Por Jorge Luiz Souto Maior, no site Carta Maior:
É preciso compreender, de uma vez por todas, que a Previdência Social, dentro do contexto da Seguridade Social, aliada aos direitos trabalhistas e demais direitos sociais, não é um capricho do legislador ou um privilégio da classe trabalhadora. Representa, isto sim, o efeito de uma estratégia para tentar salvar a sociedade capitalista que foi adotada depois de conhecida a situação devastadora de um capitalismo gerido, sem quaisquer limites, pelas lógicas da concorrência e do liberalismo clássico.
Na sociedade capitalista, que se organizou mundialmente, alguns poucos, como efeito de relações sociais historicamente desenvolvidas, tornaram-se os detentores dos meios de produção e de capital e tantos outros, a grande maioria, restaram desprovidos desses mesmos meios e, no contexto de uma sociedade cujas relações são intermediadas pelas mercadorias, viram-se na contingência emergencial de terem que vender o seu trabalho, transformado em força de trabalho, como forma de sobrevivência.
Essa relação desigual é mascarada pela forma jurídica, que faz parecer haver um negócio de compra e venda da mercadoria força de trabalho entre pessoas livres e iguais, apagando o dado histórico da formação das desigualdades e impulsionando a noção de que o esforço individual é a única solução para que as pessoas possam melhorar de vida. A posição social de cada ser humano seria, assim, o resultado da sua competência e de sua dedicação, quando não de sua vocação determinada por Deus. É que o aludido mundo da razão, não se conseguindo explicar racionalmente quando posto diante do questionamento acerca da origem das desigualdades, não tem vergonha de se socorrer do misticismo para fazer acreditar que cada ser humano é o algoz ou o herói de si mesmo, ao mesmo tempo em que desenvolve a contraditória noção, não revelada, de que cada ser humano deve cumprir os desígnios que lhe foram reservados, o que reforça, inclusive, a divisão sexual do trabalho, corroborando a irracionalidade patriarcal e machista.
Para além da formalidade jurídica e da visão ideológica de mundo, o fato concreto é que essa relação desigual entre o capitalista e o trabalhador, disfarçada na suposta igualdade de direitos, favoreceu a realização de negócios jurídicos nos quais a exploração do trabalho se desenvolveu de modo espúrio, ainda mais quando os capitalistas, também conduzidos pela lógica do capital, se viram detentores do argumento de que se não agissem daquela forma perderiam na concorrência econômica para aqueles que, na mesma localidade ou em outros países, conseguissem explorar o trabalho com maior intensidade e que, por consequência, colocassem suas mercadorias no mercado a preços menores.
Esse movimento concorrencial, no entanto, fez com que a lógica do capital deixasse a esfera da relação capital-trabalho e se voltasse, também, para as negociações realizadas no âmbito do capital. Com isso, capitalistas passam a engolir outros capitalistas, formando-se os monopólios organizacionais, ainda mais quando a tecnologia resta dominada pelo grande capital.
No âmbito da configuração política mundial, os países, onde o grande capital se concentra, relacionam-se com os demais países da mesma forma. Os países capitalistas não se estão no mesmo nível de desenvolvimento e isso estimula a formação de relações de poder, que, para se sustentar, requerem força bélica.
Os países do dito “capitalismo central”, reproduzindo a lógica colonial, tentam se impor pela imagem de que são mais avançados culturalmente, embora, claro, o poder econômico lhes confirma maiores possibilidades na produção cultural, e os países do capitalismo periférico, estando entre estes os emergentes e os subdesenvolvidos, se submetem aos interesses do capital internacional, o que reforça os seus problemas sociais internos.
Fato é que a economia política e a riqueza das nações, no capitalismo, se desenvolvem a partir do modo de produção no qual a exploração do trabalho humano é ponto central, promovendo uma lógica de trocas de mercadorias que esconde a base histórica das relações sociais internacionalmente construídas.
Neste contexto, o ser humano perde a sua identidade e se identifica, nas relações com outros seres humanos, por intermédio das mercadorias que adquire, quase sempre não por necessidade. As mercadorias, assim, dominam as relações humanas e o que se consegue ver e reproduzir é apenas o mundo das aparências.
Essas características do capitalismo, apresentadas de maneira bastante sucinta, provocaram intensos conflitos sociais, políticos e econômicos, como revela toda a história do século XIX, conduzindo a humanidade a um impasse: superar o capitalismo por outro modo de organização da sociedade; ou tentar salvar o capitalismo.
A seguridade social e os direitos trabalhistas correspondem a esse projeto que se estabeleceu para tentar salvar o capitalismo, constituindo, inclusive, uma fórmula para convencer a classe trabalhadora de que a sociedade capitalista poderia ser boa também para ela. Admitindo-se que não seria possível, nesse modelo de sociedade, construir a igualdade real, conferiu-se aos trabalhadores uma proteção contra as contingências sociais por meio de aparatos jurídicos que, ao menos retoricamente, seriam voltados à melhoria da condição social e econômica dos trabalhadores.
Claro que esses direitos foram, também, frutos de muitas lutas por melhores condições de vida da classe trabalhadora.
O fato é que seja como efeito de estratégia do capital, seja como resultado de luta, os direitos trabalhistas e previdenciários se integraram ao patrimônio jurídico e material da classe trabalhadora.
