Por Saul Leblon, no site Carta Maior:
Apartados do fundamento das urnas, os golpes de Estado são reféns de uma natureza intrinsecamente canibal.
A mediação dos conflitos se dá pela espiral dos golpes dentro do golpe.
Não é uma surpresa histórica que o assalto ao poder consumado em agosto de 2016 acumule sinais desse encontro marcado com a própria sina.
Contradições insolúveis ameaçam romper a fina película da formalidade que orientou a ação inconstitucional desde a farsa do impeachment até aqui.
A violência do desmonte econômico a serviço do qual uma escória política e parlamentar foi alçada à capatazia do Estado brasileiro corrói rapidamente os laços da aventura com a sua própria base.
O fracasso das manifestações em apoio à Lava Jato, domingo, é um sintoma desse esfarelamento.
Nem mesmo a classe média que se avoca parte da elite dirigente encontra-se a salvo da demolição em marcha do Estado e das bases do desenvolvimento.
Em pior hora ela se percebe parte de uma nação.
A reforma da previdência expulsou-a da zona de conforto para um degrau de incerteza futura no qual se nivela aos segmentos dos quais sempre teve a obsessão de se descolar.
O desmonte dos instrumentos de comando da economia por Brasília e Curitiba devora o chão dos pés humildes, mas também o piso das varandas gourmets.
Desde 2014, 50 mil engenheiros perderam emprego no Brasil. Assim sucessivamente.
O relógio da crise avança em rota de colisão com o das urnas de 2018, que tem como favorito Luiz Inácio Lula da Silva.
Compreende-se a sofreguidão nervosa dos cronistas embarcados para trazer notícias frescas de uma recuperação econômica sempre adiada.
À falta dela, o cinismo cunhou o termo ‘despiora’.
É sintomático: enquanto a vida real acumula 13 milhões de desempregados e a taxa de ociosidade em alguns setores industriais chega a 50%, como nas fábricas de caminhões pesados, cronistas falam de um ‘fim de ano inédito, com inflação na meta e juro de um dígito’.
Enaltecem a paz salazarista que reina no cemitério das nações.
Essa que já destruiu a engenharia pesada brasileira, desmontou o setor naval, o de óleo e gás, entregou o pré-sal, descarnou a Petrobrás, implodiu a CLT, devolveu as relações trabalhistas a uma arena selvagem pré-Vargas e congelou direitos sociais por vinte anos.
A ação é de tal ordem irresponsável que mesmo retalhando o orçamento a conta não fecha, sob impacto do efeito contracionista na receita fiscal.
A queda da arrecadação empurrou o neoliberalismo aloprado a um cavalo de pau nos seus próprios termos.
Em meio à pior recessão em um século, recorre-se à elevação de impostos como recurso desesperado para conter o déficit na faixa de explosivos R$ 140 bilhões até dezembro.
Que chances teria nas urnas o candidato desse furdunço estratégico que golpeou a democracia em nome do mercado e agora ameaça enterrar os dois na mesma cova recessiva?
À falta de nomes, recorre-se ao recurso clássico: um golpe dentro do golpe.
O roteiro está nas entrelinhas do jornalismo embarcado.
Descarta-se Temer; consumada a vacância presidencial abre-se avenida da eleição indireta para a qual qualquer excrescência serve à sanção de uma escória parlamentar amarrotada no bote de salva-vidas.
A opção mais oferecida é a do incansável ‘garante’ da ‘legitimidade’ em todas as frentes antissociais, antinacionais e antidemocráticas: Gilmar Mendes.
Respira-se esse cheiro azedo de togas e ternos empapados da sofreguidão nervosa que marca as escaladas de demolição do Estado de Direito nos solavancos da História.
Consulte os anos 30 na Alemanha, os 50 do macarthismo norte-americano, os 60 da ditadura brasileira, os 70 do massacre chileno...
Era esse o clima de dane-se o pudor por parte das elites e da escória que a serve.
Faz parte desses crepúsculos institucionais a perda dos bons modos e a convocação das soluções de exceção, enquanto o jornalismo isento finge não ver a curva ascendente do arbítrio.
Com a mesma desenvoltura com que se anistiou montanhas de dólares remetidos ao exterior, o ‘candidato’ Gilmar Mendes pilota sua quase-campanha impulsionado por duas bandeiras.
Bandeira 1: a anistia ao ‘caixa 2 do bem’ (o dos amigos);
Bandeira 2: a anulação de delações vazadas, que ora prejudicam círculos tucanos e assemelhados.
Quando a caixa d’água furada de Curitiba vazou velhacamente a gravação ilícita da conversa telefônica entre Lula e Dilma, a toga-mor reagiu diferente.
Achou ‘normal’.
