Por Antonio Martins, no site Outras Palavras:
Uma comissão especial da Câmara dos Deputados aprovou, quarta-feria à noite (3/5), a contrarreforma da Previdência proposta pelo governo Temer. A matéria ainda será levada ao plenário da Câmara e ao Senado. Mas os antecedentes da votação de ontem nos ajudam a abordar algo pouquíssimo examinado no Brasil – inclusive pelos partidos de esquerda. A velha democracia está moribunda. Seu mecanismo essencial, o sistema de representação, converteu-se numa farsa. Os supostos “representantes do povo” são hoje uma casta política, que não presta contas à sociedade e vive de favores do grande poder econômico – com a providencial cumplicidade da mídia.
No texto anterior desta série, debatemos a democracia direta – prevista como um princípio na Constituição de 1988, mas sabotada pela casta política. Agora, discutiremos a democracia representativa. As hipóteses essenciais que animam a série são as mesmas: a) a velha democracia morreu; b) abriu-se uma disjuntiva: ou seremos capazes de construir um novo sistema, muito mais aberto à participação popular e à autonomia, ou prevalecerão as ideias dos que pregam abertamente o autoritarismo e a ditadura; c) esta transformação não poderá ser liderada pelos partidos políticos – ela depende de ação da própria sociedade.
Para examinar a crise da representação, vamos partir de fatos reais, recentes e muito relevantes.
*****
Cena 1, sexta-feira. 28 de abril. 35 milhões de trabalhadores participam de uma greve geral. Eles querem exercer seu direito à participação política – uma das promessas centrais dos regimes construídos no Ocidente a partir das revoluções dos séculos XVII e XVIII. Há um ano, o presidente da República, os grandes grupos econômicos e a mídia estão tentando aprovar, no Congresso Nacional, um conjunto de medidas que jamais recebeu apoio popular. Duas destas medidas – as mal-chamadas “reformas” da Previdência e Trabalhista – ainda tramitam no Congresso Nacional. Na greve – a maior feita no país, em trinta anos – os trabalhadores pedem algo elementar na chamada “democracia”: que o Congresso, ouça a sociedade – a quem supostamente representa – antes de decidir.
Cena 2. Segunda-feira, 1º de Maio. Uma pesquisa do Datafolha dá razão ainda maior à Greve Geral. Segundo o estudo, 71% dos brasileiros rejeitam a “reforma” da Previdência – a porcentagem é ainda maior entre os jovens, as mulheres, os menos ricos economicamente e os que têm formação superior. Sobre a “reforma” trabalhista, 64% acham que visa favorecer os patrões – ou seja, os já privilegiados. Poucos dias antes, uma outra pesquisa, do Barômetro Político, havia demonstrado que apenas 4% – um recorde negativo absoluto – apoiam o governo Temer, e que 92% consideram que o país “está no rumo errado”.
Cena 3. Nesse mesmo dia, 1º de Maio, um grupo de doze homens suspeitos reúne-se no Palácio da Alvorada, em Brasília. Pelo menos dez deles são acusados, pela Operação Lava Jato, de receber propina de grandes empresas: o presidente Michel Temer; os ministros Eliseu Padilha, Moreira Franco, Antonio Imbassahy, Mendonça Filho; os deputados Rodrigo Maia, Agnaldo Ribeiro, Arthur Maia, Heráclito Fortes; e o senador Romero Jucá.
Os doze homens encontram-se para chantagear o Congresso Nacional. Eles sabem que, se houvesse democracia real – ou seja, respeito à vontade da maioria –, as “reformas” da Previdência e Trabalhista jamais seriam feitas.
Que fazem, então, os doze homens sujos? Planejam sabotar – mais uma vez – a democracia. Tentarão usar o poder que têm para obrigar os deputados e senadores a impor as contrarreformas que a grande maioria não quer. Como? Primeiro, oferecendo dinheiro. Os jornais noticiaram que o governo liberará R$ 800 milhões, do Orçamento da União, para as chamadas “emendas parlamentares”. É algo típico de corrupção. Os chamados “representantes do povo” têm o privilégio de direcionar dinheiro dos impostos para projetos em que têm interesse próprio. Pode ser a “associação beneficente” de um familiar ou amigo. Pode ser a construção de uma ponte que manterá seu próprio curral eleitoral. Temer o os outros homens suspeitos decidiram abrir a torneira.
Mas não basta. Os homens suspeitos adotarão uma medida a mais. Envolve uso dos órgãos públicos. “A caneta vai funcionar”, disse Michel Temer. Ele anuncia que presenteará, com cargos públicos, os deputados e senadores que se dispuserem a votar contra a ampla maioria da sociedade. Estes políticos poderão indicar seus amigos para gerir órgãos que deveriam prestar serviços ao povo, mas que também lidam com muito dinheiro. Já os representantes que votarem segundo o que quer a sociedade – estes terão seus amigos demitidos, diz Temer.
