domingo, 12 de março de 2017

Temer e o machismo institucional

Por João Paulo Cunha, no jornal Brasil de Fato:

Temer, calado, é um poeta. Possivelmente mau poeta, já que não há silêncio capaz de domar sua indisfarçável opção pelo atraso e sua retórica parnasiana. Na figura do usurpador convive um ser falho de ideias e pobre em expressão. Não tem o que dizer e, quando acha que tem, demonstra sua inépcia de forma pedante e professoral. Em momentos em que se permite falar sem o filtro de assessores, quando se sente seguro para opinar acerca de questões mais amplas, esbanja um misto de presunção e ignorância que não seria tão grave caso não tivesse consequências para o país. Temer não surpreende ao confirmar seus preconceitos, mas renova a capacidade de indignação por suas formulações.

Foi o que se observou em sua “homenagem” às mulheres, num dia marcado por lutas em todo o mundo. Na contramão da história, do bom senso e até da inteligência emocional, o presidente não eleito juntou num mesmo discurso tosco expressões como “afazeres domésticos” e “o quanto a mulher faz pela casa”, que se somavam ao reconhecimento da capacidade econômica das mulheres resumida à tarefa de acompanhar os preços nos supermercados. Num gesto de rara abrangência política, conseguiu desagradar aliados, adversários e todas as mulheres não recatadas do mundo.

No entanto, é preciso não embarcar apenas na desqualificação das palavras de Temer. Em si, elas são odiosas e risíveis, mas não se resumem ao contexto em que foram ditas nem ao aparente desvario passadista. Ele não é apenas ridículo, é pernicioso ao universo dos direitos. Não se trata de uma gafe, mas de um projeto. O governo instalado com o golpe tem em sua origem componentes machistas, misóginos e preconceituosos. Chegou ao poder desfechando um golpe contra uma mulher eleita pelo voto popular, deixando correr solta a onda de ódio de gênero que a expôs de forma abjeta. E, para não deixar dúvidas, o bando vitorioso apresentou-se desde a primeira hora em sua feição exclusivamente masculina e branca.

As conquistas na área das questões de gênero e sexualidade são um patrimônio da luta de mulheres brasileiras. Enfrentando condições de violência, os movimentos sociais foram capazes de ir além do combate necessário para firmar bases institucionais no Estado brasileiro. Leis, como a Maria da Penha e do Feminicídio, e o protagonismo em programas sociais, como Minha Casa Minha Vida, Bolsa Família e Ciência sem Fronteiras, dão conta hoje do papel das mulheres na sociedade brasileira. Enfrentamentos no mercado de trabalho, combate ao assédio, afirmação da sexualidade, entre outras iniciativas, mostram a relevância da agenda feminina e feminista.

E é nesse contexto que a explicitação do discurso de Temer exibe seu poder regressivo. Sua força capaz de arregimentar a reação, sua disposição em desqualificar as mulheres, seu empenho senhorial em dividir a sociedade entre a casa e a rua, acabam apontando repercussões institucionais perigosas. Entre elas, em meio à pauta da reforma (ou melhor, destruição) da Previdência, está a equiparação da idade mínima entre homens e mulheres para alcançar a aposentadoria. O ministro da Fazenda Henrique Meireles chegou a propor uma fórmula matemática para instituir a divisão na solidariedade que deve presidir a política de seguridade: os homens deveriam contribuir por mais tempo para equilibrar a balança pendente às mulheres.

Em documento elaborado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip), fica patente a falácia técnica do argumento e a insensibilidade política e humanitária da proposta da reforma, no que toca à desigualdade de gênero. O estudo mostra como a proposta desconsidera as condições desfavoráveis enfrentadas pelas mulheres no trabalho (em termos de oportunidades e salários) e a realidade da dupla jornada. As mulheres, na ponta do lápis, trabalham 73 dias a mais que os homens em um ano.

Além disso, explica o trabalho, o piso previdenciário afeta mais as mulheres, que são a maioria a receber benefício mínimo. Pela dificuldade de acesso à aposentadoria por tempo de contribuição (um mercado formal ainda mais restritivo), na maioria das vezes elas chegam ao benefício pela idade, o que torna o aumento do patamar mínimo duplamente desfavorável às mulheres.

Duas falácias justificariam a mudança das regras da idade mínima: a maior expectativa de vida das mulheres e o exemplo internacional. No primeiro caso, além da desumana submissão da lógica protetiva à razão atuarial, há um deslize estatístico que mascara a realidade e que é consequência de outra forma de violência invisível na sociedade brasileira: a alta taxa de mortalidade de homens jovens, sobretudo negros, em razão de causas violentas. A média de vida das mulheres é um pouco maior em razão de um genocídio, não da genética.

Em relação aos países desenvolvidos, a comparação esconde a eficácia das políticas públicas existentes, que diminuem a concentração de tarefas nas mãos das mulheres, como creches e rede de apoios e cuidados que sobrecarregam as mulheres no Brasil. E, é bom destacar, a mudança naquelas sociedades se deu de forma programada. Houve um planejamento que se alongou no tempo e foi debatido com a sociedade. Não caiu como um pacote parido por um governo ilegítimo, divulgado em forma de chantagem publicitária e levado à aprovação em um parlamento encapsulado em seus interesses, afastado da sociedade.

A destruição da previdência social vai afetar ainda mais as mulheres. O machismo como convicção pessoal, ainda que inconsciente, é ruim. O machismo institucional, traduzido em princípios reguladores, é pior ainda. Temer consegue ser péssimo nos dois lados. E, por isso, precisa ser combatido sem tréguas. É a civilização brasileira, não a paz dos lares, que está em jogo.

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