Mais que normal: Gilmar recomendou ‘foco no conteúdo’. E a mídia foi para apoteose unida, com os desdobramentos sabidos.
É um padrão; que ora se repete.
Dá para ouvir os gritos da democracia sendo violada na sala ao lado, enquanto os jornalistas irradiam notícias da ‘despiora’ que, sugestivamente, requer um impostaço de emergência.
A falta de escrúpulos reflete a antessala de uma truculência que sobe rápido os degraus da exceção; do golpe dentro do golpe.
Essa é a hora diante da qual a resistência progressista não pode mais piscar.
O óbvio hoje começa por defender Lula -- presencialmente até e cada vez mais, diante do cerco do arbítrio que se intensifica.
Por quê?
Porque sem defender Lula não será possível defender mais ninguém, e mais nada, do galope desembestado da ganância rentista montada na cumplicidade togada.
Por ninguém, entenda-se o Brasil assalariado e o dos mais humildes.
A imensa maioria da população, enfim.
Aquela que vive do trabalho, depende de serviços públicos, tem seu destino atado ao do país, ao do pré-sal, ao da reindustrialização, ao da democracia social, carece de cidadania, respira pelo salário mínimo e enxerga na CLT e na Previdência os únicos anteparos ao infortúnio no presente e no futuro.
Lula é a espinha histórica das costelas que precisam se unir para conter a des-emancipação social fria e calculista em marcha no país.
Desempenha essa função por uma razão muito forte.
Essa que o milenarismo gauche parece ter esquecido --ou hesita em saber que sabe-- enquanto aguarda o juízo final de Moro para recomeçar do zero.
‘Recomeçar do zero’ é a profilaxia recomendada pelos sábios do golpe em todas as frentes.
‘Sim, vamos esquecer o passado’.
Mas, principalmente: vamos esquecer Lula.
Porque ele é –ainda é Lula-- a inestimável referência de justiça social a qual a imensa parcela dos brasileiros de hoje e de ontem se reconhecem.
É dele a voz rouca que quando fala é ouvida no campo e nas cidades.
Mais que simplesmente ouvida: respeitada e compreendida numa algaravia de credibilidades arrasadas.
A resiliência dessa voz é que ela não carrega só palavras.
Carrega experiência, luta, erros, acertos, raiva, riso, derrotas, vitórias, cujo saldo são conquistas coletivas encarnadas em holerite, comida, casa, universidade, emprego, autoestima e esperança.
Lula é a espinha dorsal de cuja destruição depende o êxito do torniquete de interesses mobilizados contra a construção de uma democracia social na oitava maior economia do mundo, principal referência da luta apelo desenvolvimento no Ocidente.
FHC disse-o em um debate no jornal O Globo, em outubro do ano passado, dois meses depois do golpe, quando a guilhotina no pescoço de Lula parecia iminente:
‘Sem Lula o PT seria apenas um partido médio; com ele torna-se um perigo nacional’.
No fundo, queria dizer:
‘Sem Lula, o Brasil se torna uma nação média, humilde, bem-comportada --por assim dizer, domesticável’.
Com Lula, o Brasil se transforma em uma possibilidade de soberania com capacidade de aglutinação popular e mundial em torno do desenvolvimento para a justiça social –uma mistura de consequências perigosas...
É claro como água de fonte.
Lula representa esse diferencial inestimável.
Ele fala com quem a Globo gostaria de falar sozinha.
Com o Brasil que os Marinhos gostariam de monopolizar sem dissonâncias.
E quase conseguem –exceto quando a voz rouca atravessa o monólogo do fatalismpo conservador.
Por isso o milenarismo gauche que reage à ofensiva de Moro aceitando a pauta do juízo final , flerta com a eutanásia.
‘Recomeçar do zero’ é tudo o que o conservadorismo mais cobiça para quebrar o coração da resistência ao golpe.
O coração da resistência ao golpe consiste em não aceitar o fuzilamento sumário do legado de doze anos de luta por um desenvolvimento mais justo e independente.
Ademais dos erros e equívocos cometidos –que não podem ser subestimados e devem ser discutidos para que não se repitam-- os acertos mostraram a viabilidade de se construir uma democracia social no Brasil do século XXI.
Isso não é pouco.
Aliás, é tanto que a força dessa possibilidade no imaginário nacional levou o capital local e imperial a considerar que era hora de acionar um justiceiro de Curitiba para faxinar a história de sua ‘nódoa inaceitável’.
Lula.
Por essa mesma razão, com objetivo inverso, dia 3 de maio será preciso defender essa possibilidade histórica, presencialmente até.
Nesse dia Moro vai interrogar Lula. As possibilidades de um Gilmar dentro do golpe vão depender muito do que acontecerá nesse dia em Curitiba.
