Por Rodrigo Martins, na revista CartaCapital:
Vendedor de ilusões, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, viu a realidade confrontar a pós-verdade na divulgação do PIB de 2016, com estrondosa queda de 3,6%. O que mais constrangeu a equipe econômica de Michel Temer foi, porém, a revelação dos balanços trimestrais da atividade medida pelo IBGE. Enquanto no primeiro semestre a recessão perdia fôlego, em meio ao impeachment de Dilma Rousseff, ela voltou a recrudescer com a efetivação do peemedebista no poder. Nos seis últimos meses do ano passado, a retração acumulada foi de 1,6%.
“É espelho retrovisor”, minimizou Meirelles, a apostar em um crescimento de 1% da economia até o fim de 2017, enquanto o mercado projeta 0,49%, segundo o Boletim Focus, do Banco Central. Para analistas mais sóbrios, a retomada do crescimento não passa de miragem. Infatigável na missão de semear vento, o titular da Fazenda diz vislumbrar um crescimento robusto com o avanço das reformas prometidas.
Diante da relutância de parcela expressiva dos parlamentares e da rejeição da maioria da população à elevação da idade mínima e do tempo de contribuição para a aposentadoria, segundo uma pesquisa divulgada em janeiro pelo Serviço de Proteção ao Crédito e pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas, o governo Temer apela para intimidações.
“Se a reforma da Previdência não sair, tchau, Bolsa Família”, ameaçou uma das peças publicitárias veiculadas nas redes sociais pelo PMDB, partido de Temer. Deputados resistentes à dilapidação da Seguridade Social, até pela pressão de prefeitos de suas bases, têm sido advertidos sobre a perda de cargos e regalias na administração federal. Os governistas Carlos Marun (PMDB) e Julio Lopes (PP) chegaram a sondar a Advocacia-Geral da União sobre a possibilidade de censurar, na Justiça, um estudo da Associação Nacional dos Auditores Fiscais (Anfip) a contestar o suspeitíssimo déficit da Previdência.
Ainda que as reformas previdenciária e trabalhista, além do congelamento de gastos públicos por duas décadas aprovado no fim de 2016, possam animar os agentes econômicos e atrair investimentos privados, tal receituário é incapaz de produzir crescimento aliado à inclusão. Talvez um dos mais emblemáticos exemplos seja o do México, principal laboratório das medidas propostas pelo Consenso de Washington para “estimular o crescimento na América Latina”.
Os mexicanos seguiram à risca a prescrição neoliberal: reduziram o papel do Estado na economia, promoveram drásticos cortes nos gastos públicos, privatizaram estatais, flexibilizaram as leis trabalhistas, entraram de cabeça no Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio (Nafta), hoje desprezado pelo presidente dos EUA, Donald Trump.
A reforma da Previdência mexicana remonta a 1997, quando o subfinanciado sistema de pensões com benefícios definidos foi substituído por um modelo de contas com capitalização individual. O beneficiário recebe com base apenas no que contribuiu, descontadas as taxas de administração dos fundos. Resultado: por causa da elevada informalidade do mercado de trabalho, a maioria da população economicamente ativa não contribui para o sistema, que oferece um benefício médio de 4 mil pesos mexicanos (cerca de 640 reais) aos trabalhadores do setor privado. Entre os cidadãos com mais de 65 anos, idade mínima para a aposentadoria, 77% dos idosos estão descobertos.
Quem descreve o cenário é a especialista Berenice Ramírez López, do Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam). “Em um país com um contingente tão grande de cidadãos que vivem abaixo da linha da pobreza, a escassa cobertura da Previdência e os baixos valores pagos pelos benefícios agudizam ainda mais o problema”, explica López. “A seguridade social foi desenhada para redistribuir renda, mas as distorções verificadas nas últimas décadas levaram à valorização de programas sociais focalizados e de baixo alcance, em detrimento do sistema de aposentadorias.”
Os indicadores sociais do México não deixam dúvidas sobre o legado do neoliberalismo. De 2008 a 2014, as taxas de pobreza e indigência não pararam de crescer, e chegaram a atingir 39,1% e 12,2% da população mexicana, respectivamente, segundo as medições da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), baseadas no poder de compra de uma cesta mínima de itens necessários à sobrevivência. Em trajetória inversa, o Brasil “intervencionista” de Lula e Dilma reduziu esses indicadores a menos da metade.