No Brasil, cuja história esteve relacionada, desde 1500, com a construção do capitalismo mundial, tendo servido como fornecedor da matéria-prima necessária para o desenvolvimento da produção industrial, não foi diferente. As estruturas jurídicas brasileiras reproduzem os mecanismos que foram concebidos para salvar o capitalismo.
Foi assim, e não por dádiva paternalista, que a exploração do trabalho ganhou uma padronização jurídica e as contingências sociais passaram a ser amparadas por proteção social, não se desprezando, como já dito, o caráter de conquista que essas proteções carregam.
É possível constatar essa estruturação da produção capitalista por meio da proteção jurídica do trabalho nas Constituições da República Federativa do Brasil vigentes desde 1934, e, com maior evidência, na Constituição de 1988.
Mas, no Brasil, ao se passar para o momento da efetivação dessas normas jurídicas depara-se com um grave problema: o de que não se conseguimos, até hoje, superar o período escravista. Não vivenciamos sequer uma revolução liberal e é por isso que, no Brasil, direitos trabalhistas são vistos como ofensas aos empresários e à classe dominante e os direitos previdenciários são visualizados meramente como custo desnecessário do Estado.
Na realidade brasileira, os direitos trabalhistas e previdenciários, por pressão internacional, começaram a ser instituídos ainda na Primeira República, mas apenas para satisfação diplomática formal.
Na década de 30, com o impulso dado pela crise de 29, as leis trabalhistas foram assumidas de forma mais intensa pelo Estado, com o apoio, inclusive, da classe empresarial, mas não com a intenção concreta de que fossem aplicadas. O que se pretendia era incentivar a criação de uma classe operária nacional e estimular a formação de um mercado de consumo interno.
Tirando um pequeno período de 1953 a 1963, em que um pouco de ideário nacionalista e de Estado Social se manifestou no Brasil, mas que, também, não se concretizou, o fato real é que o capitalismo brasileiro, que não deixou de ser colonial, do ponto de vista político, e dependente, do ponto de vista econômico, nunca experimentou a efetividade dos direitos trabalhistas e previdenciários. Ou seja, nunca se tentou desenvolver o capitalismo nacional com base em algum projeto de sociedade, para regozijo do capital estrangeiro que explora a nossa quase inesgotável força de trabalho.
O resultado histórico disso é: um país com uma das piores distribuições de renda do mundo, com grave exclusão social, baixa escolaridade e alta criminalidade, provocando a necessidade, para manter os interesses da classe dominante, de um elevado investimento na formação do Estado policial, em detrimento do investimento em escola e saúde públicas e serviços sociais; o que só faz retroalimentar os mesmos problemas.
Tem-se, assim, um país em que se preservam as estruturas culturais, sociais, econômicas e políticas da lógica escravista: machismo, racismo, desvalorização do trabalho e banalização do sofrimento alheio.
Alheio à formação histórica das relações sociais, alguém que se veja com a possibilidade material de empreender no Brasil, ao vislumbrar a necessidade de vencer o concorrente ou de não ser derrotado por este, sobretudo quando se depara com produtos originários de outros países onde a produção é mais barata, acaba considerando, sem maiores investigações, que a solução para os seus problemas econômicos é aumento da carga de trabalho ou a ampliação das possibilidades jurídicas de fazer rodar a mão-de-obra.
Isso, no entanto, paradoxalmente, fragiliza ainda mais a economia nacional, pois o lucro só se perfaz com o consumo e com a destruição de direitos sociais aniquila-se, junto, o mercado interno consumidor.
Na livre concorrência, adotado o critério da supressão generalizada de direitos, o que tem como efeito é que os grandes empregadores aumentam sua vantagem e massacram os ditos “pequenos empreendedores”, que são induzidos a acreditar que o seu problema decorre dos custos provocados pelos tais “direitos trabalhistas criados por Vargas”...
Os trabalhadores, por sua vez, claro, não se veem incluídos em qualquer projeto e, concretamente, a única realidade que conseguem visualizar é a da violência de ônibus e trens lotados, dos baixos salários, das supressões de direitos e da ameaça constante do desemprego.
E a cada momento em que, como uma bola de neve, esse estado de coisas piora os índices na produtividade, na economia, na coesão social e na criminalidade, a única coisa que se consegue pensar é no aumento das possibilidades de exploração do trabalho e na redução dos custos sociais. Mas se isso fosse solução econômica eficiente o Brasil já seria uma grande potência, vez que desde meados da década de 60 vem trilhando esse caminho: redução de salários (1965); representação comercial (1965); eliminação da estabilidade decenal (1967); intermediação de mão-de-obra (1974); estágio (1977); vigilantes (1983); terceirização (1993); banco de horas (1996)...
A essas fórmulas precárias alia-se a prática do desrespeito reiterado – e não punido – da legislação trabalhista: trabalho sem registro; transformação em PJ; horas extras não pagas (com cartões fraudulentos); salários “por fora” etc.
E como na lógica desse autêntico “pacto antissocial” toda forma de precarização é bem-vinda, adicionam-se as “estratégias de gestão”, que preveem fixação de metas inatingíveis que assediam e reificam ainda mais os trabalhadores, de modo a tentar extrair destes maior produtividade.
Tudo isso junto, não seria preciso explicitar, provoca um mundo do trabalho doentio, incompatível com a condição humana. O resultado é um elevadíssimo número de adoecimentos dos trabalhadores, quando não de mortes no trabalho. O Brasil é o 4º país do mundo em mortes por acidente do trabalho.
