Foto: Lula Marques/Agência PT |
A temporada 2 da série Billions, da Netflix, está muito interessante. Um dos protagonistas, o procurador Charles “Chuck” Rhoades, interpretado pelo brilhante Paul Giamatti, é um implacável, incorruptível e ambicioso procurador do Ministério Público de Nova York.
A função de procurador, nos EUA, é a antessala da carreira política. Chega-se a procurador através de indicação política, feita diretamente pelo presidente da república, como é o caso de Rhoades, ou pelo voto popular. Exemplo deste último, para ficarmos na ficção, é Peter Florrick, personagem de outra série americana, a The Good Wife. Depois de ser preso, acusado de corrupção, e, em seguida, absolvido, Peter concorre para governador e vence.
Voltando à série Billions e ao procurador Chuck Rhoades, a temporada 2 oferece um exemplo clássico da brutal discricionaridade do Ministério Público, seja nos EUA seja no Brasil. Discricionaridade, para quem esqueceu o que significa, é o poder de uma autoridade, no caso um procurador, de escolher o seu alvo.
A discricionaridade no Brasil é muito pior, porém, que a experimentada nos EUA, porque o procurador brasileiro não pode ser demitido, e não passa pelo crivo de eleições populares. Não há filtro democrático no Ministério Público brasileiro, nem do governo, que é eleito, nem da população, que não pode avaliar seu trabalho.
Ameaçado de demissão pelo governo, após perder algumas batalhas travadas contra o bilionário Axe Axelrod, interpretado por Damian Lewis, Rhoades consegue uma sobrevida política iniciando uma cruzada contra um empresário amigo do governo. É uma situação muito ilustrativa de como funciona a política. Ao ir para cima de um empresário amigo do governo, Rhoades impede que o governo lhe demita, porque isso iria chamar a atenção da opinião pública. O governo não quer ser visto protegendo “amigos”.
Entretanto, Rhoades agora precisa achar alguma coisa contra o tal empresário, que se tornou um alvo a ser destruído, custe o que custar. É como a Lava Jato diante de Lula: estabelecido o alvo, é preciso encontrar o crime.
Com essa Lista 2.0 de Rodrigo Janot, procurador-geral da República, testemunhamos, mais uma vez, um outro grande problema do Ministério Público brasileiro, quiçá o mais grave, por suas implicações contra a democracia: a criminalização da política.
O procurador americano vivencia a política. Ele faz campanha. Precisa arrecadar fundos para vencer o adversário. Ou então é nomeado (ou demitido) por um governo que chegou ao poder mediante uma campanha eleitoral. Ele jamais irá criminalizar a política, pelo menos não no grau de fanatismo insano, com que agem os procuradores brasileiros, que desde o início da Lava Jato não escondem seu messianismo e megalomania, ao falarem em “refundar a república” ou, mais recentemente, ao chamarem o nosso sistema político de “desfuncional”.
Não sejamos vira-latas. Em tese, a independência extraordinária do Ministério Público brasileiro poderia nos oferecer muitas vantagens, a começar pela liberdade em relação à “opinião pública”. Como não é eleito nem nomeado, mas alcança o cargo mediante concurso, ele não precisa, como o procurador estadunidense, oferecer uma “pontuação” de condenações.
Um outro problema do MP brasileiro, talvez o mais grave de todos, é o o seu poder de desestabilização política. Quando, em algum momento dos últimos anos, o MP tomou consciência de que ele pode “paralisar” o governo, a economia, o país, ele tem abusado esse poder para chantagear governos em troca de manutenção de seus privilégios, que são cada vez mais estapafúrdios. A independência do Ministério Público brasileiro, que deveria ser um trunfo, tornou-se então um enorme entrave para o desenvolvimento nacional. Como não responde a ninguém, o procurador brasileiro pode destruir indivíduos, empresas e políticos, justa ou injustamente, sem que isso lhe traga nenhuma consequência.
Além disso, o processo de seleção a carreira de promotor público tornou-se profundamente elitizado. Diferentemente do que ocorre nos EUA, onde o procurador ganha pouco e sua vida financeira é rigidamente monitorada pelo Estado, até porque ele concorre em eleições ou é ligado a um político que depende do eleitor, o procurador brasileiro tornou-se uma casta, integrante dos 0,1% mais ricos da sociedade. Esse é um fator trágico, porque afastou definitivamente o procurador brasileiro do povo. Tanto pelo processo de seleção quanto por sua renda.
O Ministério Público brasileiro tornou-se triplamente distante da sociedade: não responde ao cidadão, porque não é eleito, não responde ao governo, porque não é nomeado, e não responde à vida real, porque pertence a uma casta cuja riqueza não é afetada pelos altos e baixos da economia. Faça chuva ou faça sol, o procurador ganhará seu salário, dezenas de vezes superior à renda média do brasileiro comum.