As movimentações da base de Temer para impedir a circulação do estudo “Previdência: Reformar para excluir?”, da Anfip, têm alguma lógica, ainda que assentada na desonestidade intelectual. O documento demole uma série de mitos relacionados à “insustentabilidade” do sistema, a começar pela própria existência de um déficit no setor.
No fim de janeiro, o governo federal anunciou um rombo de 151,9 bilhões de reais nas contas do Regime Geral da Previdência Social (RGPS), o maior da série histórica iniciada em 1995. A Anfip observa, porém, que a Constituição de 1988 prevê um modelo tripartite de financiamento do setor, segundo o qual o Estado, os empregadores e os trabalhadores contribuíam em partes iguais. O déficit, segundo a entidade, surge porque não se contabilizam tributos cobrados pelo Estado para compor a receita, como a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e a Contribuição Social para o Financiamento das Seguridade Social (Cofins), cobradas das empresas.
Para demonstrar o engodo, a Anfip analisou o suposto déficit de 85,8 bilhões de reais apurado pelo governo em 2015. O rombo, destacam os pesquisadores da entidade, “poderia ter sido coberto com parte dos 202 bilhões arrecadados pela Cofins, dos 61 bilhões coletados pela CSLL e dos 53 bilhões arrecadados pelo PIS-Pasep. Haveria ainda outros 63 bilhões capturados da Seguridade pela Desvinculação das Receitas da União e os 157 bilhões de reais de desonerações e renúncias de receitas”.
“O ‘déficit’ da Previdência é uma pedalada constitucional, uma pós-verdade, para usar um termo da moda”, afirma o economista Eduardo Fagnani, professor associado da Universidade de Campinas. “Desde 1989 não se contabiliza a parte do governo como fonte de receita da Previdência. Ao fazer isso, a União nega que a Previdência faça parte da Seguridade Social, em confronto com os artigos 194 e 195 da Constituição.”
O especialista observa, ainda, que todas as nações desenvolvidas que integram a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), sempre usadas como referência para elevar a idade mínima da aposentadoria no Brasil, também fazem aportes públicos na Previdência. Em casos extremos, como a Dinamarca, a participação estatal chega a 75,6% das receitas. “Isso corresponde a 27% do PIB dinamarquês. Se a nação escandinava fosse uma República de Bananas, eles diriam que tem um rombo de 27% do PIB.”
Outra desonestidade intelectual é usar a OCDE como parâmetro para exigir idade mínima de 65 anos para a aposentadoria nos trópicos. A expectativa de vida média dos países do bloco é de 81,2 anos, enquanto a do Brasil é de 75 anos. Não é tudo. O brasileiro tem um tempo médio de vida com saúde, sem dificuldades para realizar suas atividades cotidianas, de 65,5 anos, segundo a Organização Mundial da Saúde. Ou seja, pela reforma proposta por Temer, os cidadãos devem usufruir das aposentadorias por apenas seis meses antes de serem acometidos por doenças crônicas ou incapacitantes.
Pior: a proposta do governo ignora as desigualdades socioterritoriais e de gênero, ao igualar trabalhadores do campo e da cidade, homens e mulheres, no mesmo regime: mínimo de 65 anos de idade e 25 anos de contribuição, ou 49 anos de trabalho contributivo para ter direito à aposentadoria integral ao fim da vida.
“A expectativa de vida no Brasil é de 75 anos, mas em mais da metade das unidades da Federação ela é menor do que isso”, alerta Fagnani. “No município de São Paulo, a esperança de vida ao nascer é de 76 anos. Nos bairros ricos, chega a 79. Em Cidade Tiradentes, é menos de 54 anos. Em uma mesma cidade você tem essa heterogeneidade. Imagine eu comparar o Piauí com Santa Catarina, são dois mundos radicalmente distintos.”
Em vez de rebater os dados e argumentos da Anfip, a turma de Temer apela ao cinismo. “Aposentadoria é subsistência. Quem quiser ter uma vida melhor, faça outro tipo de pensão”, declarou recentemente o deputado Arthur Maia (PPS-BA), relator da reforma da Previdência na Câmara.