Pensando a questão do ponto de vista meramente matemático, como gostam de fazer os economistas, tem-se o efeito inevitável do aumento dos gastos da Previdência Social com a concessão de benefícios aos segurados, acompanhado da redução dos valores arrecadados, pois as formas precárias de exploração do trabalho apóiam-se, também, na eliminação dos custos previdenciários.
E diante do problema orçamentário gerado (que é sobrevalorizado), quais as soluções que o governo apresenta?
No aspecto trabalhista: ampliar a terceirização; eliminar direitos e reduzir salários por meio da tática do negociado sobre o legislado; legalizar novas formas precárias de exploração como o trabalho intermitente.
No âmbito previdenciário: criar fórmulas que, concretamente, impossibilitam que o segurado cumpra os requisitos para a obtenção de benefícios, notadamente, a aposentadoria, além de diminuírem sensivelmente os valores dos benefícios.
As propostas aumentam a causa dos custos da previdência e para manter a saúde financeira da previdência negam a concessão de benefícios.
No fundo, as propostas andam na contra-mão do projeto constitucional. Além disso, provocam uma intensificação do sofrimento da classe trabalhadora em duplo sentido: quando lhe expõe a um trabalho ainda mais penoso; e quando lhe nega qualquer compensação pela integração a um modelo de sociedade que se baseia na exploração do seu trabalho.
E tudo isso para incentivar que os trabalhadores busquem a via da previdência privada, onde devolverão ao capital parte considerável da já tão pequena parcela que lhe fora concedida pela venda da força de trabalho.
É interessante notar que os defensores da reforma acusam os direitos sociais de serem “anacrônicas”, por representarem o resultado de uma intervenção “paternalista” do Estado na realidade social, enquanto que à lei restritiva de direitos, imposta pelo mesmo Estado, sem qualquer esteio democrático, chamam de “moderna”. Assim, na sua visão, ser “moderno” é passar por cima da Constituição e criar uma democracia para chamar de sua. Incentivam a via “moderna” da negociação coletiva, mas não abrem mão da intervenção jurídica e da força policial do Estado para se coibirem as greves ou qualquer outra forma de resistência da classe trabalhadora. Querem que os trabalhadores negociem livremente com os patrões, mas municiam os patrões com o aparato policial. O que querem é que a “livre negociação” produza o efeito único de fazer com que os trabalhadores se submetam, “por vontade própria”, aos interesses do grande capital.
Desse modo, cada vez mais nos afastamos de algum projeto mínimo para salvar o capitalismo nacional. Impera a balbúrdia; o seja o que Deus quiser; o cada um por si; a luta de todos contra todos, favorecendo a difusão dos sentimentos de ódio e de desprezo pela vida alheia.
Não há qualquer envolvimento mínimo com algum projeto de sociedade que se apresente enquanto tal. Não se tem uma lógica de convivência, mas de sobrevivência individual e, assim, sobressaem os atos que restam naturalizados: corrupção; sonegação; repressão e esperteza.
E o pior de tudo é que as próprias instituições, que, nos termos da Constituição Federal, seriam as responsáveis pela difusão do projeto constitucional, acabam sendo compostas por pessoas que não foram profissional e culturalmente preparadas para enfrentarem o desafio de fazerem valer o Estado Social Democrático de Direito. Não tendo a compreensão sobre o projeto constitucional, não se comprometem com ele.
É assim, por exemplo, que instituições, como a Justiça do Trabalho, incentivam a prática de acordos que estimulam o descumprimento reiterado da legislação trabalhista, provocando mais sofrimento no trabalho e piora no custeio previdenciário. Lembre-se que nesses acordos geralmente consta uma discriminação de parcelas que evita as obrigações de empregadores e empregados com a Previdência Social.
O que se verifica na realidade do mundo do trabalho no Brasil é um calote institucionalizado contra a Previdência Social, do qual participam, também, o Ministério do Trabalho e o Ministério da Previdência Social, ao menos no plano de suas políticas institucionais de gestão e não na perspectiva concreta dos profissionais de carreira que em tais Ministérios atuam. É assim que referidas instituições são deixadas em situação precária, o que inviabiliza sua atuação fiscalizatória. Além disso, essas instituições, há muito, terceirizaram serviços e admitem a exploração precária do trabalho em suas próprias dependências.
O fato é que nunca se estabeleceu entre nós uma prática social voltada à efetivação do projeto de Estado Social Democrático de Direito e, dentro desse contexto, no qual toda a lógica de custeio da Seguridade Social foi historicamente abandonada, falar em déficit previdenciário como forma de destruir direitos sociais é, no mínimo, imoral.
Antes de pensar em qualquer “reforma previdenciária” baseada no argumento do “deficit” previdenciário, é essencial saber, primeiro, quanto foi subtraído, indevidamente, do custeio da Previdência Social ao longo dos últimos cinquenta anos.
Aliás, se lembrarmos, como dito inicialmente, que a Previdência Social, na lógica do pacto de salvação do capitalismo, constitui um patrimônio da classe trabalhadora, a forma correta de se fazer a pergunta é: quanto foi furtado do patrimônio da classe trabalhadora nos últimos 50 anos, por meio de sonegações, por falta de fiscalização, pela prática de acordos judiciais e pela adoção de formas precárias e ilegais de exploração do trabalho que aumentam o sofrimento no trabalho e provocam adoecimentos?
E a reforma em questão nem mesmo matematicamente se justifica.
