentvem sendo utilizado torpemente na disputa partidário-eleitoral (o que os regimes presidencialistas proíbem expressamente) é que, no Brasil, desde que o primeiro presidente foi eleito diretamente pelo sufrágio popular, após 21 anos de ditadura civil-militar, foram encaminhados à Câmara dos Deputados 132 pedidos de impeachment, muitos desses de autoria do próprio Partido dos Trabalhadores (PT), a mais recente vítima dessa prática no continente latino-americano.
Se tudo isso é verdade, vivenciamos no Brasil uma tentativa de instaurar um parlamentarismo a fórceps, mas que, ao cabo, tende apenas a desacreditar o sistema político como um todo, e não um governo em particular. Como numa espiral que se retroalimenta e se espalha por todo o país, passa-se a admitir que toda regra pode ser desobedecida segundo o “gosto do freguês”, visto que o princípio mais fundamental de nosso sistema político, o da soberania popular, já não mais impera plenamente.
Nesse sentido, há um golpe mais profundo ainda em curso, que não se limita apenas ao ato de deposição ilegal e ilegítima da presidenta, como notou acertada e recentemente o senador da República Roberto Requião, curiosamente membro do partido golpista, o PMDB. Certamente o impeachment da presidenta criou condições para esse golpe “silencioso”, gradual, “a conta gotas”, e que continua a ser realizado. Um golpe de morte contra o acordo mais fundamental que organiza a atual sociedade brasileira – a Constituição de 1988 –, a “Cidadã”, segundo alcunha utilizada emblematicamente por Ulisses Guimarães que completaria 100 anos neste mês de outubro. Por que “Cidadã”? Precisamente porque está inscrita em seus parágrafos mais fundamentais uma ideia de cidadania ativa e substantiva, isto é, que implica não apenas o gozo passivo de direitos civis e políticos, mas no usufruto de bens sociais que possam propiciar ao cidadão e à cidadã brasileira plena capacidade para o autodesenvolvimento moral, político e cultural. Lembremos os objetivos de nossa organização política, tais como definidos pela referida Carta:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação
(CONSTITUIÇÃO FEDERATIVA DA REPÚBLICA DO BRASIL DE 1988)
Quando o mesmo grupo político responsável pela ascensão de Michel Temer se articula para aprovar, por exemplo, uma proposta de emenda constitucional (PEC 241) que prevê limitação drástica dos gastos públicos, incluindo os gastos sociais (responsáveis, lembremos, pela ascensão da “nova classe trabalhadora”, pela diminuição robusta da pobreza na última década etc.), fica patente que o alvo principal do golpe não era Dilma, ou mesmo o PT, mas o povo brasileiro, ou melhor dizendo, o direito de que esse povo possa viver com um mínimo de dignidade, direito esse assegurado pela Carta de 88. O golpe que depôs Dilma abriu o precedente de destruir (sob a obscena aquiescência do Judiciário), sem a necessidade de se pôr qualquer tanque de guerra nas ruas, o pouco que conseguimos construir no país de Estado de bem-estar social.
Referências bibliográficas
BARBÉ, Carlos. “Golpe de Estado” in BOBBIO, Norberto (Org.). Dicionário de Política. 11. ed. Brasília: Ed. UNB, 1998.
CONSTITUIÇÃO FEDERATIVA DA REPÚBLICA DO BRASIL DE 1988. Acesso em: 14/10/2016.
DAHL, Robert. Poliarquia: Participação e Oposição. São Paulo: Edusp, 2005.
HENTZ, James. “Coup d’Etat” in KURIAN, George (Ed.). The Enciclopedy of Political Science. Washington DC: CQ Press, 2011.
MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.
SALLUM JUNIOR, Brasilio. O Impeachment de Fernando Collor: Sociologia de uma Crise. São Paulo: Editora 34, 2015.
VIROLI, Maurizio. "The origin and the meaning of the reason of State" in HAMPSHER-MONK, Iain et al. History of Concepts: Comparative Perspective. Amsterdam: Amsterdam University Press, 1998.
* Marcelo Sevaybricker Moreira é doutor e professor de Ciência Política pela Universidade Federal de Lavras (MG).
(CONSTITUIÇÃO FEDERATIVA DA REPÚBLICA DO BRASIL DE 1988)
Quando o mesmo grupo político responsável pela ascensão de Michel Temer se articula para aprovar, por exemplo, uma proposta de emenda constitucional (PEC 241) que prevê limitação drástica dos gastos públicos, incluindo os gastos sociais (responsáveis, lembremos, pela ascensão da “nova classe trabalhadora”, pela diminuição robusta da pobreza na última década etc.), fica patente que o alvo principal do golpe não era Dilma, ou mesmo o PT, mas o povo brasileiro, ou melhor dizendo, o direito de que esse povo possa viver com um mínimo de dignidade, direito esse assegurado pela Carta de 88. O golpe que depôs Dilma abriu o precedente de destruir (sob a obscena aquiescência do Judiciário), sem a necessidade de se pôr qualquer tanque de guerra nas ruas, o pouco que conseguimos construir no país de Estado de bem-estar social.
Referências bibliográficas
BARBÉ, Carlos. “Golpe de Estado” in BOBBIO, Norberto (Org.). Dicionário de Política. 11. ed. Brasília: Ed. UNB, 1998.
CONSTITUIÇÃO FEDERATIVA DA REPÚBLICA DO BRASIL DE 1988. Acesso em: 14/10/2016.
DAHL, Robert. Poliarquia: Participação e Oposição. São Paulo: Edusp, 2005.
HENTZ, James. “Coup d’Etat” in KURIAN, George (Ed.). The Enciclopedy of Political Science. Washington DC: CQ Press, 2011.
MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.
SALLUM JUNIOR, Brasilio. O Impeachment de Fernando Collor: Sociologia de uma Crise. São Paulo: Editora 34, 2015.
VIROLI, Maurizio. "The origin and the meaning of the reason of State" in HAMPSHER-MONK, Iain et al. History of Concepts: Comparative Perspective. Amsterdam: Amsterdam University Press, 1998.
* Marcelo Sevaybricker Moreira é doutor e professor de Ciência Política pela Universidade Federal de Lavras (MG).
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