No campo, as mudanças podem ser devastadoras. Hoje, para ter acesso ao benefício de um salário mínimo, basta o agricultor comprovar que trabalhou por 15 anos, mesmo sem ter contribuído para a seguridade. A idade mínima para pleitear a aposentadoria é de 55 anos para as mulheres e 65 anos para os homens. Diante do elevado grau de informalidade e da sazonalidade das ofertas de emprego na zona rural, é difícil imaginar que os lavradores vão contribuir por 25 anos, para gozar da aposentadoria apenas aos 65 anos de idade.
Uma nota técnica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, publicada em maio de 2016, revela a importância da aposentadoria rural para a redução da pobreza no campo. De 2005 a 2014, a proporção de brasileiros com renda familiar per capita inferior a meio salário mínimo caiu de 73,8% para 49,5%, uma redução de quase 24 pontos porcentuais. Em simulação que subtrai os repasses previdenciários, a proporção de pobres seria de 82,7% em 2005, e a taxa ficaria estacionada em 67% em 2014, queda de 16 pontos.
Em outras palavras, observam os pesquisadores Alexandre Arbex Valadares e Marcelo Galiza, “a Previdência Rural, mesmo sendo paga apenas às famílias com idosos e cobrindo algo em torno de 30% dos domicílios, contribuiu para, ao menos, um terço da redução da pobreza no campo”. O estudo do Ipea revela ainda que as famílias com ao menos um beneficiário possuem maiores taxas de frequência escolar nas faixas etárias de etapas não obrigatórias de ensino, como a pré-escola (4 a 5 anos) e a universidade (18 a 24 anos). Nos lares com aposentados, a incidência do trabalho infantil é quase 50% menor.
Além disso, mais de dois terços do valor total de benefícios rurais foram destinados a municípios com até 50 mil habitantes. Na prática, isso representou a injeção de 5,6 bilhões de reais na economia dessas pequenas cidades em janeiro de 2016. Não por acaso, os pesquisadores do Ipea enfatizam o “potencial redistributivo” da Previdência no campo.
Se hoje o Brasil tem 80% dos idosos cobertos pela seguridade, no futuro próximo esse porcentual pode cair drasticamente, semelhante ao que ocorreu no México, alerta Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social de Dilma. “A elevação da idade mínima da aposentadoria e do tempo de contribuição vai, naturalmente, jogar uma grande parcela dos idosos no Benefício de Prestação Continuada, o que já acontece com muitos cidadãos que trabalharam a maior parte da vida na informalidade”, diz. Isso não significa, porém, que os mais pobres estarão protegidos, como veremos a seguir.
O BPC é pago aos portadores de graves deficiências e aos cidadãos com mais de 65 anos que possuem renda inferior a um quarto de salário mínimo. O problema é que o governo Temer pretende aumentar para 70 anos a idade mínima para a concessão do provento. “Atualmente, o beneficiário usufrui do BPC por seis anos em média, até falecer. Com a mudança proposta por Temer, ele teria apenas um ano, embora seja improvável a sua sobrevivência sem dinheiro para comprar comida ou remédios”, lamenta Campello. “Voltaremos a ver no Brasil legiões de idosos em situação de rua, a exemplo do ocorre no México. Em qualquer cidade de lá, você se depara com idosos abandonados nas ruas”.
Campello ressalta, ainda, que o Brasil já viveu sob a égide do neoliberalismo, com retrocessos no campo social. Ela atualizou a evolução das linhas da pobreza (renda inferior a 2,5 dólares por dia) e de extrema pobreza (até 1,25 dólar por dia) para um artigo acadêmico em elaboração. O gráfico abaixo não deixa dúvidas sobre o pífio desempenho do governo FHC, entusiasta do Consenso de Washington, no combate à miséria.
A evolução da pobreza multidimensional também foi atualizada por Tereza Campello, hoje pesquisadora da Fiocruz, com base em uma metodologia proposta pelo Banco Mundial, que também considera indicadores educacionais, de saneamento, entre outros. “Só avançamos graças ao fortalecimento da rede de proteção social no Brasil, mas tudo isso está ameaçado pela excludente reforma da Previdência proposta por Temer e pelo estrangulamento de gastos com saúde, educação e assistência social devido ao congelamento dos gastos públicos por 20 anos.”