Não precisamos copiar os Estados Unidos. Podemos apostar em nosso modelo, mas temos de enfrentar os nossos problemas com franqueza. O Ministério Público não pode ser uma instituição que, como é hoje, agride os direitos básicos, de cidadãos, empresas e representantes políticos, e, sobretudo, não pode continuar trabalhando, sistematicamente, contra a nossa estabilidade. Uma solução óbvia seria empoderar e reformar o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), oxigenando-o com mais gente de fora da corporação, e criando Conselhos em cada estado, e abrindo o Conselho para a sociedade, através da criação de ouvidorias e conselhos populares.
Nem todos os membros do Ministério Público, no entanto, são coxinhas. Recentemente, o Cafezinho foi convidado para participar, como observador, da reunião de constituição oficial do coletivo Transforma MP.
Parecia que eu alcançara um oásis, após muitos dias vagando no mais inóspito dos desertos. Dezenas de procuradores, de todo país, com ideologia progressista, de esquerda, antipáticos ao golpe (e sabem que foi golpe), se reuniram para criar um coletivo cujo objetivo é resgatar os valores originais do Ministério Público, conforme expressos na Constituição de 1988!
A ideia desse coletivo, segundo eles, surgiu no dia da condução coercitiva de Lula, que, ao contrário do que a mídia mostra, chocou muita gente dentro os próprios aparelhos de repressão, pela sua brutalidade. O impeachment, da maneira como foi construído, com apoio não disfarçado de boa parte do MP, via vazamentos seletivos, entrevistas sensacionalistas, e participação nas operações espetaculares da Lava Jato, consolidou a decisão do grupo de formar um coletivo
A reunião contou com a participação de membros da Associação de Juízes para Democracia (AJD), que contaram a sua experiência e relataram suas vicissitudes na atual conjuntura. Ouvi relatos de juízes e procuradores perseguidos notoriamente por suas posições políticas, através principalmente de processos administrativos internos, que é onde a perseguição política se sente mais à vontade para agir.
Entretanto, os membros da AJD não podiam esconder a sua admiração pela bravura dos procuradores, que decidiram formar um coletivo de luta num dos momentos mais difíceis e perigoso da história brasileira, quando o autoritarismo perdeu toda a vergonha de se exibir, e passou não apenas a gozar de popularidade, como ganhou o apoio do sistema de comunicação mais concentrado e mais conservador do mundo, como é o brasileiro.
Na pausa do café, um procurador do Paraná, terra dos procuradores da Lava Jato, ao saber que eu era o editor do Cafezinho, me parabenizou pelo trabalho. Eu agradeci e retribuí a cortesia, dizendo que a iniciativa deles muito me orgulhava. Então ele me disse:
– O que estamos fazendo aqui, de fato, é importante. Mas eu acho que não existe luta mais importante no Brasil de hoje do que derrotar a grande imprensa. Essa é a doença que está corroendo a democracia brasileira.
Vendo as manchetes dos jornais de hoje, com mais um vazamento irresponsável e oportunista feito pelo Ministério Público, e, sobretudo, lendo que Rodrigo Janot diferenciará caixa 2 “do bem” e “do mal”, a gente se depara, mais uma vez, com os mesmos problemas.
O MP não está interessado em ajudar o Brasil em sair da crise. Seu objetivo é simplesmente subsidiar o golpe de Estado e consolidar o regime de exceção que já foi implementado no país.
A narrativa por trás dessa nova lista de “delatados” da Odebrecht é a mesma de sempre. Inclui alguns tucanos, encurrala o governo, mas, principalmente, dá munição à mídia para atacar Lula e Dilma.
A manchete do Globo sintetiza os métodos usados desde o início da Lava Jato:
Aparecem alguns tucanos, mas o fogo é centrado em Lula e Dilma, cujos nomes aparecem em primeiro lugar.
Se você ler, contudo, o que a mídia traz sobre Lula e Dilma, terá mais do mesmo: ou seja, nada de provas, apenas delações genéricas, notoriamente forjadas, torcidas e distorcidas.
A reportagem do Globo, por exemplo, no trecho que fala do ex-presidente, informa que Emilio Odebrecht afirmou que o estádio do Arena Corinthians foi um “presente a Lula”. Desnecessário comentar o quanto isso é ridículo…
E tudo isso ao mesmo tempo em que vivemos a maior recessão econômica da nossa história. Ao invés do país se debruçar sobre as questões mais prementes, que são a escalada do desemprego, o rombo fiscal, a desorganização da economia, a grande imprensa ocupa-se inteiramente com especulações enviesadas sobre delações forjadas por um Ministério Público que destruiu a maior e melhor empresa de engenharia que o Brasil já possuiu, e que atuava em mais de 40 países
Eu não levo à sério essas delações, mesmo aquelas contra a direita e membros do governo golpista, porque foram arrancadas através de métodos criminosos. E acho que a esquerda faz um jogo muito perigoso – e equivocado – ao tentar surfar na onda da criminalização da política, tentando arrastar os adversários para a lama.
Todo esse processo não foi costurado, naturalmente, para beneficiar nenhum avanço progressista, mas apenas, e exclusivamente, para consolidar o estado de exceção, que é um regime sem política e sem povo, inteiramente controlado pelo judiciário e pela grande mídia.
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