Quem vai organizar as caravanas?
Apartados do fundamento das urnas, os golpes de Estado são reféns de uma natureza intrinsecamente canibal.
A mediação dos conflitos se dá pela espiral dos golpes dentro do golpe.
Não é uma surpresa histórica que o assalto ao poder consumado em agosto de 2016 acumule sinais desse encontro marcado com a própria sina.
Contradições insolúveis ameaçam romper a fina película da formalidade que orientou a ação inconstitucional desde a farsa do impeachment até aqui.
A violência do desmonte econômico a serviço do qual uma escória política e parlamentar foi alçada à capatazia do Estado brasileiro corrói rapidamente os laços da aventura com a sua própria base.
O fracasso das manifestações em apoio à Lava Jato, domingo, é um sintoma desse esfarelamento.
Nem mesmo a classe média que se avoca parte da elite dirigente encontra-se a salvo da demolição em marcha do Estado e das bases do desenvolvimento.
Em pior hora ela se percebe parte de uma nação.
A reforma da previdência expulsou-a da zona de conforto para um degrau de incerteza futura no qual se nivela aos segmentos dos quais sempre teve a obsessão de se descolar.
O desmonte dos instrumentos de comando da economia por Brasília e Curitiba devora o chão dos pés humildes, mas também o piso das varandas gourmets.
Desde 2014, 50 mil engenheiros perderam emprego no Brasil. Assim sucessivamente.
O relógio da crise avança em rota de colisão com o das urnas de 2018, que tem como favorito Luiz Inácio Lula da Silva.
Compreende-se a sofreguidão nervosa dos cronistas embarcados para trazer notícias frescas de uma recuperação econômica sempre adiada.
À falta dela, o cinismo cunhou o termo ‘despiora’.
É sintomático: enquanto a vida real acumula 13 milhões de desempregados e a taxa de ociosidade em alguns setores industriais chega a 50%, como nas fábricas de caminhões pesados, cronistas falam de um ‘fim de ano inédito, com inflação na meta e juro de um dígito’.
Enaltecem a paz salazarista que reina no cemitério das nações.
Essa que já destruiu a engenharia pesada brasileira, desmontou o setor naval, o de óleo e gás, entregou o pré-sal, descarnou a Petrobrás, implodiu a CLT, devolveu as relações trabalhistas a uma arena selvagem pré-Vargas e congelou direitos sociais por vinte anos.
A ação é de tal ordem irresponsável que mesmo retalhando o orçamento a conta não fecha, sob impacto do efeito contracionista na receita fiscal.
A queda da arrecadação empurrou o neoliberalismo aloprado a um cavalo de pau nos seus próprios termos.
Em meio à pior recessão em um século, recorre-se à elevação de impostos como recurso desesperado para conter o déficit na faixa de explosivos R$ 140 bilhões até dezembro.
Que chances teria nas urnas o candidato desse furdunço estratégico que golpeou a democracia em nome do mercado e agora ameaça enterrar os dois na mesma cova recessiva?
À falta de nomes, recorre-se ao recurso clássico: um golpe dentro do golpe.
O roteiro está nas entrelinhas do jornalismo embarcado.
Descarta-se Temer; consumada a vacância presidencial abre-se avenida da eleição indireta para a qual qualquer excrescência serve à sanção de uma escória parlamentar amarrotada no bote de salva-vidas.
A opção mais oferecida é a do incansável ‘garante’ da ‘legitimidade’ em todas as frentes antissociais, antinacionais e antidemocráticas: Gilmar Mendes.
Respira-se esse cheiro azedo de togas e ternos empapados da sofreguidão nervosa que marca as escaladas de demolição do Estado de Direito nos solavancos da História.
Consulte os anos 30 na Alemanha, os 50 do macarthismo norte-americano, os 60 da ditadura brasileira, os 70 do massacre chileno...
Era esse o clima de dane-se o pudor por parte das elites e da escória que a serve.
Faz parte desses crepúsculos institucionais a perda dos bons modos e a convocação das soluções de exceção, enquanto o jornalismo isento finge não ver a curva ascendente do arbítrio.
Com a mesma desenvoltura com que se anistiou montanhas de dólares remetidos ao exterior, o ‘candidato’ Gilmar Mendes pilota sua quase-campanha impulsionado por duas bandeiras.
Bandeira 1: a anistia ao ‘caixa 2 do bem’ (o dos amigos);
Bandeira 2: a anulação de delações vazadas, que ora prejudicam círculos tucanos e assemelhados.
Quando a caixa d’água furada de Curitiba vazou velhacamente a gravação ilícita da conversa telefônica entre Lula e Dilma, a toga-mor reagiu diferente.
Achou ‘normal’.