* Colaborou Miguel Martins.
Vendedor de ilusões, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, viu a realidade confrontar a pós-verdade na divulgação do PIB de 2016, com estrondosa queda de 3,6%. O que mais constrangeu a equipe econômica de Michel Temer foi, porém, a revelação dos balanços trimestrais da atividade medida pelo IBGE. Enquanto no primeiro semestre a recessão perdia fôlego, em meio ao impeachment de Dilma Rousseff, ela voltou a recrudescer com a efetivação do peemedebista no poder. Nos seis últimos meses do ano passado, a retração acumulada foi de 1,6%.
“É espelho retrovisor”, minimizou Meirelles, a apostar em um crescimento de 1% da economia até o fim de 2017, enquanto o mercado projeta 0,49%, segundo o Boletim Focus, do Banco Central. Para analistas mais sóbrios, a retomada do crescimento não passa de miragem. Infatigável na missão de semear vento, o titular da Fazenda diz vislumbrar um crescimento robusto com o avanço das reformas prometidas.
Diante da relutância de parcela expressiva dos parlamentares e da rejeição da maioria da população à elevação da idade mínima e do tempo de contribuição para a aposentadoria, segundo uma pesquisa divulgada em janeiro pelo Serviço de Proteção ao Crédito e pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas, o governo Temer apela para intimidações.
“Se a reforma da Previdência não sair, tchau, Bolsa Família”, ameaçou uma das peças publicitárias veiculadas nas redes sociais pelo PMDB, partido de Temer. Deputados resistentes à dilapidação da Seguridade Social, até pela pressão de prefeitos de suas bases, têm sido advertidos sobre a perda de cargos e regalias na administração federal. Os governistas Carlos Marun (PMDB) e Julio Lopes (PP) chegaram a sondar a Advocacia-Geral da União sobre a possibilidade de censurar, na Justiça, um estudo da Associação Nacional dos Auditores Fiscais (Anfip) a contestar o suspeitíssimo déficit da Previdência.
Ainda que as reformas previdenciária e trabalhista, além do congelamento de gastos públicos por duas décadas aprovado no fim de 2016, possam animar os agentes econômicos e atrair investimentos privados, tal receituário é incapaz de produzir crescimento aliado à inclusão. Talvez um dos mais emblemáticos exemplos seja o do México, principal laboratório das medidas propostas pelo Consenso de Washington para “estimular o crescimento na América Latina”.
Os mexicanos seguiram à risca a prescrição neoliberal: reduziram o papel do Estado na economia, promoveram drásticos cortes nos gastos públicos, privatizaram estatais, flexibilizaram as leis trabalhistas, entraram de cabeça no Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio (Nafta), hoje desprezado pelo presidente dos EUA, Donald Trump.
A reforma da Previdência mexicana remonta a 1997, quando o subfinanciado sistema de pensões com benefícios definidos foi substituído por um modelo de contas com capitalização individual. O beneficiário recebe com base apenas no que contribuiu, descontadas as taxas de administração dos fundos. Resultado: por causa da elevada informalidade do mercado de trabalho, a maioria da população economicamente ativa não contribui para o sistema, que oferece um benefício médio de 4 mil pesos mexicanos (cerca de 640 reais) aos trabalhadores do setor privado. Entre os cidadãos com mais de 65 anos, idade mínima para a aposentadoria, 77% dos idosos estão descobertos.
Quem descreve o cenário é a especialista Berenice Ramírez López, do Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam). “Em um país com um contingente tão grande de cidadãos que vivem abaixo da linha da pobreza, a escassa cobertura da Previdência e os baixos valores pagos pelos benefícios agudizam ainda mais o problema”, explica López. “A seguridade social foi desenhada para redistribuir renda, mas as distorções verificadas nas últimas décadas levaram à valorização de programas sociais focalizados e de baixo alcance, em detrimento do sistema de aposentadorias.”
Os indicadores sociais do México não deixam dúvidas sobre o legado do neoliberalismo. De 2008 a 2014, as taxas de pobreza e indigência não pararam de crescer, e chegaram a atingir 39,1% e 12,2% da população mexicana, respectivamente, segundo as medições da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), baseadas no poder de compra de uma cesta mínima de itens necessários à sobrevivência. Em trajetória inversa, o Brasil “intervencionista” de Lula e Dilma reduziu esses indicadores a menos da metade.
