Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
A demorada resposta de Michel Temer, do ministro da Justiça Alexandre Moraes e demais integrantes do governo sobre as causas e responsabilidades que levaram ao massacre de 56 presos do Anísio Jobim, em Manaus, é compreensível como um teorema para estudantes do ensino médio. Estamos falando da ditadura que ficou.
O início e o fim deste processo encontra-se num projeto de organização do Estado que rejeita os preceitos essenciais das democracias, que consistem na defesa da presunção da inocência e o direito de defesa, a partir da noção revolucionária - criada no fim do século XVIII - de que todos são iguais perante a lei, qualquer que seja sua fortuna, a cor da pele, o gênero.
Essa visão política, essência de um projeto de Estado de longa duração, que ataca o regime democrático num ponto fundamental - os direitos do indivíduo - foi alimentada por campanhas permanentes de combate aos direitos humanos, impedindo, no final da ditadura militar, a indispensável construção de um Estado Democrático de Direito acessível ao conjunto dos brasileiros. Como sabem aqueles que não tiveram a memória apodrecida pelas mentiras de conveniência criadas mais tarde, o combate à uma ditadura de ferro que durou 21 anos teve início nas denúncias da tortura, das execuções covardes e demais formas de violência política produzidas pelo condomínio militar-empresarial que financiou e dirigiu, inicialmente com recursos privados e organismos paralelos ao Estado, o país do pau de arara e da cadeira do dragão. De 1985 para cá o Brasil país mudou, escreveu uma Constituição relativamente avançada, fez sete eleições diretas para presidente e conquistou avanços que nem é preciso lembrar aqui.
A demorada resposta de Michel Temer, do ministro da Justiça Alexandre Moraes e demais integrantes do governo sobre as causas e responsabilidades que levaram ao massacre de 56 presos do Anísio Jobim, em Manaus, é compreensível como um teorema para estudantes do ensino médio. Estamos falando da ditadura que ficou.
O início e o fim deste processo encontra-se num projeto de organização do Estado que rejeita os preceitos essenciais das democracias, que consistem na defesa da presunção da inocência e o direito de defesa, a partir da noção revolucionária - criada no fim do século XVIII - de que todos são iguais perante a lei, qualquer que seja sua fortuna, a cor da pele, o gênero.
Essa visão política, essência de um projeto de Estado de longa duração, que ataca o regime democrático num ponto fundamental - os direitos do indivíduo - foi alimentada por campanhas permanentes de combate aos direitos humanos, impedindo, no final da ditadura militar, a indispensável construção de um Estado Democrático de Direito acessível ao conjunto dos brasileiros. Como sabem aqueles que não tiveram a memória apodrecida pelas mentiras de conveniência criadas mais tarde, o combate à uma ditadura de ferro que durou 21 anos teve início nas denúncias da tortura, das execuções covardes e demais formas de violência política produzidas pelo condomínio militar-empresarial que financiou e dirigiu, inicialmente com recursos privados e organismos paralelos ao Estado, o país do pau de arara e da cadeira do dragão. De 1985 para cá o Brasil país mudou, escreveu uma Constituição relativamente avançada, fez sete eleições diretas para presidente e conquistou avanços que nem é preciso lembrar aqui.
Mas o projeto anti-cidadão, anti-democracia, uma herança colonial que teve o apogeu em quatro séculos de escravidão, nunca foi derrotado, nem vencido. Prosseguiu na forma de uma conspiração. Escondida, pois implicava da defesa de crimes, envergonhada, pois implicava em abençoar a tortura e toda violência contra cidadãos indefesos, mas permanente.
Mesmo no subterrâneo, a resistência à democracia nunca deixou de agir, procurar alianças, reforçar apoio. Seu ponto culminante é visível todas as noites, nas periferias de grandes cidades, onde um documento chamado "auto de resistência" serve para legalizar execuções de jovens pobres, especialmente negros, pelas balas da Polícia Militar.
Percorremos um longo percurso para chegar a isso, meus amigos. Em 1979, a resistência anti-democrática protegeu os torturadores numa Lei de Anistia que perdoava previamente todos os seus crimes -- e, em decisões que chegaram a nossos dias, contou até com a generosidade do STF para jamais olhar para o passado. Em 1982, depois da primeira derrota em urnas do regime militar, abriu-se uma luta feroz contra os programas de direitos humanos que, sob inspiração de dom Paulo Evaristo Arns, começam a ser implementados por determinados governos estaduais.