Mais que normal: Gilmar recomendou ‘foco no conteúdo’. E a mídia foi para apoteose unida, com os desdobramentos sabidos.
É um padrão; que ora se repete.
Dá para ouvir os gritos da democracia sendo violada na sala ao lado, enquanto os jornalistas irradiam notícias da ‘despiora’ que, sugestivamente, requer um impostaço de emergência.
A falta de escrúpulos reflete a antessala de uma truculência que sobe rápido os degraus da exceção; do golpe dentro do golpe.
Essa é a hora diante da qual a resistência progressista não pode mais piscar.
O óbvio hoje começa por defender Lula -- presencialmente até e cada vez mais, diante do cerco do arbítrio que se intensifica.
Por quê?
Porque sem defender Lula não será possível defender mais ninguém, e mais nada, do galope desembestado da ganância rentista montada na cumplicidade togada.
Por ninguém, entenda-se o Brasil assalariado e o dos mais humildes.
A imensa maioria da população, enfim.
Aquela que vive do trabalho, depende de serviços públicos, tem seu destino atado ao do país, ao do pré-sal, ao da reindustrialização, ao da democracia social, carece de cidadania, respira pelo salário mínimo e enxerga na CLT e na Previdência os únicos anteparos ao infortúnio no presente e no futuro.
Lula é a espinha histórica das costelas que precisam se unir para conter a des-emancipação social fria e calculista em marcha no país.
Desempenha essa função por uma razão muito forte.
Essa que o milenarismo gauche parece ter esquecido --ou hesita em saber que sabe-- enquanto aguarda o juízo final de Moro para recomeçar do zero.
‘Recomeçar do zero’ é a profilaxia recomendada pelos sábios do golpe em todas as frentes.
‘Sim, vamos esquecer o passado’.
Mas, principalmente: vamos esquecer Lula.
Porque ele é –ainda é Lula-- a inestimável referência de justiça social a qual a imensa parcela dos brasileiros de hoje e de ontem se reconhecem.
É dele a voz rouca que quando fala é ouvida no campo e nas cidades.
Mais que simplesmente ouvida: respeitada e compreendida numa algaravia de credibilidades arrasadas.
A resiliência dessa voz é que ela não carrega só palavras.
Carrega experiência, luta, erros, acertos, raiva, riso, derrotas, vitórias, cujo saldo são conquistas coletivas encarnadas em holerite, comida, casa, universidade, emprego, autoestima e esperança.
Lula é a espinha dorsal de cuja destruição depende o êxito do torniquete de interesses mobilizados contra a construção de uma democracia social na oitava maior economia do mundo, principal referência da luta apelo desenvolvimento no Ocidente.
FHC disse-o em um debate no jornal O Globo, em outubro do ano passado, dois meses depois do golpe, quando a guilhotina no pescoço de Lula parecia iminente:
‘Sem Lula o PT seria apenas um partido médio; com ele torna-se um perigo nacional’.
No fundo, queria dizer:
‘Sem Lula, o Brasil se torna uma nação média, humilde, bem-comportada --por assim dizer, domesticável’.
Com Lula, o Brasil se transforma em uma possibilidade de soberania com capacidade de aglutinação popular e mundial em torno do desenvolvimento para a justiça social –uma mistura de consequências perigosas...
É claro como água de fonte.
Lula representa esse diferencial inestimável.
Ele fala com quem a Globo gostaria de falar sozinha.
Com o Brasil que os Marinhos gostariam de monopolizar sem dissonâncias.
E quase conseguem –exceto quando a voz rouca atravessa o monólogo do fatalismpo conservador.
Por isso o milenarismo gauche que reage à ofensiva de Moro aceitando a pauta do juízo final , flerta com a eutanásia.
‘Recomeçar do zero’ é tudo o que o conservadorismo mais cobiça para quebrar o coração da resistência ao golpe.
O coração da resistência ao golpe consiste em não aceitar o fuzilamento sumário do legado de doze anos de luta por um desenvolvimento mais justo e independente.
Ademais dos erros e equívocos cometidos –que não podem ser subestimados e devem ser discutidos para que não se repitam-- os acertos mostraram a viabilidade de se construir uma democracia social no Brasil do século XXI.
Isso não é pouco.
Aliás, é tanto que a força dessa possibilidade no imaginário nacional levou o capital local e imperial a considerar que era hora de acionar um justiceiro de Curitiba para faxinar a história de sua ‘nódoa inaceitável’.
Lula.
Por essa mesma razão, com objetivo inverso, dia 3 de maio será preciso defender essa possibilidade histórica, presencialmente até.
Nesse dia Moro vai interrogar Lula. As possibilidades de um Gilmar dentro do golpe vão depender muito do que acontecerá nesse dia em Curitiba.
Quem vai organizar as caravanas?
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