As movimentações da base de Temer para impedir a circulação do estudo “Previdência: Reformar para excluir?”, da Anfip, têm alguma lógica, ainda que assentada na desonestidade intelectual. O documento demole uma série de mitos relacionados à “insustentabilidade” do sistema, a começar pela própria existência de um déficit no setor.
No fim de janeiro, o governo federal anunciou um rombo de 151,9 bilhões de reais nas contas do Regime Geral da Previdência Social (RGPS), o maior da série histórica iniciada em 1995. A Anfip observa, porém, que a Constituição de 1988 prevê um modelo tripartite de financiamento do setor, segundo o qual o Estado, os empregadores e os trabalhadores contribuíam em partes iguais. O déficit, segundo a entidade, surge porque não se contabilizam tributos cobrados pelo Estado para compor a receita, como a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e a Contribuição Social para o Financiamento das Seguridade Social (Cofins), cobradas das empresas.
Para demonstrar o engodo, a Anfip analisou o suposto déficit de 85,8 bilhões de reais apurado pelo governo em 2015. O rombo, destacam os pesquisadores da entidade, “poderia ter sido coberto com parte dos 202 bilhões arrecadados pela Cofins, dos 61 bilhões coletados pela CSLL e dos 53 bilhões arrecadados pelo PIS-Pasep. Haveria ainda outros 63 bilhões capturados da Seguridade pela Desvinculação das Receitas da União e os 157 bilhões de reais de desonerações e renúncias de receitas”.
“O ‘déficit’ da Previdência é uma pedalada constitucional, uma pós-verdade, para usar um termo da moda”, afirma o economista Eduardo Fagnani, professor associado da Universidade de Campinas. “Desde 1989 não se contabiliza a parte do governo como fonte de receita da Previdência. Ao fazer isso, a União nega que a Previdência faça parte da Seguridade Social, em confronto com os artigos 194 e 195 da Constituição.”
O especialista observa, ainda, que todas as nações desenvolvidas que integram a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), sempre usadas como referência para elevar a idade mínima da aposentadoria no Brasil, também fazem aportes públicos na Previdência. Em casos extremos, como a Dinamarca, a participação estatal chega a 75,6% das receitas. “Isso corresponde a 27% do PIB dinamarquês. Se a nação escandinava fosse uma República de Bananas, eles diriam que tem um rombo de 27% do PIB.”
Outra desonestidade intelectual é usar a OCDE como parâmetro para exigir idade mínima de 65 anos para a aposentadoria nos trópicos. A expectativa de vida média dos países do bloco é de 81,2 anos, enquanto a do Brasil é de 75 anos. Não é tudo. O brasileiro tem um tempo médio de vida com saúde, sem dificuldades para realizar suas atividades cotidianas, de 65,5 anos, segundo a Organização Mundial da Saúde. Ou seja, pela reforma proposta por Temer, os cidadãos devem usufruir das aposentadorias por apenas seis meses antes de serem acometidos por doenças crônicas ou incapacitantes.
Pior: a proposta do governo ignora as desigualdades socioterritoriais e de gênero, ao igualar trabalhadores do campo e da cidade, homens e mulheres, no mesmo regime: mínimo de 65 anos de idade e 25 anos de contribuição, ou 49 anos de trabalho contributivo para ter direito à aposentadoria integral ao fim da vida.
“A expectativa de vida no Brasil é de 75 anos, mas em mais da metade das unidades da Federação ela é menor do que isso”, alerta Fagnani. “No município de São Paulo, a esperança de vida ao nascer é de 76 anos. Nos bairros ricos, chega a 79. Em Cidade Tiradentes, é menos de 54 anos. Em uma mesma cidade você tem essa heterogeneidade. Imagine eu comparar o Piauí com Santa Catarina, são dois mundos radicalmente distintos.”
Em vez de rebater os dados e argumentos da Anfip, a turma de Temer apela ao cinismo. “Aposentadoria é subsistência. Quem quiser ter uma vida melhor, faça outro tipo de pensão”, declarou recentemente o deputado Arthur Maia (PPS-BA), relator da reforma da Previdência na Câmara.