Para que a equação se feche, porém – ou seja, para que a democracia se reduza a uma fachada – falta um ingrediente. É a mídia. Todas estas operações corruptas não poderiam prosseguir sem que os jornais e TVs criassem uma espécie de naturalização. Eles precisam dizer que não há outra alternativa e que, portanto, é muito natural que os supostos representantes vendam seus votos, sem se preocupar com o que pensam seus “representados”.
Veja, por exemplo, esta matéria de Josias de Souza, da Folha de S.Paulo – um dos jornalistas supostamente polêmicos, pela estridência formal, mas no fundo muito bem acomodado à corrupção do sistema político. Na madrugada de 2/5, Temer relata a reunião dos doze homens suspeitos, que acabara de terminar. E aplaude a decisão de violentar a democracia. Seu texto trata como “silvérios” – ou seja, traidores — os deputados que… foram fiéis a seus eleitores, rejeitando a contrarreforma trabalhista. Pela lógica de Josias, portanto, os deputados não precisam prestar contas à sociedade. Sua relação é com os chefes – e, claro, com o grande poder econômico. Josias é emblemático, mas não é exceção. Toda a velha mídia trabalha, o tempo todo, para apresentar como naturais as operações de espancamento da democracia.
*****
Os fatos que você acaba de ver mostram a que ponto a chamada “democracia representativa” foi pervertida – e não apenas em nosso país. A Europa é um caso clássico. Nos últimos anos, todas as pesquisas revelam que as sociedades são contrárias às políticas de cortes de direitos sociais impostas pelos governos. O sistema político faz-se de surdo. E é exatamente por isso que, em revolta, parte dos cidadãos volta-se para os candidatos que propõem, como alternativa, o ódio.
Seria possível restaurar a representação? Talvez o termo não seja o melhor. Talvez uma nova representação só tenha sentido não como núcleo do sistema político, mas como uma das formas de uma democracia reinventada.
A Plataforma pela Reforma Política – uma rede de movimentos sociais brasileiros, que começou a se rearticular no final de abril – tem também um conjunto de propostas para um novo sistema de representação. Significa acabar com o sistema de casta política e criar mecanismos muito estritos de controle dos representantes pelos representados. Mecanismos que impeçam a ação dos doze homens suspeitos. Mecanismos que instaurem formas reais de autonomia popular. É o que veremos, no próximo programa da série.
Uma comissão especial da Câmara dos Deputados aprovou, quarta-feria à noite (3/5), a contrarreforma da Previdência proposta pelo governo Temer. A matéria ainda será levada ao plenário da Câmara e ao Senado. Mas os antecedentes da votação de ontem nos ajudam a abordar algo pouquíssimo examinado no Brasil – inclusive pelos partidos de esquerda. A velha democracia está moribunda. Seu mecanismo essencial, o sistema de representação, converteu-se numa farsa. Os supostos “representantes do povo” são hoje uma casta política, que não presta contas à sociedade e vive de favores do grande poder econômico – com a providencial cumplicidade da mídia.
No texto anterior desta série, debatemos a democracia direta – prevista como um princípio na Constituição de 1988, mas sabotada pela casta política. Agora, discutiremos a democracia representativa. As hipóteses essenciais que animam a série são as mesmas: a) a velha democracia morreu; b) abriu-se uma disjuntiva: ou seremos capazes de construir um novo sistema, muito mais aberto à participação popular e à autonomia, ou prevalecerão as ideias dos que pregam abertamente o autoritarismo e a ditadura; c) esta transformação não poderá ser liderada pelos partidos políticos – ela depende de ação da própria sociedade.
Para examinar a crise da representação, vamos partir de fatos reais, recentes e muito relevantes.
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Cena 1, sexta-feira. 28 de abril. 35 milhões de trabalhadores participam de uma greve geral. Eles querem exercer seu direito à participação política – uma das promessas centrais dos regimes construídos no Ocidente a partir das revoluções dos séculos XVII e XVIII. Há um ano, o presidente da República, os grandes grupos econômicos e a mídia estão tentando aprovar, no Congresso Nacional, um conjunto de medidas que jamais recebeu apoio popular. Duas destas medidas – as mal-chamadas “reformas” da Previdência e Trabalhista – ainda tramitam no Congresso Nacional. Na greve – a maior feita no país, em trinta anos – os trabalhadores pedem algo elementar na chamada “democracia”: que o Congresso, ouça a sociedade – a quem supostamente representa – antes de decidir.
Cena 2. Segunda-feira, 1º de Maio. Uma pesquisa do Datafolha dá razão ainda maior à Greve Geral. Segundo o estudo, 71% dos brasileiros rejeitam a “reforma” da Previdência – a porcentagem é ainda maior entre os jovens, as mulheres, os menos ricos economicamente e os que têm formação superior. Sobre a “reforma” trabalhista, 64% acham que visa favorecer os patrões – ou seja, os já privilegiados. Poucos dias antes, uma outra pesquisa, do Barômetro Político, havia demonstrado que apenas 4% – um recorde negativo absoluto – apoiam o governo Temer, e que 92% consideram que o país “está no rumo errado”.
Cena 3. Nesse mesmo dia, 1º de Maio, um grupo de doze homens suspeitos reúne-se no Palácio da Alvorada, em Brasília. Pelo menos dez deles são acusados, pela Operação Lava Jato, de receber propina de grandes empresas: o presidente Michel Temer; os ministros Eliseu Padilha, Moreira Franco, Antonio Imbassahy, Mendonça Filho; os deputados Rodrigo Maia, Agnaldo Ribeiro, Arthur Maia, Heráclito Fortes; e o senador Romero Jucá.
Os doze homens encontram-se para chantagear o Congresso Nacional. Eles sabem que, se houvesse democracia real – ou seja, respeito à vontade da maioria –, as “reformas” da Previdência e Trabalhista jamais seriam feitas.
Que fazem, então, os doze homens sujos? Planejam sabotar – mais uma vez – a democracia. Tentarão usar o poder que têm para obrigar os deputados e senadores a impor as contrarreformas que a grande maioria não quer. Como? Primeiro, oferecendo dinheiro. Os jornais noticiaram que o governo liberará R$ 800 milhões, do Orçamento da União, para as chamadas “emendas parlamentares”. É algo típico de corrupção. Os chamados “representantes do povo” têm o privilégio de direcionar dinheiro dos impostos para projetos em que têm interesse próprio. Pode ser a “associação beneficente” de um familiar ou amigo. Pode ser a construção de uma ponte que manterá seu próprio curral eleitoral. Temer o os outros homens suspeitos decidiram abrir a torneira.
Mas não basta. Os homens suspeitos adotarão uma medida a mais. Envolve uso dos órgãos públicos. “A caneta vai funcionar”, disse Michel Temer. Ele anuncia que presenteará, com cargos públicos, os deputados e senadores que se dispuserem a votar contra a ampla maioria da sociedade. Estes políticos poderão indicar seus amigos para gerir órgãos que deveriam prestar serviços ao povo, mas que também lidam com muito dinheiro. Já os representantes que votarem segundo o que quer a sociedade – estes terão seus amigos demitidos, diz Temer.
Para que a equação se feche, porém – ou seja, para que a democracia se reduza a uma fachada – falta um ingrediente. É a mídia. Todas estas operações corruptas não poderiam prosseguir sem que os jornais e TVs criassem uma espécie de naturalização. Eles precisam dizer que não há outra alternativa e que, portanto, é muito natural que os supostos representantes vendam seus votos, sem se preocupar com o que pensam seus “representados”.
Veja, por exemplo, esta matéria de Josias de Souza, da Folha de S.Paulo – um dos jornalistas supostamente polêmicos, pela estridência formal, mas no fundo muito bem acomodado à corrupção do sistema político. Na madrugada de 2/5, Temer relata a reunião dos doze homens suspeitos, que acabara de terminar. E aplaude a decisão de violentar a democracia. Seu texto trata como “silvérios” – ou seja, traidores — os deputados que… foram fiéis a seus eleitores, rejeitando a contrarreforma trabalhista. Pela lógica de Josias, portanto, os deputados não precisam prestar contas à sociedade. Sua relação é com os chefes – e, claro, com o grande poder econômico. Josias é emblemático, mas não é exceção. Toda a velha mídia trabalha, o tempo todo, para apresentar como naturais as operações de espancamento da democracia.
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Os fatos que você acaba de ver mostram a que ponto a chamada “democracia representativa” foi pervertida – e não apenas em nosso país. A Europa é um caso clássico. Nos últimos anos, todas as pesquisas revelam que as sociedades são contrárias às políticas de cortes de direitos sociais impostas pelos governos. O sistema político faz-se de surdo. E é exatamente por isso que, em revolta, parte dos cidadãos volta-se para os candidatos que propõem, como alternativa, o ódio.
Seria possível restaurar a representação? Talvez o termo não seja o melhor. Talvez uma nova representação só tenha sentido não como núcleo do sistema político, mas como uma das formas de uma democracia reinventada.
A Plataforma pela Reforma Política – uma rede de movimentos sociais brasileiros, que começou a se rearticular no final de abril – tem também um conjunto de propostas para um novo sistema de representação. Significa acabar com o sistema de casta política e criar mecanismos muito estritos de controle dos representantes pelos representados. Mecanismos que impeçam a ação dos doze homens suspeitos. Mecanismos que instaurem formas reais de autonomia popular. É o que veremos, no próximo programa da série.
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