Mesmo no subterrâneo, a resistência à democracia nunca deixou de agir, procurar alianças, reforçar apoio. Seu ponto culminante é visível todas as noites, nas periferias de grandes cidades, onde um documento chamado "auto de resistência" serve para legalizar execuções de jovens pobres, especialmente negros, pelas balas da Polícia Militar.
Percorremos um longo percurso para chegar a isso, meus amigos. Em 1979, a resistência anti-democrática protegeu os torturadores numa Lei de Anistia que perdoava previamente todos os seus crimes -- e, em decisões que chegaram a nossos dias, contou até com a generosidade do STF para jamais olhar para o passado. Em 1982, depois da primeira derrota em urnas do regime militar, abriu-se uma luta feroz contra os programas de direitos humanos que, sob inspiração de dom Paulo Evaristo Arns, começam a ser implementados por determinados governos estaduais.
Com auxílio do mau jornalismo policial do rádio e da TV, que glorificava a violência contra cidadãos sem pretos, pobres e, especialmente, sem dinheiro para pagar advogado, governadores de Estado foram encurralados no esforço para enquadrar as Polícias Militares, enclaves autoritários que nunca deixaram de bater continência para a hierarquia militar - e seguem assim nos dias de hoje. Em 1989, os veteranos do DOI-CODI se uniram para montar armadilhas secretas na eleição presidencial, a primeira pelo voto direto desde 1960. Eles ajudaram, na reta final, a arrancar um punhado de votos que poderiam ter auxiliado Luiz Inácio Lula da Silva num segundo turno de virada contra Fernando Collor, forjando uma falsa ligação do PT com o sequestro do empresário Abílio Diniz. Em 1992, os primeiros traços da chamada Nova Direita, aquela que 24 anos mais tarde -- espaço demográfico de uma geração -- tomou posse das ruínas apocalípticas do golpe de 31 de agosto, fez uma aparição inesquecível na invasão e massacre de 111 mortos no Carandiru. Foi ali que o PMDB das lutas democráticas assinou sua traição histórica e perdeu toda possibilidade de um projeto nacional, tornando-se abrigo de várias quadrilhas internas, regionalizadas como bandos em competição.
Sentado na cadeira de Secretário de Segurança Pública, para fazer os trabalhos de rescaldo e limpeza daquele episódio deprimente da história de um país, um professor de Direito Constitucional apresentou-se como um dos gestores das contra-reformas do novo período histórico. Ele mesmo, Michel Temer.
Em 26 de setembro de 2016, ocorreu um fato mais do que simbólico, uma coincidência definitiva. Enquanto Temer completava o quarto mês no Planalto, o Tribunal de Justiça de São Paulo anulou todas as provas que poderiam condenar todos os 74 integrantes da Polícia Militar acusados no massacre. Quem diria?
O professor Antonio Flavio Pierucci (1945-2012) disse. Em 1987, Pierucci publicou um artigo chamado "As bases da Nova Direita". A partir de pesquisas junto a eleitores de São Paulo, ele detectou o surgimento de uma direita civil -- engajada, militante, organizada -- em torno da eleição de Jânio Quadros para a prefeitura, em 1985, e na campanha de Paulo Maluf, em 1986. Com argúcia, Pierucci andou por bairros que, três décadas mais tarde, iriam fornecer os grandes batalhões que foram a avenida Paulista carregar bonecos infláveis de Lula e Dilma.
"Quer vê-los tendo arrepios é pronunciar as palavras direitos humanos," escreveu o professor, que registrava o nascimento da noção dos direitos humanos -- ligado inicialmente as denúncias de tortura contra presos políticos -- como uma "inversão de valores", como coisa de "bandidos," em prejuízo do "cidadão que trabalha." Ouvindo uma advogada que residia na Mooca, três décadas atrás, ele captou uma visão que ajuda a entender uma ideologia em construção:
"O bandido hoje em dia é endeusado, embora seja assassino, estuprador, seja o diabo. Ele precisa tomar o banhozinho de sol, a comida não está boa? precisa de champagne francês, precisa de mulher, essas coisas todas no presídio. Quer dizer: efetivamente ele não está sendo punido; está vivendo às nossas custas."
Publicado pela revista Novos Estudos, do Centro Brasileiro de Análise de Planejamento (Cebrap), o artigo de Pierucci reconhece outro ponto importante, que irá se repetir nas agruras existenciais que marcam a difícil sobrevivência do governo federal do Secretário de Segurança pós-Carandiru. Estamos falando da dificuldade -- intransponível, dizem as pesquisas de opinião -- da equipe de Henrique Meirelles para reunir apoio da população para um programa de reversão de direitos sociais, desmanche do Estado e reforma da Previdência, bandeiras que também circulavam naquele período de saída da ditadura. Já naquela época verificava-se aquilo que foi confirmado em 2002, 2006, 2010 e 2014. Era possível, para os candidatos conservadores, mobilizar seu eleitorado contra o imaginário "champagne francês" dos bandidos. Mas era difícil convencer a base popular onde estão os votos, mesmo a mais reacionária, a condenar os direitos sociais, os investimentos na escola e na saúde. Ela exigia isso, cobrava com veemência -- como fez anos mais tarde, nos protestos de junho de 2013. Com todas as distâncias determinadas pela conjuntura, operava-se, ao longo de nossa história política, a arquitetura ideológica que chegaria a 2016, depois de passar pela AP 470 e pela Lava Jato -- a criminalização do adversário político como instrumento para ganhar votos e consumar ações políticas. O exercício parece maquiavelismo calculado mas é mais do que isso. O ponto de partida foi a criminalização de uma ideia -- os direitos do homem, instituídos pela Revolução Francesa.
Reconhecendo a incapacidade de vencer pelas ideias políticas que levam ao Estado mínimo, rejeitadas por suas próprias bases, Pierucci escreve que "a intolerância moral é o último trunfo" que resta ao conservadorismo numa sociedade periférica em que o liberalismo econômico não tem audiência de massa, não mobiliza o voto, não é bom de palanque." O fim dessa história nós sabemos.
O Carandiru e o massacre do Anísio Jobim estão no miolo do processo. Os programas de encarceramento de massa que elevaram a população carcerária em mais de 600% são as pérolas que se atiram aos porcos. Num país de renda média inferior, onde o custo de manutenção de cada preso no Anísio Jobim pode chegar a 5 000 reais por mês -- corrupção e privatização à parte, muito superior a renda média do brasileiro -- os presídios reservam a cada ser humano um ambiente necessariamente indecente e sórdido. Bobagem falar em super-lotação, pois é um projeto que decididamente não cabe no PIB brasileiro. Desconsiderando um arrocho geral no padrão de vida da população, não haveria outro meio para fechar a conta.
Nem haveria motivo real, pois o encarceramento recorde é produto de penas agravadas contra atos ilícitos que nem de longe representam um perigo real a sociedade.
Entre o Carandiru e Anísio Jobim, há uma diferença de função e protagonismo. Naquele ambiente em que a condição humana é submetida a um de seus testes mais dramáticos -- o encarceramento -- o Estado bateu em retirada e lava as mãos. A ausência de todo sentimento de empatia pelo sofrimento de quem é colocado à margem do Direito leva em breve ao esquecimento.
Acrescentando o caráter precário das investigações policiais e das decisões judiciais, as prisões provisórias -- sem julgamento definitivo -- atingem 40% dos prisioneiros, servindo como um atalho para esconder a incompetência da apuração, a inoperância da Justiça, o caráter seletivo das sentenças e das atenções de quem tem o poder de mando, como lembra o helicóptero com 400 quilos de cocaína do senador aliado de Aécio Neves. Escondem, acima de tudo, a realidade de que a liberdade deixou de ser um direito conquistado ao nascimento para se transformar em privilégio.
Sentenças cada vez duras servem ajudam a encobrir falta de respostas aos problemas reais e consolidam o Estado Policial.
Alguma dúvida?
Sentado na cadeira de Secretário de Segurança Pública, para fazer os trabalhos de rescaldo e limpeza daquele episódio deprimente da história de um país, um professor de Direito Constitucional apresentou-se como um dos gestores das contra-reformas do novo período histórico. Ele mesmo, Michel Temer.
Em 26 de setembro de 2016, ocorreu um fato mais do que simbólico, uma coincidência definitiva. Enquanto Temer completava o quarto mês no Planalto, o Tribunal de Justiça de São Paulo anulou todas as provas que poderiam condenar todos os 74 integrantes da Polícia Militar acusados no massacre. Quem diria?
O professor Antonio Flavio Pierucci (1945-2012) disse. Em 1987, Pierucci publicou um artigo chamado "As bases da Nova Direita". A partir de pesquisas junto a eleitores de São Paulo, ele detectou o surgimento de uma direita civil -- engajada, militante, organizada -- em torno da eleição de Jânio Quadros para a prefeitura, em 1985, e na campanha de Paulo Maluf, em 1986. Com argúcia, Pierucci andou por bairros que, três décadas mais tarde, iriam fornecer os grandes batalhões que foram a avenida Paulista carregar bonecos infláveis de Lula e Dilma.
"Quer vê-los tendo arrepios é pronunciar as palavras direitos humanos," escreveu o professor, que registrava o nascimento da noção dos direitos humanos -- ligado inicialmente as denúncias de tortura contra presos políticos -- como uma "inversão de valores", como coisa de "bandidos," em prejuízo do "cidadão que trabalha." Ouvindo uma advogada que residia na Mooca, três décadas atrás, ele captou uma visão que ajuda a entender uma ideologia em construção:
"O bandido hoje em dia é endeusado, embora seja assassino, estuprador, seja o diabo. Ele precisa tomar o banhozinho de sol, a comida não está boa? precisa de champagne francês, precisa de mulher, essas coisas todas no presídio. Quer dizer: efetivamente ele não está sendo punido; está vivendo às nossas custas."
Publicado pela revista Novos Estudos, do Centro Brasileiro de Análise de Planejamento (Cebrap), o artigo de Pierucci reconhece outro ponto importante, que irá se repetir nas agruras existenciais que marcam a difícil sobrevivência do governo federal do Secretário de Segurança pós-Carandiru. Estamos falando da dificuldade -- intransponível, dizem as pesquisas de opinião -- da equipe de Henrique Meirelles para reunir apoio da população para um programa de reversão de direitos sociais, desmanche do Estado e reforma da Previdência, bandeiras que também circulavam naquele período de saída da ditadura. Já naquela época verificava-se aquilo que foi confirmado em 2002, 2006, 2010 e 2014. Era possível, para os candidatos conservadores, mobilizar seu eleitorado contra o imaginário "champagne francês" dos bandidos. Mas era difícil convencer a base popular onde estão os votos, mesmo a mais reacionária, a condenar os direitos sociais, os investimentos na escola e na saúde. Ela exigia isso, cobrava com veemência -- como fez anos mais tarde, nos protestos de junho de 2013. Com todas as distâncias determinadas pela conjuntura, operava-se, ao longo de nossa história política, a arquitetura ideológica que chegaria a 2016, depois de passar pela AP 470 e pela Lava Jato -- a criminalização do adversário político como instrumento para ganhar votos e consumar ações políticas. O exercício parece maquiavelismo calculado mas é mais do que isso. O ponto de partida foi a criminalização de uma ideia -- os direitos do homem, instituídos pela Revolução Francesa.
Reconhecendo a incapacidade de vencer pelas ideias políticas que levam ao Estado mínimo, rejeitadas por suas próprias bases, Pierucci escreve que "a intolerância moral é o último trunfo" que resta ao conservadorismo numa sociedade periférica em que o liberalismo econômico não tem audiência de massa, não mobiliza o voto, não é bom de palanque." O fim dessa história nós sabemos.
O Carandiru e o massacre do Anísio Jobim estão no miolo do processo. Os programas de encarceramento de massa que elevaram a população carcerária em mais de 600% são as pérolas que se atiram aos porcos. Num país de renda média inferior, onde o custo de manutenção de cada preso no Anísio Jobim pode chegar a 5 000 reais por mês -- corrupção e privatização à parte, muito superior a renda média do brasileiro -- os presídios reservam a cada ser humano um ambiente necessariamente indecente e sórdido. Bobagem falar em super-lotação, pois é um projeto que decididamente não cabe no PIB brasileiro. Desconsiderando um arrocho geral no padrão de vida da população, não haveria outro meio para fechar a conta.
Nem haveria motivo real, pois o encarceramento recorde é produto de penas agravadas contra atos ilícitos que nem de longe representam um perigo real a sociedade.
Entre o Carandiru e Anísio Jobim, há uma diferença de função e protagonismo. Naquele ambiente em que a condição humana é submetida a um de seus testes mais dramáticos -- o encarceramento -- o Estado bateu em retirada e lava as mãos. A ausência de todo sentimento de empatia pelo sofrimento de quem é colocado à margem do Direito leva em breve ao esquecimento.
Acrescentando o caráter precário das investigações policiais e das decisões judiciais, as prisões provisórias -- sem julgamento definitivo -- atingem 40% dos prisioneiros, servindo como um atalho para esconder a incompetência da apuração, a inoperância da Justiça, o caráter seletivo das sentenças e das atenções de quem tem o poder de mando, como lembra o helicóptero com 400 quilos de cocaína do senador aliado de Aécio Neves. Escondem, acima de tudo, a realidade de que a liberdade deixou de ser um direito conquistado ao nascimento para se transformar em privilégio.
Sentenças cada vez duras servem ajudam a encobrir falta de respostas aos problemas reais e consolidam o Estado Policial.
Alguma dúvida?
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