Conforme esclarecem José Dari Krein e Vitor Araújo Filgueiras, seria possível aumentar a receita da Previdência Social com o mero respeito à lei trabalhista: formalização do trabalho assalariado sem carteira assinada, R$ 47 bilhões; fim das remunerações "por fora", R$ 20 bilhões; reembolso pelas empresas das despesas com acidentes de trabalho, R$ 8,8 bilhões; extinção do enquadramento de acidentes de trabalho como doenças comuns, gerando R$ 17 bilhões; eliminação das perdas de arrecadação por subnotificação de acidentes, R$ 13 bilhões.
Os critérios de gestão governamental devem, igualmente, ser questionados. Ora, em cálculo bastante conservador, é possível verificar que apenas em 2014 foram extraídos do patrimônio da classe trabalhadora: R$ 1,1 bilhão, com isenção para a Fifa; R$ 2,1 bilhões, em desvios na Petrobrás; R$13,2 bilhões, com desonerações na folha de pagamento; R$ 2 bilhões, não recolhidos nas lides trabalhistas; R$ 104 bilhões, em isenções tributárias.
Nesse cálculo não foram incluídas as sonegações que se praticam diariamente (e que tantas vezes sequer são contabilizadas), assim como o montante oficial da dívida R$ 426 bilhões que algumas empresas possuem, declaradamente, com a Previdência Social.
Aliás, não se considerou também o valor que o próprio Estado, enquanto contribuinte obrigatório, deve à Previdência Social, pois desde a década de 90, por meio do mecanismo das Desvinculações de Recursos da União (DRU), vem desviando, para o pagamento da dívida pública, receitas que seriam da Seguridade Social. Só em 2015, essa desvinculação foi da ordem de R$ 63 bilhões, segundo a ANFIP.
Lembre-se, ainda, que além de não realizar a fiscalização das relações de trabalho, isentar o capital do pagamento de contribuições sociais e não arrecadar valores declaradamente devidos, o governo ainda agride a classe trabalhadora deixando, deliberadamente, de pagar seus benefícios previdenciários. Com efeito, em todo país, visualizando os dados de 2011 e considerando os processos então em curso, o INSS apresentava-se como réu em 5,8 milhões de ações, que tiveram origem, sobretudo, com a regra a alta programada. Segundo estimativa do Sindicato Nacional dos Aposentados e Pensionistas da Força Sindical (Sindinap) entre 50% e 70% desses processos previdenciários são motivados por problemas com os auxílios, entre eles o auxílio-doença.
O que se tem, em concreto, é um histórico de atuação do Estado em favor da acumulação da riqueza por meio da exploração e do sofrimento da classe trabalhadora.
Ao longo de décadas, o Estado e a sociedade em geral não se comprometeram com o custeio da Seguridade e em eliminar (ou diminuir) as causas das contingências sociais.
Assim, não se pode cair na armadilha de discutir qual reforma previdenciária é aceitável. Neste contexto de sonegação institucionalizada, de calote histórico ao patrimônio da classe trabalhadora, qualquer reforma pautada pela imposição de redução de benefícios é matematicamente inconcebível e moralmente condenável.
Para que se realize qualquer debate minimamente sério a respeito da viabilidade da Previdência Social é necessário, antes, realizar uma auditoria com efetiva participação popular, nos moldes de um inventário histórico, para que se tenha a conta precisa do quanto foi subtraído desse patrimônio jurídico da classe trabalhadora que é a Previdência Social.
Importantíssima, portanto, a iniciativa da Confederação Brasileira de Aposentados, Pensionistas e Idosos (Cobap), acatada pelo Senador Paulo Paim e já aprovada pela quantidade necessária de Senadores, no sentido da abertura de uma CPI para análise das contas da Previdência, o que se torna ainda mais necessário depois da notícia de que o secretário da Previdência do Ministério da Fazenda, Marcelo Caetano, um dos principais articuladores da proposta de reforma da Previdência apresentada pelo governo Temer, seria ocupante também cargo de conselheiro na Brasilprev, uma das maiores empresas de previdência privada do país.
Enfim, considerando a forma de funcionamento da sociedade capitalista, na qual se concede ao capital as possibilidades plenas para explorar o trabalho, sendo que aquele sequer se vê constrangido em respeitar as conquistas históricas da classe trabalhadora, que também servem para salvar o capitalismo, a grande questão é saber se é possível acreditar no advento de uma reforma que efetivamente precisaria ser feita: a da aplicação concreta do projeto constitucional de Seguridade Social, mesmo com o abalo já sofrido pelas diversas reformas introduzidas na década de 90.
O que a classe trabalhadora precisa se perguntar é se a aposta no projeto constitucional, em uma realidade na qual o desprezo pela solidariedade é tomado como um patrimônio cultural e assumido como fala institucional do próprio governo, é uma aposta efetivamente válida.
E, lembrando do modo de funcionamento do capitalismo, aos trabalhadores talvez também caiba indagar até que ponto vale a pena levar adiante uma luta (por reformas que tentam salvar o capitalismo) em que mesmo ganhando acabam perdendo.
Não me cumpre dar as respostas, até porque nem teria legitimidade para expressá-las. Sei apenas que um debate sobre relações sociais não pode ser baseado em engodos e o que o atual (des)governo está tentando fazer, por meio das propostas de reforma trabalhista e de reforma previdenciária, é uma grande enganação, que desconsidera, inclusive, a capacidade intelectual de todos, ao mesmo tempo em que toma o sofrimento alheio como natural e necessário.
Nessa avalanche contra os direitos sociais tem faltado, portanto, honestidade e humanidade.