No campo, as mudanças podem ser devastadoras. Hoje, para ter acesso ao benefício de um salário mínimo, basta o agricultor comprovar que trabalhou por 15 anos, mesmo sem ter contribuído para a seguridade. A idade mínima para pleitear a aposentadoria é de 55 anos para as mulheres e 65 anos para os homens. Diante do elevado grau de informalidade e da sazonalidade das ofertas de emprego na zona rural, é difícil imaginar que os lavradores vão contribuir por 25 anos, para gozar da aposentadoria apenas aos 65 anos de idade.
Uma nota técnica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, publicada em maio de 2016, revela a importância da aposentadoria rural para a redução da pobreza no campo. De 2005 a 2014, a proporção de brasileiros com renda familiar per capita inferior a meio salário mínimo caiu de 73,8% para 49,5%, uma redução de quase 24 pontos porcentuais. Em simulação que subtrai os repasses previdenciários, a proporção de pobres seria de 82,7% em 2005, e a taxa ficaria estacionada em 67% em 2014, queda de 16 pontos.
Em outras palavras, observam os pesquisadores Alexandre Arbex Valadares e Marcelo Galiza, “a Previdência Rural, mesmo sendo paga apenas às famílias com idosos e cobrindo algo em torno de 30% dos domicílios, contribuiu para, ao menos, um terço da redução da pobreza no campo”. O estudo do Ipea revela ainda que as famílias com ao menos um beneficiário possuem maiores taxas de frequência escolar nas faixas etárias de etapas não obrigatórias de ensino, como a pré-escola (4 a 5 anos) e a universidade (18 a 24 anos). Nos lares com aposentados, a incidência do trabalho infantil é quase 50% menor.
Além disso, mais de dois terços do valor total de benefícios rurais foram destinados a municípios com até 50 mil habitantes. Na prática, isso representou a injeção de 5,6 bilhões de reais na economia dessas pequenas cidades em janeiro de 2016. Não por acaso, os pesquisadores do Ipea enfatizam o “potencial redistributivo” da Previdência no campo.
Se hoje o Brasil tem 80% dos idosos cobertos pela seguridade, no futuro próximo esse porcentual pode cair drasticamente, semelhante ao que ocorreu no México, alerta Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social de Dilma. “A elevação da idade mínima da aposentadoria e do tempo de contribuição vai, naturalmente, jogar uma grande parcela dos idosos no Benefício de Prestação Continuada, o que já acontece com muitos cidadãos que trabalharam a maior parte da vida na informalidade”, diz. Isso não significa, porém, que os mais pobres estarão protegidos, como veremos a seguir.
O BPC é pago aos portadores de graves deficiências e aos cidadãos com mais de 65 anos que possuem renda inferior a um quarto de salário mínimo. O problema é que o governo Temer pretende aumentar para 70 anos a idade mínima para a concessão do provento. “Atualmente, o beneficiário usufrui do BPC por seis anos em média, até falecer. Com a mudança proposta por Temer, ele teria apenas um ano, embora seja improvável a sua sobrevivência sem dinheiro para comprar comida ou remédios”, lamenta Campello. “Voltaremos a ver no Brasil legiões de idosos em situação de rua, a exemplo do ocorre no México. Em qualquer cidade de lá, você se depara com idosos abandonados nas ruas”.
Campello ressalta, ainda, que o Brasil já viveu sob a égide do neoliberalismo, com retrocessos no campo social. Ela atualizou a evolução das linhas da pobreza (renda inferior a 2,5 dólares por dia) e de extrema pobreza (até 1,25 dólar por dia) para um artigo acadêmico em elaboração. O gráfico abaixo não deixa dúvidas sobre o pífio desempenho do governo FHC, entusiasta do Consenso de Washington, no combate à miséria.
A evolução da pobreza multidimensional também foi atualizada por Tereza Campello, hoje pesquisadora da Fiocruz, com base em uma metodologia proposta pelo Banco Mundial, que também considera indicadores educacionais, de saneamento, entre outros. “Só avançamos graças ao fortalecimento da rede de proteção social no Brasil, mas tudo isso está ameaçado pela excludente reforma da Previdência proposta por Temer e pelo estrangulamento de gastos com saúde, educação e assistência social devido ao congelamento dos gastos públicos por 20 anos.”
* Colaborou Miguel Martins.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente: