Por Renaud Lambert, no site da Fundação Maurício Grabois:
A memória é por vezes cruel. Em 2 de fevereiro de 1999, em Caracas, um homem moreno pronunciou seu primeiro discurso de presidente. Seu nome: Hugo Chávez. “A Venezuela está ferida no coração”, afirmou citando Francisco de Miranda, herói da independência. Ele descreveu a crise “ética e moral” pela qual passava então seu país. Esse “câncer” gangrena a economia, de sorte que, disse, “começamos a ouvir falar de desvalorização, de inflação”. “Feito um vulcão que trabalha de maneira subterrânea”, a crise econômica e a crise moral geraram uma terceira: a crise social. O ex-chefe militar fez uma promessa: “Esta cerimônia não é apenas mais uma transferência de poderes. Não. Ela marca uma nova época; abre a porta a uma nova existência nacional. […] Não devemos frear o processo de mudança e muito menos desviá-lo: ele correria o risco de se voltar para si mesmo, de nos afogar novamente”.
A memória é por vezes cruel, mas os venezuelanos aprenderam a rir de seus apuros. “Veja, esta sou eu há um ano”, nos diz Betsy Flores com uma gargalhada. “Eu pesava 10 quilos a mais! E nessa foto está a Martha. Você não a reconhece, não é? A bem dizer, nem eu reconheço. Na época, ela tinha um belo traseiro. Agora, virou uma tábua!” Quantas vezes vivemos essa cena? A quase totalidade das pessoas que encontramos, aí incluída uma ex-ministra, confessa se contentar regularmente com uma refeição por dia. E, quando se sentam à mesa, os festins são cada vez mais raros: cada um se vira com o que conseguiu arranjar nas lojas com prateleiras cheias de lacunas ou no mercado negro, cujos preços se baseiam na evolução do dólar paralelo. Entre 11 de outubro e 11 de novembro, a cotação do dólar passou de 1.230 para 1.880 bolívares, ou seja, um acréscimo de 50%! Como em 1999, “desvalorização” e “inflação” fazem parte do vocabulário cotidiano dos venezuelanos, que chegam à mesma constatação: seu vencimento, aí incluído o que ultrapassa o salário mínimo, fixado em 27 mil bolívares por mês,1 “não é suficiente para sobreviver”.
A Venezuela distribui uppercuts
Há dez anos, as ruas fervilhavam com a política. Falava-se em Constituição, em redução da pobreza, em participação popular. E não apenas em esquerda. Em 2016, as pessoas só têm um assunto na boca: alimentos. Aqueles que elas conseguiram recolher aqui e ali e, sobretudo, aquele que lhes falta ou cujos preços vão às alturas. Em meados de novembro de 2016, o arroz custava 2.500 bolívares o quilo, o que o colocava no campo do inacessível – campo onde já figuravam o frango, a manteiga, o leite, assim como a farinha necessária para a confecção das arepas, pães de milho branco que os venezuelanos adoram.
Há dez anos, em plena campanha presidencial, Chávez apresentava os progressos do sistema de saúde como “uma de [suas] maiores realizações”.2 Nenhum adversário sério teria pensado em contestá-lo. Hoje, faltam medicamentos no país. Não somente aspirina e paracetamol, mas igualmente antirretrovirais e moléculas destinadas às quimioterapias.
Há dez anos, na esteira de dezenas de outros programas sociais, nascia a “missão Negra Hipólita”. Seu objetivo? Ajudar os sem-teto urbanos. Ela foi uma das primeiras vítimas da crise. O espetáculo das pessoas esperando a saída das latas de lixo no final da tarde se tornou familiar, enquanto as ruas de Caracas expõem aos olhares as mil e uma faces dos problemas de saúde das crianças.
Inflação, miséria e corrupção: as forças telúricas que Chávez descrevia quando tomou posse estão de novo em atividade; o vulcão despertou. Para a direita, as coisas são simples: o socialismo sempre fracassa. Na esquerda, onde as pessoas tinham aprendido a ver a Venezuela como um farol na noite neoliberal, a incompreensão disputa com a incredulidade. E uma pergunta se impõe, aquela que já era formulada pelo dirigente bolivariano quando ele delineava o balanço de seus predecessores, em 1999: como explicar que, apesar de “tanta riqueza”, “o resultado seja tão negativo”?
“Por causa da guerra econômica que travam contra nós a oposição e seus aliados”, responde o presidente Nicolás Maduro, eleito em abril de 2013, um mês depois da morte de Chávez. Os empresários tiram proveito da diminuição do preço do petróleo (que caiu para menos de US$ 40 em 2016, depois de ter ultrapassado os US$ 100 entre 2011 e 2014) para organizar a escassez, atiçar as chamas da ira popular e preparar a derrubada do poder chavista. Sob pretexto de informar sobre o assunto, o site Dolartoday,3 com sede em Miami, orquestra a subida do dólar paralelo. Suas ambições políticas se mostram claramente por meio de uma enquete apresentada em sua página de abertura há algumas semanas. “Se a eleição presidencial ocorresse hoje, em quem você votaria?” Entre as respostas possíveis: Henry Ramos Allup, Leopoldo López, Henrique Capriles Radonski, Henry Falcón e Lorenzo Mendoza Giménez, assim como María Corina Machado. Todos membros da oposição.
Não são mais levados em conta os analistas próximos do poder que, apoiando-se no precedente chileno, defendem essa explicação da situação, como se ela fosse realmente contestada no lado dos progressistas. Ora, a questão que divide o chavismo é de outra natureza: a hostilidade daqueles cujos privilégios a revolução bolivariana procura eliminar seria suficiente para explicar o caos atual?
Membro do Partido Socialista Unificado da Venezuela (PSUV), Sergio Sánchez foi excluído dele por ter se recusado a apoiar um candidato indicado ao cargo de governador, apesar de fortes suspeitas de corrupção. O tema da “guerra econômica” lhe evoca uma imagem: “Impulsionada pela renda do petróleo, a Venezuela subiu ao ringue para distribuir os uppercuts na burguesia e no império. Hoje em dia, os anabolizantes desapareceram: o governo está nas cordas. De repente, ele considera anormal que seus adversários prossigam o combate”. Dizendo-se o tempo todo chavista, “mas contrário ao governo”, o militante Gonzalo Gómez coloca as coisas de outra maneira: “Não se faz revolução esperando que o capitalismo não vá reagir”. “Além disso”, prossegue, “é preciso distinguir duas atitudes: a que consiste em criar as condições da crise e a que consiste em se aproveitar dela. Com muita frequência, os patrões se contentam em tirar partido dos problemas de funcionamento da economia.”
Pequenas turbulências se acumulam
Para uma parte da esquerda, o caos atual se explicaria pelo caráter todo-poderoso de um adversário capaz, dezessete anos após sua derrota, de produzir o descarrilamento da economia. Para outra, ele decorreria da traição de líderes cínicos que teriam passado para a direita. Mas podemos igualmente enxergar os processos de transformação social como contraditórios: suas conquistas – consideráveis, no caso venezuelano4 – dão origem por vezes a dificuldades que, por falta de resposta, podem se tornar ameaçadoras. A queda não seria, portanto, inscrita no processo de transformação, mas em sua incapacidade de reagir a cada etapa às consequências de sua ação. É a lição da “teoria das catástrofes”, que Chávez expôs a seu auditório num certo 2 de fevereiro de 1999: “Segundo essa teoria, as catástrofes aparecem de maneira progressiva, quando, num dado sistema, se manifesta uma pequena perturbação que não encontra nenhuma capacidade de regulação, uma pequeníssima perturbação que exigia apenas uma pequeníssima correção. Na ausência da capacidade e da vontade de agir, a primeira perturbação encontra outra, também muito pequena, que não encontra mais resposta. E as pequenas perturbações se acumulam, até que o sistema perca a capacidade de regulá-las. É então que sobrevém a catástrofe”.
Quando Chávez chegou ao poder, o preço do barril de petróleo estava numa baixa histórica, próximo dos US$ 10: um desastre que para ser explicado requer mergulhar na história do país. No início do século XX, a nação caribenha figurava entre os maiores produtores de café e cacau. Depois, ela descobriu imensas reservas do ouro negro… Em apenas dez anos, de 1920 a 1930, o setor petrolífero passou de 2,5% do PIB a cerca de 40%, com a agricultura despencando de 39% para 12,2%.5 Quando a crise dos anos 1930 provocou a queda da cotação do café, a maior parte dos países da região desvalorizou sua moeda para manter a competitividade das exportações e lançar um processo de industrialização baseado na produção local de bens antes importados (“substituição de importações”). A Venezuela avançou em sentido inverso: dispondo de significativas quantidades de divisas graças à renda do petróleo, ela cedeu à pressão do lobby comercial que organizou a importação de tudo aquilo que o país consome.
Chávez descobre um poder espetacular
O raciocínio desses donos de mercearia vestidos de terno? Quanto mais forte for a moeda local, mais os venezuelanos poderão consumir, e eles poderão enriquecer. Entre 1929 e 1938, em plena crise internacional, Caracas elevou o valor do bolívar em 64%. A operação trancou as portas do comércio internacional ao setor agrícola; além disso, ela barrou igualmente o acesso dos produtores rurais às lojas nacionais, inundadas de produtos baratos. Apesar das promessas constantes de sair do modelo rentista desde então, o desequilíbrio econômico foi crescendo pouco a pouco, e, quando Chávez tomou as rédeas do país, 85,8% do valor das exportações provinha do petróleo.6
Com um preço do petróleo lá embaixo em 1999, a economia venezuelana parecia um jumbo puxado por um motor de teco-teco: ela avançava com muita dificuldade. O novo presidente colocou a diversificação da economia na primeira fila de suas prioridades, mas considerou que isso tomaria tempo. Ora, a paciência não é uma característica de uma população febril, cujas esperanças foram estimuladas pela campanha eleitoral. A solução passaria por uma reativação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), cujas cotas nenhum dos países respeitava mais. A operação deu resultado: os preços começaram a subir novamente. Mas ela criou uma primeira perturbação: a urgência de se libertar dos tormentos da escassez se apagou diante da tentação de usufruir a abundância.
“Os primeiros anos foram muito difíceis”, lembra Víctor Álvarez, ex-ministro da Indústria de Base e do Setor Minerador (2005-2006). “A imprensa apresentava Chávez como um palhaço. E a oposição não escolheu a via da contestação democrática.” Em 2002, ela organizou um golpe de Estado com a ajuda dos grandes meios de comunicação e de Washington. “Pior”, prossegue Álvarez, “em 10 de dezembro de 2002, no exato dia em que íamos lançar um programa destinado a reforçar a indústria nacional redirecionando para ela os contratos públicos, os patrões organizaram um locaute!” A greve do setor privado e dos altos dirigentes do setor petroleiro (nacionalizado) durou dois meses e diminuiu o PIB em cerca de 10%.7 “Nosso projeto foi colocado numa gaveta, de onde nunca mais saiu.”
Os preços do petróleo continuaram a subir, chegando a cerca de US$ 30 o barril em 2003. O governo bolivariano dispôs dos recursos que lhe permitiram colocar em prática os programas sociais que consolidariam sua fama nos meios populares. Incapaz de tirar Chávez do poder, a oligarquia venezuelana decidiu contrabandear seu dinheiro. A fuga de capitais atingiu montantes alarmantes: mais de US$ 28 bilhões entre 1999 e 2002, ou seja, cerca de 30% do conjunto da riqueza produzida em 2002.8 Nesse nível, não se fala mais de punção, mas de sangria.
Enquanto as reservas de divisas desabavam, o poder bolivariano tomava a única medida possível: em fevereiro de 2003, criou um controle do câmbio e fixou a paridade entre a moeda nacional e o dólar (o controle anterior do câmbio tinha sido interrompido em 1996). A partir desse momento, o Estado se reservou o direito de fornecer ou não os dólares que esta ou aquela empresa requisitavam para importar. “Chávez descobriu que dispunha de um poder extraordinário”, comenta Álvarez. “A renda não somente permitia satisfazer as necessidades da população, como oferecia a possibilidade de punir aqueles que tinham conspirado contra o poder recusando-lhes as divisas.” Privadas de dólares, muitas empresas fechavam, a menos que seu proprietário pedisse perdão. “Porque a renda garantia enfim a lealdade dos empresários oportunistas.” A espécie não é rara.
“A política do bolívar forte constituiu uma subvenção ao conjunto da economia”, acrescenta o sociólogo Edgardo Lander. “A renda financiava o consumo, aí incluídos carros de luxo e passagens de avião.” Entre 2004 e 2008, a Venezuela conheceu um período de abundância. O PIB per capita beirava seu nível de 1977, o apogeu de um período conhecido como o “Dame dos!” (“É barato, vou levar dois!”). Outrora considerada uma armadilha da qual era preciso se emancipar, a renda encontrou seu papel tradicional de viga mestra do modelo econômico venezuelano. Nova perturbação, sem correção…
O controle do câmbio não iria mais desaparecer. Concebido como uma medida temporária para lutar contra a fuga dos capitais, “ele se tornou seu principal motor”, explica Temir Porras, ex-chefe de gabinete de Maduro. “País extremamente dependente das importações, a Venezuela exibe uma inflação estrutural de cerca de 15% a 20%. Mas o mesmo não acontece com o dólar. Fixar uma paridade com a moeda norte-americana implica, portanto, supervalorizar sua moeda. Não se conhece receita melhor para destruir a produção nacional. Não somente se torna mais custoso produzir localmente que importar como o país redescobre um negócio particularmente rentável: a importação superfaturada.”
A operação é simples. Imaginemos um importador que dispõe de uma rede que lhe permite comprar garrafas de água a 10 centavos a peça. Ele consegue do Estado dólares para comprar 1 milhão de garrafas, das quais declara pagar 20 centavos a peça por meio de uma empresa que ele criou previamente fora do país. Resultado: o empresário dispõe de US$ 100 mil que ele pode escoar no mercado negro local. “A cambalhota é por vezes realizada antes mesmo da distribuição do produto”, prossegue Porras. “De forma que alguns importadores abandonam os produtos nos hangares, vendendo apenas a quantidade necessária para comprar novos dólares.” Entre 2002 e 2012, o valor das importações quintuplicou, passando de cerca de US$ 10 bilhões para US$ 50 bilhões, um crescimento bem mais rápido que o de seu volume. Lucrativo, o setor da importação atrai muita gente: aqueles que logo seriam chamados de “boliburgueses” e que o poder apresenta como “patrões socialistas”, mas também militares, altos funcionários e bandidos.
Taxas de lucro de 18.000%
Durante esse tempo, a redução da pobreza – uma das grandes realizações da revolução bolivariana – permitiu à população consumir mais. Num contexto em que o poder pouco contesta o setor privado no que se refere ao domínio deste último sobre as importações, o maná petrolífero que ele derrama sobre a população para “saldar a dívida social” flui para os bolsos dos empresários. Assim, apesar das conquistas sociais e geopolíticas, a Venezuela reencontrou pouco a pouco sua função primeira na divisão internacional do trabalho: a de país exportador não somente de petróleo, mas também de divisas. Segundo os cálculos da publicação trimestral Macromet, a fuga de capitais (aí incluído o superfaturamento das importações) teria atingido US$ 170 bilhões entre 2004 e 2012,9 ou seja, praticamente 160% do PIB do ano de 2004. Uma cifra atordoante.
Quando a crise financeira internacional orientou a cotação do petróleo para baixo, em 2008, a renda não foi mais suficiente para cobrir a fatura das importações. O país teve de se endividar para cobrir seus custos. Ele tentou limitar as despesas, sobretudo introduzindo uma dupla taxa de câmbio: uma primeira, preferencial, para as importações consideradas estratégicas; outra, mais elevada, para o resto. A ideia não era ruim, mas sua colocação em prática teria lucrado se fosse precedida de uma análise das “perturbações” que ela havia originado no passado. Dispositivos similares tinham sido instaurados nos anos 1980 e depois 1990, nas duas vezes com a mesma consequência: impulsionar a corrupção. Senão, vejamos: em 2016, a Venezuela exibe uma taxa de câmbio preferencial de 10 bolívares por dólar, e outra de 657. Obter um acesso (legal ou não) ao maná do dólar preferencial para alimentar o mercado corrente assegura uma taxa de lucro estratosférica de 6.500%. Se esses dólares forem vendidos no mercado paralelo, a taxa de lucro chega a… 18.000%. Muitas vocações para bandido surgem com cifras bem menos elevadas.
A direita quer o povo de joelhos
Ora, a Venezuela mantém uma relação particular com a corrupção. Aqui, a acumulação capitalista não se baseia na produção de riqueza, mas na capacidade de assaltar os recursos que o Estado administra. Redistribuição, clientelismo, nepotismo, favoritismo, troca de favores ou simples ilegalidade, as fronteiras entre as formas de captação dos dólares do petróleo se mostram de tal forma tênues que muitos as transpõem várias vezes por dia.
“Em 2012, Chávez por fim tomou consciência do problema econômico, sobretudo aquele ligado à taxa de câmbio”, nos conta Porras, que se dedicou a esclarecer a questão. “Tínhamos conseguido convencê-lo a agir. E… ele caiu doente.” A instabilidade política provocou uma súbita decolagem do dólar e da inflação, enquanto os preços do petróleo recomeçaram a afundar no final de 2014. O país redescobriu a escassez de produtos, ligada à atrofia de uma produção local sufocada pela supervalorização do bolívar e à queda das importações, estranguladas pela falta de divisas. “Ora”, observa Álvarez, “a escassez oferece o cadinho cultural ideal para a especulação e o mercado negro.”
“Deteriorado, o edifício se manteve graças a duas vigas mestras”, resume Lander: “Chávez e a renda vinda do petróleo.” Com o anúncio oficial do falecimento do primeiro, constatou-se a morte clínica do segundo. O modelo socioeconômico chavista desmoronou de maneira tão rápida que mais ninguém, nem mesmo o novo presidente, Maduro, estava em condições de operar a menor modificação de rumo: a coesão precária do campo chavista apoiava-se apenas na resolução comum em defender a herança do comandante, o melhor meio de preservar os equilíbrios internos – e as mamatas. Era urgente mudar de estratégia; mas cada um se empenhou em manter o rumo, mesmo que isso significasse colocar em perigo certas conquistas do período glorioso do chavismo.
Apesar de suas denúncias recorrentes dos malfeitos da oligarquia importadora, o governo preservou a tranquilidade dela. Não lhe faltou criatividade, em contrapartida, para imaginar artimanhas táticas “que acabaram por jogar lenha na fogueira da especulação”, como explica Álvarez. Em 2011, o governo fez passar uma lei orgânica de “preços justos”, para tentar impor um teto aos preços de produtos básicos. “Mas eles eram com frequência inferiores aos custos de produção: as pessoas pararam de produzir.” O governo subvencionou, por outro lado, certas importações, que colocou à disposição de comunidades organizadas por meio das Comissões Locais de Abastecimento e de Produção (Clap). Em 11 de novembro de 2016, no bairro de Pastora, em Caracas, era possível conseguir uma boa cesta de alimentos (4 quilos de farinha de milho, 2 quilos de arroz, dois pacotes de macarrão, dois potes de manteiga, 1 litro de óleo, um sachê de leite em pó e 1 quilo de açúcar) por 2.660 bolívares. Um preço tão baixo oferece a perspectiva de ganhos significativos no mercado negro… no qual acaba, portanto, uma parte dos produtos.
No plano econômico, a queda do poder aquisitivo é tal que o ajustamento estrutural de alguma forma já aconteceu. Tornado mais aceitável pela retórica da “guerra econômica”, ele atinge em particular os que se veem como membros da classe média: estes não se beneficiam dos programas sociais e não têm tempo para ficar horas na fila dos supermercados. Eles se encontram então mergulhados nas “águas glaciais” do mercado negro, o que acaba por agudizar sua ira contra os mais pobres: aqueles que se beneficiariam do sistema, com os quais o Estado se mostraria “mais generoso”…
O que aconteceu com outra grande conquista chavista, o aprofundamento da democracia? Militante do movimento social “desde sempre”, Andrés Antillano considera que esta “não é somente uma bandeira de Chávez. Ela tem sido sempre um meio de mobilizar, de politizar a população”. “Nunca acreditei realmente nas virtudes das eleições”, confessa. “Mas aqui elas se tornaram um instrumento subversivo, uma força revolucionária.” Isso aconteceu mesmo? Em 2016, a oposição conseguiu superar suas (muitas) divisões para exigir a organização de um referendo revogatório, permitido pela Constituição de 1999. Ainda que tenha se tornado culpada de numerosas fraudes, ela conseguiu recolher um número suficiente de assinaturas válidas para lançar o processo e obter o sinal verde do Conselho Nacional Eleitoral (CNE). Mas, depois, governo e Poder Judiciário – este último caracterizado por uma propensão a se aliar ao Executivo – espalharam obstáculos pelo percurso, por vezes quase beirando o ridículo. Uma ameaça pouco velada: em 4 de maio de 2016, Diosdado Cabello, uma das principais figuras do chavismo, estimava que “os funcionários encarregados das instituições públicas que se pronunciavam a favor do referendo revogatório não deveriam conservar seus postos”. Ao fazer isso, “Maduro não apenas privava a oposição de referendo”, observa Antillano, “mas também nos tirava, a nós da esquerda, um dos instrumentos básicos do chavismo: a democracia”.
“O referendo é uma luta da direita, não minha”, retruca Atenea Jimenez Lemon, da Rede de Comuneros, uma poderosa organização que reúne mais de quinhentas comunas pelo país. Essas estruturas que estabelecem uma malha pelo território nacional (sobretudo o campo) constituíram a ponta de lança do “novo Estado socialista”, com base na participação que Chávez imaginava. “Sei que de vários pontos de vista se pode descrever o governo como contrarrevolucionário. Mas para mim a esquerda crítica que apela ao referendo faz o jogo da direita. Porque, se a oposição vencer, o que se vai fazer? Será que as pessoas não percebem o que eles estão armando para nós?”
Privatizações em massa, recuo do Estado, austeridade violenta: aqui ninguém tem ilusões sobre o programa dos partidos de oposição. Além disso, raros são aqueles que desejam vê-los chegar ao poder. Apesar dos esforços de alguns de seus representantes para colorir seus discursos com um caráter social, o principal objetivo da direita consiste “em colocar o povo de joelhos para nos dar uma boa lição”, analisa Betsy Flores. Uma espécie de contrarrevolução dentro da contrarrevolução.
Altos funcionários reticentes
“Nem tudo está escrito”, completa Atenea Jimenez Lemon. “As comunas oferecem um meio de aprofundar a democracia, desburocratizar o Estado e desenvolver a produção.” Advogando em causa própria? Não. À esquerda, ninguém imagina uma saída positiva da crise atual sem reforçar esse dispositivo, criado por Chávez no final de sua vida. Senão, vejamos: o ex-presidente “era como um revolucionário dentro de seu próprio governo”, explica o ex-ministro Oly Millán Campos. “Ele podia tomar decisões que iam de encontro aos interesses do aparelho de Estado. Sem ele, as comunas se defrontam com a resistência dos altos funcionários: por que eles reforçariam estruturas imaginadas com o objetivo de enfraquecê-los e depois substituí-los?”
Em 2004, Chávez tinha decidido organizar o referendo revogatório que a oposição exigia, apesar das fraudes comprovadas. Fazer isso hoje imporia ao chavismo uma cura da oposição? Não necessariamente. Uma derrota em um referendo organizado em 2016 teria conduzido a novas eleições. Em outras palavras, teria oferecido à esquerda venezuelana aquilo de que ela parece ter mais necessidade: um período de autocrítica que permita sair dos raciocínios táticos para pensar de novo em termos estratégicos. Esse período talvez tivesse permitido ao chavismo crítico fazer ouvir sua voz.
Ainda assim seria necessário que o povo lhe quisesse dar ouvidos. No final de 2015, a organização chavista Marea Socialista quis fazer sua inscrição no registro dos partidos políticos do país. O resultado foi uma declaração de inadmissibilidade por parte do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), que considerou, sem rir, que o nome da agremiação “não tinha cara” de partido político. Por seu lado, um procurador julgou que ela não podia dizer que era socialista… já que criticava o governo. “O governo conversa atualmente com a oposição, com o Vaticano e com a embaixada norte-americana, mas conosco, a esquerda crítica, ele se recusa a dialogar”, diz rindo um militante da Marea Socialista.
Guerra intestina que alegra a direita
Nas fileiras do chavismo, a batalha se inflama num estrondo ainda mais estéril pelo fato de não mais existir um local de discussão estruturado. De um lado, os partidários do poder se mostram cada vez mais discretos. De outro, uma corrente ancorada na população critica os líderes atuais, mas considera que a luta não pode acontecer fora do PSUV sob pena de devolver o poder à direita. Enfim, uma última corrente, desprovida de uma base social verdadeira, reúne vários ex-ministros, muito ativos nas redes sociais. Tal como Gómez, eles estimam que a atual burocracia “constitui uma nova burguesia, tão voraz quanto a anterior e atualmente concorrendo com ela”.
Essa guerra intestina alegra a direita, que quer destruir a esperança que Chávez fez nascer. Ela encanta igualmente os novos oligarcas de camisa vermelha, os quais sonham transformar a luta de classes que os levou ao poder em vulgar luta de facções. Se eles conseguissem ganhar, as inumeráveis perturbações às quais o chavismo não soube responder teriam seguramente gerado a catástrofe.
1 Cerca de R$ 138, tendo como base a taxa de câmbio oficial. Cerca de três vezes menos numa economia cujos preços seguem a evolução do dólar paralelo.
A memória é por vezes cruel. Em 2 de fevereiro de 1999, em Caracas, um homem moreno pronunciou seu primeiro discurso de presidente. Seu nome: Hugo Chávez. “A Venezuela está ferida no coração”, afirmou citando Francisco de Miranda, herói da independência. Ele descreveu a crise “ética e moral” pela qual passava então seu país. Esse “câncer” gangrena a economia, de sorte que, disse, “começamos a ouvir falar de desvalorização, de inflação”. “Feito um vulcão que trabalha de maneira subterrânea”, a crise econômica e a crise moral geraram uma terceira: a crise social. O ex-chefe militar fez uma promessa: “Esta cerimônia não é apenas mais uma transferência de poderes. Não. Ela marca uma nova época; abre a porta a uma nova existência nacional. […] Não devemos frear o processo de mudança e muito menos desviá-lo: ele correria o risco de se voltar para si mesmo, de nos afogar novamente”.
A memória é por vezes cruel, mas os venezuelanos aprenderam a rir de seus apuros. “Veja, esta sou eu há um ano”, nos diz Betsy Flores com uma gargalhada. “Eu pesava 10 quilos a mais! E nessa foto está a Martha. Você não a reconhece, não é? A bem dizer, nem eu reconheço. Na época, ela tinha um belo traseiro. Agora, virou uma tábua!” Quantas vezes vivemos essa cena? A quase totalidade das pessoas que encontramos, aí incluída uma ex-ministra, confessa se contentar regularmente com uma refeição por dia. E, quando se sentam à mesa, os festins são cada vez mais raros: cada um se vira com o que conseguiu arranjar nas lojas com prateleiras cheias de lacunas ou no mercado negro, cujos preços se baseiam na evolução do dólar paralelo. Entre 11 de outubro e 11 de novembro, a cotação do dólar passou de 1.230 para 1.880 bolívares, ou seja, um acréscimo de 50%! Como em 1999, “desvalorização” e “inflação” fazem parte do vocabulário cotidiano dos venezuelanos, que chegam à mesma constatação: seu vencimento, aí incluído o que ultrapassa o salário mínimo, fixado em 27 mil bolívares por mês,1 “não é suficiente para sobreviver”.
A Venezuela distribui uppercuts
Há dez anos, as ruas fervilhavam com a política. Falava-se em Constituição, em redução da pobreza, em participação popular. E não apenas em esquerda. Em 2016, as pessoas só têm um assunto na boca: alimentos. Aqueles que elas conseguiram recolher aqui e ali e, sobretudo, aquele que lhes falta ou cujos preços vão às alturas. Em meados de novembro de 2016, o arroz custava 2.500 bolívares o quilo, o que o colocava no campo do inacessível – campo onde já figuravam o frango, a manteiga, o leite, assim como a farinha necessária para a confecção das arepas, pães de milho branco que os venezuelanos adoram.
Há dez anos, em plena campanha presidencial, Chávez apresentava os progressos do sistema de saúde como “uma de [suas] maiores realizações”.2 Nenhum adversário sério teria pensado em contestá-lo. Hoje, faltam medicamentos no país. Não somente aspirina e paracetamol, mas igualmente antirretrovirais e moléculas destinadas às quimioterapias.
Há dez anos, na esteira de dezenas de outros programas sociais, nascia a “missão Negra Hipólita”. Seu objetivo? Ajudar os sem-teto urbanos. Ela foi uma das primeiras vítimas da crise. O espetáculo das pessoas esperando a saída das latas de lixo no final da tarde se tornou familiar, enquanto as ruas de Caracas expõem aos olhares as mil e uma faces dos problemas de saúde das crianças.
Inflação, miséria e corrupção: as forças telúricas que Chávez descrevia quando tomou posse estão de novo em atividade; o vulcão despertou. Para a direita, as coisas são simples: o socialismo sempre fracassa. Na esquerda, onde as pessoas tinham aprendido a ver a Venezuela como um farol na noite neoliberal, a incompreensão disputa com a incredulidade. E uma pergunta se impõe, aquela que já era formulada pelo dirigente bolivariano quando ele delineava o balanço de seus predecessores, em 1999: como explicar que, apesar de “tanta riqueza”, “o resultado seja tão negativo”?
“Por causa da guerra econômica que travam contra nós a oposição e seus aliados”, responde o presidente Nicolás Maduro, eleito em abril de 2013, um mês depois da morte de Chávez. Os empresários tiram proveito da diminuição do preço do petróleo (que caiu para menos de US$ 40 em 2016, depois de ter ultrapassado os US$ 100 entre 2011 e 2014) para organizar a escassez, atiçar as chamas da ira popular e preparar a derrubada do poder chavista. Sob pretexto de informar sobre o assunto, o site Dolartoday,3 com sede em Miami, orquestra a subida do dólar paralelo. Suas ambições políticas se mostram claramente por meio de uma enquete apresentada em sua página de abertura há algumas semanas. “Se a eleição presidencial ocorresse hoje, em quem você votaria?” Entre as respostas possíveis: Henry Ramos Allup, Leopoldo López, Henrique Capriles Radonski, Henry Falcón e Lorenzo Mendoza Giménez, assim como María Corina Machado. Todos membros da oposição.
Não são mais levados em conta os analistas próximos do poder que, apoiando-se no precedente chileno, defendem essa explicação da situação, como se ela fosse realmente contestada no lado dos progressistas. Ora, a questão que divide o chavismo é de outra natureza: a hostilidade daqueles cujos privilégios a revolução bolivariana procura eliminar seria suficiente para explicar o caos atual?
Membro do Partido Socialista Unificado da Venezuela (PSUV), Sergio Sánchez foi excluído dele por ter se recusado a apoiar um candidato indicado ao cargo de governador, apesar de fortes suspeitas de corrupção. O tema da “guerra econômica” lhe evoca uma imagem: “Impulsionada pela renda do petróleo, a Venezuela subiu ao ringue para distribuir os uppercuts na burguesia e no império. Hoje em dia, os anabolizantes desapareceram: o governo está nas cordas. De repente, ele considera anormal que seus adversários prossigam o combate”. Dizendo-se o tempo todo chavista, “mas contrário ao governo”, o militante Gonzalo Gómez coloca as coisas de outra maneira: “Não se faz revolução esperando que o capitalismo não vá reagir”. “Além disso”, prossegue, “é preciso distinguir duas atitudes: a que consiste em criar as condições da crise e a que consiste em se aproveitar dela. Com muita frequência, os patrões se contentam em tirar partido dos problemas de funcionamento da economia.”
Pequenas turbulências se acumulam
Para uma parte da esquerda, o caos atual se explicaria pelo caráter todo-poderoso de um adversário capaz, dezessete anos após sua derrota, de produzir o descarrilamento da economia. Para outra, ele decorreria da traição de líderes cínicos que teriam passado para a direita. Mas podemos igualmente enxergar os processos de transformação social como contraditórios: suas conquistas – consideráveis, no caso venezuelano4 – dão origem por vezes a dificuldades que, por falta de resposta, podem se tornar ameaçadoras. A queda não seria, portanto, inscrita no processo de transformação, mas em sua incapacidade de reagir a cada etapa às consequências de sua ação. É a lição da “teoria das catástrofes”, que Chávez expôs a seu auditório num certo 2 de fevereiro de 1999: “Segundo essa teoria, as catástrofes aparecem de maneira progressiva, quando, num dado sistema, se manifesta uma pequena perturbação que não encontra nenhuma capacidade de regulação, uma pequeníssima perturbação que exigia apenas uma pequeníssima correção. Na ausência da capacidade e da vontade de agir, a primeira perturbação encontra outra, também muito pequena, que não encontra mais resposta. E as pequenas perturbações se acumulam, até que o sistema perca a capacidade de regulá-las. É então que sobrevém a catástrofe”.
Quando Chávez chegou ao poder, o preço do barril de petróleo estava numa baixa histórica, próximo dos US$ 10: um desastre que para ser explicado requer mergulhar na história do país. No início do século XX, a nação caribenha figurava entre os maiores produtores de café e cacau. Depois, ela descobriu imensas reservas do ouro negro… Em apenas dez anos, de 1920 a 1930, o setor petrolífero passou de 2,5% do PIB a cerca de 40%, com a agricultura despencando de 39% para 12,2%.5 Quando a crise dos anos 1930 provocou a queda da cotação do café, a maior parte dos países da região desvalorizou sua moeda para manter a competitividade das exportações e lançar um processo de industrialização baseado na produção local de bens antes importados (“substituição de importações”). A Venezuela avançou em sentido inverso: dispondo de significativas quantidades de divisas graças à renda do petróleo, ela cedeu à pressão do lobby comercial que organizou a importação de tudo aquilo que o país consome.
Chávez descobre um poder espetacular
O raciocínio desses donos de mercearia vestidos de terno? Quanto mais forte for a moeda local, mais os venezuelanos poderão consumir, e eles poderão enriquecer. Entre 1929 e 1938, em plena crise internacional, Caracas elevou o valor do bolívar em 64%. A operação trancou as portas do comércio internacional ao setor agrícola; além disso, ela barrou igualmente o acesso dos produtores rurais às lojas nacionais, inundadas de produtos baratos. Apesar das promessas constantes de sair do modelo rentista desde então, o desequilíbrio econômico foi crescendo pouco a pouco, e, quando Chávez tomou as rédeas do país, 85,8% do valor das exportações provinha do petróleo.6
Com um preço do petróleo lá embaixo em 1999, a economia venezuelana parecia um jumbo puxado por um motor de teco-teco: ela avançava com muita dificuldade. O novo presidente colocou a diversificação da economia na primeira fila de suas prioridades, mas considerou que isso tomaria tempo. Ora, a paciência não é uma característica de uma população febril, cujas esperanças foram estimuladas pela campanha eleitoral. A solução passaria por uma reativação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), cujas cotas nenhum dos países respeitava mais. A operação deu resultado: os preços começaram a subir novamente. Mas ela criou uma primeira perturbação: a urgência de se libertar dos tormentos da escassez se apagou diante da tentação de usufruir a abundância.
“Os primeiros anos foram muito difíceis”, lembra Víctor Álvarez, ex-ministro da Indústria de Base e do Setor Minerador (2005-2006). “A imprensa apresentava Chávez como um palhaço. E a oposição não escolheu a via da contestação democrática.” Em 2002, ela organizou um golpe de Estado com a ajuda dos grandes meios de comunicação e de Washington. “Pior”, prossegue Álvarez, “em 10 de dezembro de 2002, no exato dia em que íamos lançar um programa destinado a reforçar a indústria nacional redirecionando para ela os contratos públicos, os patrões organizaram um locaute!” A greve do setor privado e dos altos dirigentes do setor petroleiro (nacionalizado) durou dois meses e diminuiu o PIB em cerca de 10%.7 “Nosso projeto foi colocado numa gaveta, de onde nunca mais saiu.”
Os preços do petróleo continuaram a subir, chegando a cerca de US$ 30 o barril em 2003. O governo bolivariano dispôs dos recursos que lhe permitiram colocar em prática os programas sociais que consolidariam sua fama nos meios populares. Incapaz de tirar Chávez do poder, a oligarquia venezuelana decidiu contrabandear seu dinheiro. A fuga de capitais atingiu montantes alarmantes: mais de US$ 28 bilhões entre 1999 e 2002, ou seja, cerca de 30% do conjunto da riqueza produzida em 2002.8 Nesse nível, não se fala mais de punção, mas de sangria.
Enquanto as reservas de divisas desabavam, o poder bolivariano tomava a única medida possível: em fevereiro de 2003, criou um controle do câmbio e fixou a paridade entre a moeda nacional e o dólar (o controle anterior do câmbio tinha sido interrompido em 1996). A partir desse momento, o Estado se reservou o direito de fornecer ou não os dólares que esta ou aquela empresa requisitavam para importar. “Chávez descobriu que dispunha de um poder extraordinário”, comenta Álvarez. “A renda não somente permitia satisfazer as necessidades da população, como oferecia a possibilidade de punir aqueles que tinham conspirado contra o poder recusando-lhes as divisas.” Privadas de dólares, muitas empresas fechavam, a menos que seu proprietário pedisse perdão. “Porque a renda garantia enfim a lealdade dos empresários oportunistas.” A espécie não é rara.
“A política do bolívar forte constituiu uma subvenção ao conjunto da economia”, acrescenta o sociólogo Edgardo Lander. “A renda financiava o consumo, aí incluídos carros de luxo e passagens de avião.” Entre 2004 e 2008, a Venezuela conheceu um período de abundância. O PIB per capita beirava seu nível de 1977, o apogeu de um período conhecido como o “Dame dos!” (“É barato, vou levar dois!”). Outrora considerada uma armadilha da qual era preciso se emancipar, a renda encontrou seu papel tradicional de viga mestra do modelo econômico venezuelano. Nova perturbação, sem correção…
O controle do câmbio não iria mais desaparecer. Concebido como uma medida temporária para lutar contra a fuga dos capitais, “ele se tornou seu principal motor”, explica Temir Porras, ex-chefe de gabinete de Maduro. “País extremamente dependente das importações, a Venezuela exibe uma inflação estrutural de cerca de 15% a 20%. Mas o mesmo não acontece com o dólar. Fixar uma paridade com a moeda norte-americana implica, portanto, supervalorizar sua moeda. Não se conhece receita melhor para destruir a produção nacional. Não somente se torna mais custoso produzir localmente que importar como o país redescobre um negócio particularmente rentável: a importação superfaturada.”
A operação é simples. Imaginemos um importador que dispõe de uma rede que lhe permite comprar garrafas de água a 10 centavos a peça. Ele consegue do Estado dólares para comprar 1 milhão de garrafas, das quais declara pagar 20 centavos a peça por meio de uma empresa que ele criou previamente fora do país. Resultado: o empresário dispõe de US$ 100 mil que ele pode escoar no mercado negro local. “A cambalhota é por vezes realizada antes mesmo da distribuição do produto”, prossegue Porras. “De forma que alguns importadores abandonam os produtos nos hangares, vendendo apenas a quantidade necessária para comprar novos dólares.” Entre 2002 e 2012, o valor das importações quintuplicou, passando de cerca de US$ 10 bilhões para US$ 50 bilhões, um crescimento bem mais rápido que o de seu volume. Lucrativo, o setor da importação atrai muita gente: aqueles que logo seriam chamados de “boliburgueses” e que o poder apresenta como “patrões socialistas”, mas também militares, altos funcionários e bandidos.
Taxas de lucro de 18.000%
Durante esse tempo, a redução da pobreza – uma das grandes realizações da revolução bolivariana – permitiu à população consumir mais. Num contexto em que o poder pouco contesta o setor privado no que se refere ao domínio deste último sobre as importações, o maná petrolífero que ele derrama sobre a população para “saldar a dívida social” flui para os bolsos dos empresários. Assim, apesar das conquistas sociais e geopolíticas, a Venezuela reencontrou pouco a pouco sua função primeira na divisão internacional do trabalho: a de país exportador não somente de petróleo, mas também de divisas. Segundo os cálculos da publicação trimestral Macromet, a fuga de capitais (aí incluído o superfaturamento das importações) teria atingido US$ 170 bilhões entre 2004 e 2012,9 ou seja, praticamente 160% do PIB do ano de 2004. Uma cifra atordoante.
Quando a crise financeira internacional orientou a cotação do petróleo para baixo, em 2008, a renda não foi mais suficiente para cobrir a fatura das importações. O país teve de se endividar para cobrir seus custos. Ele tentou limitar as despesas, sobretudo introduzindo uma dupla taxa de câmbio: uma primeira, preferencial, para as importações consideradas estratégicas; outra, mais elevada, para o resto. A ideia não era ruim, mas sua colocação em prática teria lucrado se fosse precedida de uma análise das “perturbações” que ela havia originado no passado. Dispositivos similares tinham sido instaurados nos anos 1980 e depois 1990, nas duas vezes com a mesma consequência: impulsionar a corrupção. Senão, vejamos: em 2016, a Venezuela exibe uma taxa de câmbio preferencial de 10 bolívares por dólar, e outra de 657. Obter um acesso (legal ou não) ao maná do dólar preferencial para alimentar o mercado corrente assegura uma taxa de lucro estratosférica de 6.500%. Se esses dólares forem vendidos no mercado paralelo, a taxa de lucro chega a… 18.000%. Muitas vocações para bandido surgem com cifras bem menos elevadas.
A direita quer o povo de joelhos
Ora, a Venezuela mantém uma relação particular com a corrupção. Aqui, a acumulação capitalista não se baseia na produção de riqueza, mas na capacidade de assaltar os recursos que o Estado administra. Redistribuição, clientelismo, nepotismo, favoritismo, troca de favores ou simples ilegalidade, as fronteiras entre as formas de captação dos dólares do petróleo se mostram de tal forma tênues que muitos as transpõem várias vezes por dia.
“Em 2012, Chávez por fim tomou consciência do problema econômico, sobretudo aquele ligado à taxa de câmbio”, nos conta Porras, que se dedicou a esclarecer a questão. “Tínhamos conseguido convencê-lo a agir. E… ele caiu doente.” A instabilidade política provocou uma súbita decolagem do dólar e da inflação, enquanto os preços do petróleo recomeçaram a afundar no final de 2014. O país redescobriu a escassez de produtos, ligada à atrofia de uma produção local sufocada pela supervalorização do bolívar e à queda das importações, estranguladas pela falta de divisas. “Ora”, observa Álvarez, “a escassez oferece o cadinho cultural ideal para a especulação e o mercado negro.”
“Deteriorado, o edifício se manteve graças a duas vigas mestras”, resume Lander: “Chávez e a renda vinda do petróleo.” Com o anúncio oficial do falecimento do primeiro, constatou-se a morte clínica do segundo. O modelo socioeconômico chavista desmoronou de maneira tão rápida que mais ninguém, nem mesmo o novo presidente, Maduro, estava em condições de operar a menor modificação de rumo: a coesão precária do campo chavista apoiava-se apenas na resolução comum em defender a herança do comandante, o melhor meio de preservar os equilíbrios internos – e as mamatas. Era urgente mudar de estratégia; mas cada um se empenhou em manter o rumo, mesmo que isso significasse colocar em perigo certas conquistas do período glorioso do chavismo.
Apesar de suas denúncias recorrentes dos malfeitos da oligarquia importadora, o governo preservou a tranquilidade dela. Não lhe faltou criatividade, em contrapartida, para imaginar artimanhas táticas “que acabaram por jogar lenha na fogueira da especulação”, como explica Álvarez. Em 2011, o governo fez passar uma lei orgânica de “preços justos”, para tentar impor um teto aos preços de produtos básicos. “Mas eles eram com frequência inferiores aos custos de produção: as pessoas pararam de produzir.” O governo subvencionou, por outro lado, certas importações, que colocou à disposição de comunidades organizadas por meio das Comissões Locais de Abastecimento e de Produção (Clap). Em 11 de novembro de 2016, no bairro de Pastora, em Caracas, era possível conseguir uma boa cesta de alimentos (4 quilos de farinha de milho, 2 quilos de arroz, dois pacotes de macarrão, dois potes de manteiga, 1 litro de óleo, um sachê de leite em pó e 1 quilo de açúcar) por 2.660 bolívares. Um preço tão baixo oferece a perspectiva de ganhos significativos no mercado negro… no qual acaba, portanto, uma parte dos produtos.
No plano econômico, a queda do poder aquisitivo é tal que o ajustamento estrutural de alguma forma já aconteceu. Tornado mais aceitável pela retórica da “guerra econômica”, ele atinge em particular os que se veem como membros da classe média: estes não se beneficiam dos programas sociais e não têm tempo para ficar horas na fila dos supermercados. Eles se encontram então mergulhados nas “águas glaciais” do mercado negro, o que acaba por agudizar sua ira contra os mais pobres: aqueles que se beneficiariam do sistema, com os quais o Estado se mostraria “mais generoso”…
O que aconteceu com outra grande conquista chavista, o aprofundamento da democracia? Militante do movimento social “desde sempre”, Andrés Antillano considera que esta “não é somente uma bandeira de Chávez. Ela tem sido sempre um meio de mobilizar, de politizar a população”. “Nunca acreditei realmente nas virtudes das eleições”, confessa. “Mas aqui elas se tornaram um instrumento subversivo, uma força revolucionária.” Isso aconteceu mesmo? Em 2016, a oposição conseguiu superar suas (muitas) divisões para exigir a organização de um referendo revogatório, permitido pela Constituição de 1999. Ainda que tenha se tornado culpada de numerosas fraudes, ela conseguiu recolher um número suficiente de assinaturas válidas para lançar o processo e obter o sinal verde do Conselho Nacional Eleitoral (CNE). Mas, depois, governo e Poder Judiciário – este último caracterizado por uma propensão a se aliar ao Executivo – espalharam obstáculos pelo percurso, por vezes quase beirando o ridículo. Uma ameaça pouco velada: em 4 de maio de 2016, Diosdado Cabello, uma das principais figuras do chavismo, estimava que “os funcionários encarregados das instituições públicas que se pronunciavam a favor do referendo revogatório não deveriam conservar seus postos”. Ao fazer isso, “Maduro não apenas privava a oposição de referendo”, observa Antillano, “mas também nos tirava, a nós da esquerda, um dos instrumentos básicos do chavismo: a democracia”.
“O referendo é uma luta da direita, não minha”, retruca Atenea Jimenez Lemon, da Rede de Comuneros, uma poderosa organização que reúne mais de quinhentas comunas pelo país. Essas estruturas que estabelecem uma malha pelo território nacional (sobretudo o campo) constituíram a ponta de lança do “novo Estado socialista”, com base na participação que Chávez imaginava. “Sei que de vários pontos de vista se pode descrever o governo como contrarrevolucionário. Mas para mim a esquerda crítica que apela ao referendo faz o jogo da direita. Porque, se a oposição vencer, o que se vai fazer? Será que as pessoas não percebem o que eles estão armando para nós?”
Privatizações em massa, recuo do Estado, austeridade violenta: aqui ninguém tem ilusões sobre o programa dos partidos de oposição. Além disso, raros são aqueles que desejam vê-los chegar ao poder. Apesar dos esforços de alguns de seus representantes para colorir seus discursos com um caráter social, o principal objetivo da direita consiste “em colocar o povo de joelhos para nos dar uma boa lição”, analisa Betsy Flores. Uma espécie de contrarrevolução dentro da contrarrevolução.
Altos funcionários reticentes
“Nem tudo está escrito”, completa Atenea Jimenez Lemon. “As comunas oferecem um meio de aprofundar a democracia, desburocratizar o Estado e desenvolver a produção.” Advogando em causa própria? Não. À esquerda, ninguém imagina uma saída positiva da crise atual sem reforçar esse dispositivo, criado por Chávez no final de sua vida. Senão, vejamos: o ex-presidente “era como um revolucionário dentro de seu próprio governo”, explica o ex-ministro Oly Millán Campos. “Ele podia tomar decisões que iam de encontro aos interesses do aparelho de Estado. Sem ele, as comunas se defrontam com a resistência dos altos funcionários: por que eles reforçariam estruturas imaginadas com o objetivo de enfraquecê-los e depois substituí-los?”
Em 2004, Chávez tinha decidido organizar o referendo revogatório que a oposição exigia, apesar das fraudes comprovadas. Fazer isso hoje imporia ao chavismo uma cura da oposição? Não necessariamente. Uma derrota em um referendo organizado em 2016 teria conduzido a novas eleições. Em outras palavras, teria oferecido à esquerda venezuelana aquilo de que ela parece ter mais necessidade: um período de autocrítica que permita sair dos raciocínios táticos para pensar de novo em termos estratégicos. Esse período talvez tivesse permitido ao chavismo crítico fazer ouvir sua voz.
Ainda assim seria necessário que o povo lhe quisesse dar ouvidos. No final de 2015, a organização chavista Marea Socialista quis fazer sua inscrição no registro dos partidos políticos do país. O resultado foi uma declaração de inadmissibilidade por parte do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), que considerou, sem rir, que o nome da agremiação “não tinha cara” de partido político. Por seu lado, um procurador julgou que ela não podia dizer que era socialista… já que criticava o governo. “O governo conversa atualmente com a oposição, com o Vaticano e com a embaixada norte-americana, mas conosco, a esquerda crítica, ele se recusa a dialogar”, diz rindo um militante da Marea Socialista.
Guerra intestina que alegra a direita
Nas fileiras do chavismo, a batalha se inflama num estrondo ainda mais estéril pelo fato de não mais existir um local de discussão estruturado. De um lado, os partidários do poder se mostram cada vez mais discretos. De outro, uma corrente ancorada na população critica os líderes atuais, mas considera que a luta não pode acontecer fora do PSUV sob pena de devolver o poder à direita. Enfim, uma última corrente, desprovida de uma base social verdadeira, reúne vários ex-ministros, muito ativos nas redes sociais. Tal como Gómez, eles estimam que a atual burocracia “constitui uma nova burguesia, tão voraz quanto a anterior e atualmente concorrendo com ela”.
Essa guerra intestina alegra a direita, que quer destruir a esperança que Chávez fez nascer. Ela encanta igualmente os novos oligarcas de camisa vermelha, os quais sonham transformar a luta de classes que os levou ao poder em vulgar luta de facções. Se eles conseguissem ganhar, as inumeráveis perturbações às quais o chavismo não soube responder teriam seguramente gerado a catástrofe.
1 Cerca de R$ 138, tendo como base a taxa de câmbio oficial. Cerca de três vezes menos numa economia cujos preços seguem a evolução do dólar paralelo.
2 “Chavez touts health care ahead of vote” [Chávez tenta vender assistência médica antes do voto], The Washington Post, 24 nov. 2006.
3 https://dolartoday.com
4 Ler “Ce que Chávez a rappelé à la gauche” [O que Chávez lembrou à esquerda], Le Monde Diplomatique, abr. 2013.
5 Cifras extraídas de Steve Ellner (org.), Latin America’s Radical Left. Challenges and Complexities of Political Power in the Twenty-First Century [A esquerda radical da América Latina. Mudanças e complexidades do poder político no século XX], Rowman & Littlefield, Lanham, 2014.
6 Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepalc), 2008.
7 Ler Maurice Lemoine, “L’opposition vénézuélienne joue son va-tout” [A oposição venezuelana vai para o tudo ou nada”, Le Monde Diplomatique, abr. 2004.
8 Daniela García, “Fuga de capitales: Sello revolucionario” [Fuga de capitais: selo revolucionário], La Verdad, Maracaibo, 1º jul. 2013.
9 Miguel Ángel Santos, “Venezuela: de la represión financiera a la posibilidad de default” [Venezuela: da repressão financeira à possibilidade de não pagamento], Macromet, Caracas, v.1, n.3, nov. 2014.
* Publicado na revista francesa Le Monde Diplomatique.
* Publicado na revista francesa Le Monde Diplomatique.
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