É preciso compreender, de uma vez por todas, que a Previdência Social, dentro do contexto da Seguridade Social, aliada aos direitos trabalhistas e demais direitos sociais, não é um capricho do legislador ou um privilégio da classe trabalhadora. Representa, isto sim, o efeito de uma estratégia para tentar salvar a sociedade capitalista que foi adotada depois de conhecida a situação devastadora de um capitalismo gerido, sem quaisquer limites, pelas lógicas da concorrência e do liberalismo clássico.
Na sociedade capitalista, que se organizou mundialmente, alguns poucos, como efeito de relações sociais historicamente desenvolvidas, tornaram-se os detentores dos meios de produção e de capital e tantos outros, a grande maioria, restaram desprovidos desses mesmos meios e, no contexto de uma sociedade cujas relações são intermediadas pelas mercadorias, viram-se na contingência emergencial de terem que vender o seu trabalho, transformado em força de trabalho, como forma de sobrevivência.
Essa relação desigual é mascarada pela forma jurídica, que faz parecer haver um negócio de compra e venda da mercadoria força de trabalho entre pessoas livres e iguais, apagando o dado histórico da formação das desigualdades e impulsionando a noção de que o esforço individual é a única solução para que as pessoas possam melhorar de vida. A posição social de cada ser humano seria, assim, o resultado da sua competência e de sua dedicação, quando não de sua vocação determinada por Deus. É que o aludido mundo da razão, não se conseguindo explicar racionalmente quando posto diante do questionamento acerca da origem das desigualdades, não tem vergonha de se socorrer do misticismo para fazer acreditar que cada ser humano é o algoz ou o herói de si mesmo, ao mesmo tempo em que desenvolve a contraditória noção, não revelada, de que cada ser humano deve cumprir os desígnios que lhe foram reservados, o que reforça, inclusive, a divisão sexual do trabalho, corroborando a irracionalidade patriarcal e machista.
Para além da formalidade jurídica e da visão ideológica de mundo, o fato concreto é que essa relação desigual entre o capitalista e o trabalhador, disfarçada na suposta igualdade de direitos, favoreceu a realização de negócios jurídicos nos quais a exploração do trabalho se desenvolveu de modo espúrio, ainda mais quando os capitalistas, também conduzidos pela lógica do capital, se viram detentores do argumento de que se não agissem daquela forma perderiam na concorrência econômica para aqueles que, na mesma localidade ou em outros países, conseguissem explorar o trabalho com maior intensidade e que, por consequência, colocassem suas mercadorias no mercado a preços menores.
Esse movimento concorrencial, no entanto, fez com que a lógica do capital deixasse a esfera da relação capital-trabalho e se voltasse, também, para as negociações realizadas no âmbito do capital. Com isso, capitalistas passam a engolir outros capitalistas, formando-se os monopólios organizacionais, ainda mais quando a tecnologia resta dominada pelo grande capital.
No âmbito da configuração política mundial, os países, onde o grande capital se concentra, relacionam-se com os demais países da mesma forma. Os países capitalistas não se estão no mesmo nível de desenvolvimento e isso estimula a formação de relações de poder, que, para se sustentar, requerem força bélica.
Os países do dito “capitalismo central”, reproduzindo a lógica colonial, tentam se impor pela imagem de que são mais avançados culturalmente, embora, claro, o poder econômico lhes confirma maiores possibilidades na produção cultural, e os países do capitalismo periférico, estando entre estes os emergentes e os subdesenvolvidos, se submetem aos interesses do capital internacional, o que reforça os seus problemas sociais internos.
Fato é que a economia política e a riqueza das nações, no capitalismo, se desenvolvem a partir do modo de produção no qual a exploração do trabalho humano é ponto central, promovendo uma lógica de trocas de mercadorias que esconde a base histórica das relações sociais internacionalmente construídas.
Neste contexto, o ser humano perde a sua identidade e se identifica, nas relações com outros seres humanos, por intermédio das mercadorias que adquire, quase sempre não por necessidade. As mercadorias, assim, dominam as relações humanas e o que se consegue ver e reproduzir é apenas o mundo das aparências.
Essas características do capitalismo, apresentadas de maneira bastante sucinta, provocaram intensos conflitos sociais, políticos e econômicos, como revela toda a história do século XIX, conduzindo a humanidade a um impasse: superar o capitalismo por outro modo de organização da sociedade; ou tentar salvar o capitalismo.
A seguridade social e os direitos trabalhistas correspondem a esse projeto que se estabeleceu para tentar salvar o capitalismo, constituindo, inclusive, uma fórmula para convencer a classe trabalhadora de que a sociedade capitalista poderia ser boa também para ela. Admitindo-se que não seria possível, nesse modelo de sociedade, construir a igualdade real, conferiu-se aos trabalhadores uma proteção contra as contingências sociais por meio de aparatos jurídicos que, ao menos retoricamente, seriam voltados à melhoria da condição social e econômica dos trabalhadores.
Claro que esses direitos foram, também, frutos de muitas lutas por melhores condições de vida da classe trabalhadora.
O fato é que seja como efeito de estratégia do capital, seja como resultado de luta, os direitos trabalhistas e previdenciários se integraram ao patrimônio jurídico e material da classe trabalhadora.
No Brasil, cuja história esteve relacionada, desde 1500, com a construção do capitalismo mundial, tendo servido como fornecedor da matéria-prima necessária para o desenvolvimento da produção industrial, não foi diferente. As estruturas jurídicas brasileiras reproduzem os mecanismos que foram concebidos para salvar o capitalismo.
Foi assim, e não por dádiva paternalista, que a exploração do trabalho ganhou uma padronização jurídica e as contingências sociais passaram a ser amparadas por proteção social, não se desprezando, como já dito, o caráter de conquista que essas proteções carregam.
É possível constatar essa estruturação da produção capitalista por meio da proteção jurídica do trabalho nas Constituições da República Federativa do Brasil vigentes desde 1934, e, com maior evidência, na Constituição de 1988.
Mas, no Brasil, ao se passar para o momento da efetivação dessas normas jurídicas depara-se com um grave problema: o de que não se conseguimos, até hoje, superar o período escravista. Não vivenciamos sequer uma revolução liberal e é por isso que, no Brasil, direitos trabalhistas são vistos como ofensas aos empresários e à classe dominante e os direitos previdenciários são visualizados meramente como custo desnecessário do Estado.
Na realidade brasileira, os direitos trabalhistas e previdenciários, por pressão internacional, começaram a ser instituídos ainda na Primeira República, mas apenas para satisfação diplomática formal.
Na década de 30, com o impulso dado pela crise de 29, as leis trabalhistas foram assumidas de forma mais intensa pelo Estado, com o apoio, inclusive, da classe empresarial, mas não com a intenção concreta de que fossem aplicadas. O que se pretendia era incentivar a criação de uma classe operária nacional e estimular a formação de um mercado de consumo interno.
Tirando um pequeno período de 1953 a 1963, em que um pouco de ideário nacionalista e de Estado Social se manifestou no Brasil, mas que, também, não se concretizou, o fato real é que o capitalismo brasileiro, que não deixou de ser colonial, do ponto de vista político, e dependente, do ponto de vista econômico, nunca experimentou a efetividade dos direitos trabalhistas e previdenciários. Ou seja, nunca se tentou desenvolver o capitalismo nacional com base em algum projeto de sociedade, para regozijo do capital estrangeiro que explora a nossa quase inesgotável força de trabalho.
O resultado histórico disso é: um país com uma das piores distribuições de renda do mundo, com grave exclusão social, baixa escolaridade e alta criminalidade, provocando a necessidade, para manter os interesses da classe dominante, de um elevado investimento na formação do Estado policial, em detrimento do investimento em escola e saúde públicas e serviços sociais; o que só faz retroalimentar os mesmos problemas.
Tem-se, assim, um país em que se preservam as estruturas culturais, sociais, econômicas e políticas da lógica escravista: machismo, racismo, desvalorização do trabalho e banalização do sofrimento alheio.
Alheio à formação histórica das relações sociais, alguém que se veja com a possibilidade material de empreender no Brasil, ao vislumbrar a necessidade de vencer o concorrente ou de não ser derrotado por este, sobretudo quando se depara com produtos originários de outros países onde a produção é mais barata, acaba considerando, sem maiores investigações, que a solução para os seus problemas econômicos é aumento da carga de trabalho ou a ampliação das possibilidades jurídicas de fazer rodar a mão-de-obra.
Isso, no entanto, paradoxalmente, fragiliza ainda mais a economia nacional, pois o lucro só se perfaz com o consumo e com a destruição de direitos sociais aniquila-se, junto, o mercado interno consumidor.
Na livre concorrência, adotado o critério da supressão generalizada de direitos, o que tem como efeito é que os grandes empregadores aumentam sua vantagem e massacram os ditos “pequenos empreendedores”, que são induzidos a acreditar que o seu problema decorre dos custos provocados pelos tais “direitos trabalhistas criados por Vargas”...
Os trabalhadores, por sua vez, claro, não se veem incluídos em qualquer projeto e, concretamente, a única realidade que conseguem visualizar é a da violência de ônibus e trens lotados, dos baixos salários, das supressões de direitos e da ameaça constante do desemprego.
E a cada momento em que, como uma bola de neve, esse estado de coisas piora os índices na produtividade, na economia, na coesão social e na criminalidade, a única coisa que se consegue pensar é no aumento das possibilidades de exploração do trabalho e na redução dos custos sociais. Mas se isso fosse solução econômica eficiente o Brasil já seria uma grande potência, vez que desde meados da década de 60 vem trilhando esse caminho: redução de salários (1965); representação comercial (1965); eliminação da estabilidade decenal (1967); intermediação de mão-de-obra (1974); estágio (1977); vigilantes (1983); terceirização (1993); banco de horas (1996)...
A essas fórmulas precárias alia-se a prática do desrespeito reiterado – e não punido – da legislação trabalhista: trabalho sem registro; transformação em PJ; horas extras não pagas (com cartões fraudulentos); salários “por fora” etc.
E como na lógica desse autêntico “pacto antissocial” toda forma de precarização é bem-vinda, adicionam-se as “estratégias de gestão”, que preveem fixação de metas inatingíveis que assediam e reificam ainda mais os trabalhadores, de modo a tentar extrair destes maior produtividade.
Tudo isso junto, não seria preciso explicitar, provoca um mundo do trabalho doentio, incompatível com a condição humana. O resultado é um elevadíssimo número de adoecimentos dos trabalhadores, quando não de mortes no trabalho. O Brasil é o 4º país do mundo em mortes por acidente do trabalho.
Pensando a questão do ponto de vista meramente matemático, como gostam de fazer os economistas, tem-se o efeito inevitável do aumento dos gastos da Previdência Social com a concessão de benefícios aos segurados, acompanhado da redução dos valores arrecadados, pois as formas precárias de exploração do trabalho apóiam-se, também, na eliminação dos custos previdenciários.
E diante do problema orçamentário gerado (que é sobrevalorizado), quais as soluções que o governo apresenta?
No aspecto trabalhista: ampliar a terceirização; eliminar direitos e reduzir salários por meio da tática do negociado sobre o legislado; legalizar novas formas precárias de exploração como o trabalho intermitente.
No âmbito previdenciário: criar fórmulas que, concretamente, impossibilitam que o segurado cumpra os requisitos para a obtenção de benefícios, notadamente, a aposentadoria, além de diminuírem sensivelmente os valores dos benefícios.
As propostas aumentam a causa dos custos da previdência e para manter a saúde financeira da previdência negam a concessão de benefícios.
No fundo, as propostas andam na contra-mão do projeto constitucional. Além disso, provocam uma intensificação do sofrimento da classe trabalhadora em duplo sentido: quando lhe expõe a um trabalho ainda mais penoso; e quando lhe nega qualquer compensação pela integração a um modelo de sociedade que se baseia na exploração do seu trabalho.
E tudo isso para incentivar que os trabalhadores busquem a via da previdência privada, onde devolverão ao capital parte considerável da já tão pequena parcela que lhe fora concedida pela venda da força de trabalho.
É interessante notar que os defensores da reforma acusam os direitos sociais de serem “anacrônicas”, por representarem o resultado de uma intervenção “paternalista” do Estado na realidade social, enquanto que à lei restritiva de direitos, imposta pelo mesmo Estado, sem qualquer esteio democrático, chamam de “moderna”. Assim, na sua visão, ser “moderno” é passar por cima da Constituição e criar uma democracia para chamar de sua. Incentivam a via “moderna” da negociação coletiva, mas não abrem mão da intervenção jurídica e da força policial do Estado para se coibirem as greves ou qualquer outra forma de resistência da classe trabalhadora. Querem que os trabalhadores negociem livremente com os patrões, mas municiam os patrões com o aparato policial. O que querem é que a “livre negociação” produza o efeito único de fazer com que os trabalhadores se submetam, “por vontade própria”, aos interesses do grande capital.
Desse modo, cada vez mais nos afastamos de algum projeto mínimo para salvar o capitalismo nacional. Impera a balbúrdia; o seja o que Deus quiser; o cada um por si; a luta de todos contra todos, favorecendo a difusão dos sentimentos de ódio e de desprezo pela vida alheia.
Não há qualquer envolvimento mínimo com algum projeto de sociedade que se apresente enquanto tal. Não se tem uma lógica de convivência, mas de sobrevivência individual e, assim, sobressaem os atos que restam naturalizados: corrupção; sonegação; repressão e esperteza.
E o pior de tudo é que as próprias instituições, que, nos termos da Constituição Federal, seriam as responsáveis pela difusão do projeto constitucional, acabam sendo compostas por pessoas que não foram profissional e culturalmente preparadas para enfrentarem o desafio de fazerem valer o Estado Social Democrático de Direito. Não tendo a compreensão sobre o projeto constitucional, não se comprometem com ele.
É assim, por exemplo, que instituições, como a Justiça do Trabalho, incentivam a prática de acordos que estimulam o descumprimento reiterado da legislação trabalhista, provocando mais sofrimento no trabalho e piora no custeio previdenciário. Lembre-se que nesses acordos geralmente consta uma discriminação de parcelas que evita as obrigações de empregadores e empregados com a Previdência Social.
O que se verifica na realidade do mundo do trabalho no Brasil é um calote institucionalizado contra a Previdência Social, do qual participam, também, o Ministério do Trabalho e o Ministério da Previdência Social, ao menos no plano de suas políticas institucionais de gestão e não na perspectiva concreta dos profissionais de carreira que em tais Ministérios atuam. É assim que referidas instituições são deixadas em situação precária, o que inviabiliza sua atuação fiscalizatória. Além disso, essas instituições, há muito, terceirizaram serviços e admitem a exploração precária do trabalho em suas próprias dependências.
O fato é que nunca se estabeleceu entre nós uma prática social voltada à efetivação do projeto de Estado Social Democrático de Direito e, dentro desse contexto, no qual toda a lógica de custeio da Seguridade Social foi historicamente abandonada, falar em déficit previdenciário como forma de destruir direitos sociais é, no mínimo, imoral.
Antes de pensar em qualquer “reforma previdenciária” baseada no argumento do “deficit” previdenciário, é essencial saber, primeiro, quanto foi subtraído, indevidamente, do custeio da Previdência Social ao longo dos últimos cinquenta anos.
Aliás, se lembrarmos, como dito inicialmente, que a Previdência Social, na lógica do pacto de salvação do capitalismo, constitui um patrimônio da classe trabalhadora, a forma correta de se fazer a pergunta é: quanto foi furtado do patrimônio da classe trabalhadora nos últimos 50 anos, por meio de sonegações, por falta de fiscalização, pela prática de acordos judiciais e pela adoção de formas precárias e ilegais de exploração do trabalho que aumentam o sofrimento no trabalho e provocam adoecimentos?
E a reforma em questão nem mesmo matematicamente se justifica.
Conforme esclarecem José Dari Krein e Vitor Araújo Filgueiras, seria possível aumentar a receita da Previdência Social com o mero respeito à lei trabalhista: formalização do trabalho assalariado sem carteira assinada, R$ 47 bilhões; fim das remunerações "por fora", R$ 20 bilhões; reembolso pelas empresas das despesas com acidentes de trabalho, R$ 8,8 bilhões; extinção do enquadramento de acidentes de trabalho como doenças comuns, gerando R$ 17 bilhões; eliminação das perdas de arrecadação por subnotificação de acidentes, R$ 13 bilhões.
Os critérios de gestão governamental devem, igualmente, ser questionados. Ora, em cálculo bastante conservador, é possível verificar que apenas em 2014 foram extraídos do patrimônio da classe trabalhadora: R$ 1,1 bilhão, com isenção para a Fifa; R$ 2,1 bilhões, em desvios na Petrobrás; R$13,2 bilhões, com desonerações na folha de pagamento; R$ 2 bilhões, não recolhidos nas lides trabalhistas; R$ 104 bilhões, em isenções tributárias.
Nesse cálculo não foram incluídas as sonegações que se praticam diariamente (e que tantas vezes sequer são contabilizadas), assim como o montante oficial da dívida R$ 426 bilhões que algumas empresas possuem, declaradamente, com a Previdência Social.
Aliás, não se considerou também o valor que o próprio Estado, enquanto contribuinte obrigatório, deve à Previdência Social, pois desde a década de 90, por meio do mecanismo das Desvinculações de Recursos da União (DRU), vem desviando, para o pagamento da dívida pública, receitas que seriam da Seguridade Social. Só em 2015, essa desvinculação foi da ordem de R$ 63 bilhões, segundo a ANFIP.
Lembre-se, ainda, que além de não realizar a fiscalização das relações de trabalho, isentar o capital do pagamento de contribuições sociais e não arrecadar valores declaradamente devidos, o governo ainda agride a classe trabalhadora deixando, deliberadamente, de pagar seus benefícios previdenciários. Com efeito, em todo país, visualizando os dados de 2011 e considerando os processos então em curso, o INSS apresentava-se como réu em 5,8 milhões de ações, que tiveram origem, sobretudo, com a regra a alta programada. Segundo estimativa do Sindicato Nacional dos Aposentados e Pensionistas da Força Sindical (Sindinap) entre 50% e 70% desses processos previdenciários são motivados por problemas com os auxílios, entre eles o auxílio-doença.
O que se tem, em concreto, é um histórico de atuação do Estado em favor da acumulação da riqueza por meio da exploração e do sofrimento da classe trabalhadora.
Ao longo de décadas, o Estado e a sociedade em geral não se comprometeram com o custeio da Seguridade e em eliminar (ou diminuir) as causas das contingências sociais.
Assim, não se pode cair na armadilha de discutir qual reforma previdenciária é aceitável. Neste contexto de sonegação institucionalizada, de calote histórico ao patrimônio da classe trabalhadora, qualquer reforma pautada pela imposição de redução de benefícios é matematicamente inconcebível e moralmente condenável.
Para que se realize qualquer debate minimamente sério a respeito da viabilidade da Previdência Social é necessário, antes, realizar uma auditoria com efetiva participação popular, nos moldes de um inventário histórico, para que se tenha a conta precisa do quanto foi subtraído desse patrimônio jurídico da classe trabalhadora que é a Previdência Social.
Importantíssima, portanto, a iniciativa da Confederação Brasileira de Aposentados, Pensionistas e Idosos (Cobap), acatada pelo Senador Paulo Paim e já aprovada pela quantidade necessária de Senadores, no sentido da abertura de uma CPI para análise das contas da Previdência, o que se torna ainda mais necessário depois da notícia de que o secretário da Previdência do Ministério da Fazenda, Marcelo Caetano, um dos principais articuladores da proposta de reforma da Previdência apresentada pelo governo Temer, seria ocupante também cargo de conselheiro na Brasilprev, uma das maiores empresas de previdência privada do país.
Enfim, considerando a forma de funcionamento da sociedade capitalista, na qual se concede ao capital as possibilidades plenas para explorar o trabalho, sendo que aquele sequer se vê constrangido em respeitar as conquistas históricas da classe trabalhadora, que também servem para salvar o capitalismo, a grande questão é saber se é possível acreditar no advento de uma reforma que efetivamente precisaria ser feita: a da aplicação concreta do projeto constitucional de Seguridade Social, mesmo com o abalo já sofrido pelas diversas reformas introduzidas na década de 90.
O que a classe trabalhadora precisa se perguntar é se a aposta no projeto constitucional, em uma realidade na qual o desprezo pela solidariedade é tomado como um patrimônio cultural e assumido como fala institucional do próprio governo, é uma aposta efetivamente válida.
E, lembrando do modo de funcionamento do capitalismo, aos trabalhadores talvez também caiba indagar até que ponto vale a pena levar adiante uma luta (por reformas que tentam salvar o capitalismo) em que mesmo ganhando acabam perdendo.
Não me cumpre dar as respostas, até porque nem teria legitimidade para expressá-las. Sei apenas que um debate sobre relações sociais não pode ser baseado em engodos e o que o atual (des)governo está tentando fazer, por meio das propostas de reforma trabalhista e de reforma previdenciária, é uma grande enganação, que desconsidera, inclusive, a capacidade intelectual de todos, ao mesmo tempo em que toma o sofrimento alheio como natural e necessário.
Nessa avalanche contra os direitos sociais tem faltado, portanto, honestidade e humanidade.
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