Por Danielle Michelle de Moura Araújo e José Renato Vieira Martins, no site Carta Maior:
Quais podem ser os desdobramentos do golpe parlamentar no Brasil para a integração regional da América do Sul? Como a nova direita que está chegando ao poder em vários países da região pretende levar adiante uma reaproximação com os Estados Unidos?
Não há respostas conclusivas para estas questões, mas certamente elas interpelam a todos que se ocupam, nas universidades, nos movimentos sociais e nos partidos partidos políticos, com a reflexão sobre a teoria e a prática dos processos de integração regional.
Nos últimos anos a integração regional foi concebida como parte dos processos de desenvolvimento pelos governos progressistas. No Brasil, Lula e Dilma tentaram combinar a criação de um mercado interno de consumo de massas com a expansão do mercado regional, ampliando oportunidades de investimentos e gerando novos empregos.
O Mercosul, que surgiu nos anos noventa como um acordo estritamente comercial, foi reorientado para cumprir este objetivo. Apesar de limitada, uma nova institucionalidade foi criada para o bloco e novos temas foram incorporados, como a integração produtiva, o combate às assimetrias e a participação social. A criação do Parlasul realçou a importância da integração política.
O segundo objetivo da integração regional foi o de unificar politicamente a região, seja para impedir ingerências externas nos assuntos regionais, seja para favorecer a presença da America Latina nos fóruns internacionais, independentemente das diferenças políticas existentes entre os governos de cada país.
Para isso se criou a UNASUL e depois a CELAC. Esses organismos permitiram que os países da América Latina e Caribe se reunissem pela primeira vez sem a presença de terceiros. Defesa e saúde pública foram áreas nas quais a integração mais avançou na UNASUL, revelando a importância da cooperação para o desenvolvimento econômico e social da região.
A aliança entre Argentina, Brasil e Venezuela fortaleceu enormemente a integração regional, e a Americana Latina se converteu em uma das poucas regiões do mundo resiliente ao neoliberalismo bem como à ordem unipolar defendida pelos EUA, que, a pretexto de exportar a democracia, tem legitimado a ditadura financeira que domina o planeta.
O quadro atual é desolador quando se observa a América Latina da perspectiva de sua integração regional.
Primeiramente, o futuro da região vai depender em grande parte dos resultados das eleições nos EUA, onde um candidato xenófobo, racista e misógino disputa o poder com uma candidata cujo nome está associado à destruição da Líbia e à invasão da Síria, origem da maior crise humanitária da atualidade.
Ao mesmo tempo em que apoia os tratados de livre comércio com a Europa (TTIP) e os países do Pacífico (TPP), Hillary Clinton evita defendê-los publicamente, para não se indispor com a base do Partido Democrata, especialmente com os sindicalistas, os movimentos sociais e as ONGs ambientalistas que combatem fortemente esses acordos.
Donald Trump, com fervor ultra-nacionalista, ataca a globalização de uma perspectiva reacionária, combatendo tudo o que ele associa ao declínio do império americano. Se por mal dos pecados vier a vencer as eleições de novembro as negociações comerciais podem deixar de ser prioritárias, colocando água na fervura da direita latino-americana, desejosa de pegar carona na rabeira dos mega tratados comerciais.
Ainda em relação ao Estados Unidos, convém lembrar que a derrocada da ALCA foi um enorme revés para os seus interesses. A partir de então os Estados Unidos desencadearam a maior ofensiva conservadora contra a região. O Plano Colômbia, os TLCs e a Aliança do Pacífico são o lado visível dessa operação.
O lado invisível tem raízes na Revolução de Veludo, evolui com a Primavera Árabe, para chegar à América Latina sob a forma de Golpes Parlamentares. Honduras foi o laboratório desse novo tipo de golpe, que alcançou o Paraguai e finalmente atingiu o Brasil. Agências de inteligência e informação, fundações e ONGs financiadas pelos EUA estiveram presentes nesses acontecimentos.
O golpe no Brasil é parte do processo de ofensiva contra o progressismo latino-americano. A nova direita que vai assumindo o controle da região, ao mesmo tempo em que parece unificada em torno da ideia de reaproximação com os Estados Unidos, tem se revelado hesitante quanto à forma de fazer a desconstrução da integração regional.
Uma abertura unilateral nos moldes do que foi feito nos tempos do "realismo periférico", de Menem, ou da "inserção subalterna" de FHC, contém riscos que os governos Macri e Temer parecem não querer enfrentar, pelo menos por agora. A Argentina tem eleições legislativas em 2017, e o Brasil tem eleições presidenciais em 2018. Uma abertura unilateral traria de volta o regime de apartheidsocial, desemprego em massa e informalidade que poderia atrapalhar os planos de continuidade do projeto conservador recentemente imposto.
Para a estratégia de aproximação com os EUA prosperar, as iniciativas de integração regional em bases progressivas precisam ser desconstruídas. A questão é como fazê-lo. E como resistir a que sejam feitas.
Serra tem aversão ao Mercosul e desde sempre o combateu. Quando disputou e perdeu as eleições presidenciais em 2002 e 2010, ele já falava em flexibilizá-lo. Com certeza tentará cumprir agora a promessa, quando o bloco já se encontra debilitado, em razão dos impasses que enfrentava antes mesmo do golpe. A direita regional defende a expulsão (ou suspensão) da Venezuela - a depender da evolução da crise naquele país - e o fim da União Aduaneira - com liberdade para os sócios negociarem acordos comerciais com terceiros.
As esquerdas foram mais zelosas com a institucionalidade existente nestes espaços. Nem bem chegaram ao poder, por ironia ou esperteza, as direitas trataram de instrumentalizar o Mercosul, passando por cima de normas consagradas, como o rodízio da presidência pro tempore, para alcançar os seus fins políticos.
Também se cogita uma convergência do Mercosul com a Aliança do Pacífico, o que aproximaria a América Latina dos mega tratados internacionais. Esses tratados tem um forte componente geopolítico, e visam a isolar a China, a Rússia e a Índia. Há quem se refira ao TTIP como "o maior porta-aviões dos Estados Unidos". Como já era o propósito da ALCA, uma aproximação por esta via pode significar a recolonização da America do Sul, com a abertura de bases militares dos EUA por toda região.
A experiência recente revelou a importância dos partidos políticos, movimentos socais e universidades se posicionarem sobre os rumos da política externa. A criação da UNILA e da UNILAB é uma mostra disso. Essas novas universidades são espaços acadêmicos comprometidos em pensar as problemáticas latino-americanas e africanas. A ofensiva conservadora contra a integração latino-americana concerne a todos e representa uma ameaça para o futuro da região. O momento é de resistência às tentativas de recolonização da América Latina, bem como de balanço político e reflexão teórica sobre as políticas de integração regional.
* José Renato Vieira Martins é sociólogo, professor adjunto do Curso de Ciência Política e Sociologia da UNILA e presidente do Fórum Universitário Mercosul (FOMERCO); Danielle Michelle de Moura Araújo é antropóloga, professora adjunta do Curso de Antropologia e Diversidade Cultural da UNILA e coordenadora do Centro Interdisciplinar de Antropologia e História.
Quais podem ser os desdobramentos do golpe parlamentar no Brasil para a integração regional da América do Sul? Como a nova direita que está chegando ao poder em vários países da região pretende levar adiante uma reaproximação com os Estados Unidos?
Não há respostas conclusivas para estas questões, mas certamente elas interpelam a todos que se ocupam, nas universidades, nos movimentos sociais e nos partidos partidos políticos, com a reflexão sobre a teoria e a prática dos processos de integração regional.
Nos últimos anos a integração regional foi concebida como parte dos processos de desenvolvimento pelos governos progressistas. No Brasil, Lula e Dilma tentaram combinar a criação de um mercado interno de consumo de massas com a expansão do mercado regional, ampliando oportunidades de investimentos e gerando novos empregos.
O Mercosul, que surgiu nos anos noventa como um acordo estritamente comercial, foi reorientado para cumprir este objetivo. Apesar de limitada, uma nova institucionalidade foi criada para o bloco e novos temas foram incorporados, como a integração produtiva, o combate às assimetrias e a participação social. A criação do Parlasul realçou a importância da integração política.
O segundo objetivo da integração regional foi o de unificar politicamente a região, seja para impedir ingerências externas nos assuntos regionais, seja para favorecer a presença da America Latina nos fóruns internacionais, independentemente das diferenças políticas existentes entre os governos de cada país.
Para isso se criou a UNASUL e depois a CELAC. Esses organismos permitiram que os países da América Latina e Caribe se reunissem pela primeira vez sem a presença de terceiros. Defesa e saúde pública foram áreas nas quais a integração mais avançou na UNASUL, revelando a importância da cooperação para o desenvolvimento econômico e social da região.
A aliança entre Argentina, Brasil e Venezuela fortaleceu enormemente a integração regional, e a Americana Latina se converteu em uma das poucas regiões do mundo resiliente ao neoliberalismo bem como à ordem unipolar defendida pelos EUA, que, a pretexto de exportar a democracia, tem legitimado a ditadura financeira que domina o planeta.
O quadro atual é desolador quando se observa a América Latina da perspectiva de sua integração regional.
Primeiramente, o futuro da região vai depender em grande parte dos resultados das eleições nos EUA, onde um candidato xenófobo, racista e misógino disputa o poder com uma candidata cujo nome está associado à destruição da Líbia e à invasão da Síria, origem da maior crise humanitária da atualidade.
Ao mesmo tempo em que apoia os tratados de livre comércio com a Europa (TTIP) e os países do Pacífico (TPP), Hillary Clinton evita defendê-los publicamente, para não se indispor com a base do Partido Democrata, especialmente com os sindicalistas, os movimentos sociais e as ONGs ambientalistas que combatem fortemente esses acordos.
Donald Trump, com fervor ultra-nacionalista, ataca a globalização de uma perspectiva reacionária, combatendo tudo o que ele associa ao declínio do império americano. Se por mal dos pecados vier a vencer as eleições de novembro as negociações comerciais podem deixar de ser prioritárias, colocando água na fervura da direita latino-americana, desejosa de pegar carona na rabeira dos mega tratados comerciais.
Ainda em relação ao Estados Unidos, convém lembrar que a derrocada da ALCA foi um enorme revés para os seus interesses. A partir de então os Estados Unidos desencadearam a maior ofensiva conservadora contra a região. O Plano Colômbia, os TLCs e a Aliança do Pacífico são o lado visível dessa operação.
O lado invisível tem raízes na Revolução de Veludo, evolui com a Primavera Árabe, para chegar à América Latina sob a forma de Golpes Parlamentares. Honduras foi o laboratório desse novo tipo de golpe, que alcançou o Paraguai e finalmente atingiu o Brasil. Agências de inteligência e informação, fundações e ONGs financiadas pelos EUA estiveram presentes nesses acontecimentos.
O golpe no Brasil é parte do processo de ofensiva contra o progressismo latino-americano. A nova direita que vai assumindo o controle da região, ao mesmo tempo em que parece unificada em torno da ideia de reaproximação com os Estados Unidos, tem se revelado hesitante quanto à forma de fazer a desconstrução da integração regional.
Uma abertura unilateral nos moldes do que foi feito nos tempos do "realismo periférico", de Menem, ou da "inserção subalterna" de FHC, contém riscos que os governos Macri e Temer parecem não querer enfrentar, pelo menos por agora. A Argentina tem eleições legislativas em 2017, e o Brasil tem eleições presidenciais em 2018. Uma abertura unilateral traria de volta o regime de apartheidsocial, desemprego em massa e informalidade que poderia atrapalhar os planos de continuidade do projeto conservador recentemente imposto.
Para a estratégia de aproximação com os EUA prosperar, as iniciativas de integração regional em bases progressivas precisam ser desconstruídas. A questão é como fazê-lo. E como resistir a que sejam feitas.
Serra tem aversão ao Mercosul e desde sempre o combateu. Quando disputou e perdeu as eleições presidenciais em 2002 e 2010, ele já falava em flexibilizá-lo. Com certeza tentará cumprir agora a promessa, quando o bloco já se encontra debilitado, em razão dos impasses que enfrentava antes mesmo do golpe. A direita regional defende a expulsão (ou suspensão) da Venezuela - a depender da evolução da crise naquele país - e o fim da União Aduaneira - com liberdade para os sócios negociarem acordos comerciais com terceiros.
As esquerdas foram mais zelosas com a institucionalidade existente nestes espaços. Nem bem chegaram ao poder, por ironia ou esperteza, as direitas trataram de instrumentalizar o Mercosul, passando por cima de normas consagradas, como o rodízio da presidência pro tempore, para alcançar os seus fins políticos.
Também se cogita uma convergência do Mercosul com a Aliança do Pacífico, o que aproximaria a América Latina dos mega tratados internacionais. Esses tratados tem um forte componente geopolítico, e visam a isolar a China, a Rússia e a Índia. Há quem se refira ao TTIP como "o maior porta-aviões dos Estados Unidos". Como já era o propósito da ALCA, uma aproximação por esta via pode significar a recolonização da America do Sul, com a abertura de bases militares dos EUA por toda região.
A experiência recente revelou a importância dos partidos políticos, movimentos socais e universidades se posicionarem sobre os rumos da política externa. A criação da UNILA e da UNILAB é uma mostra disso. Essas novas universidades são espaços acadêmicos comprometidos em pensar as problemáticas latino-americanas e africanas. A ofensiva conservadora contra a integração latino-americana concerne a todos e representa uma ameaça para o futuro da região. O momento é de resistência às tentativas de recolonização da América Latina, bem como de balanço político e reflexão teórica sobre as políticas de integração regional.
* José Renato Vieira Martins é sociólogo, professor adjunto do Curso de Ciência Política e Sociologia da UNILA e presidente do Fórum Universitário Mercosul (FOMERCO); Danielle Michelle de Moura Araújo é antropóloga, professora adjunta do Curso de Antropologia e Diversidade Cultural da UNILA e coordenadora do Centro Interdisciplinar de Antropologia e História.
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