Por Raphael Silva Fagundes, no site Carta Maior:
[1] DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Ebooks, 2003. p. 15. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/socespetaculo.pdf
O espetáculo, socialmente encarado, “não é um complemento ao mundo real, um adereço decorativo. É o coração da irrealidade da sociedade real”.[1] Trata-se de um fenômeno essencial no processo de manipulação que visa, por sua vez, monopolizar a nossa interpretação da realidade. Vivemos em um momento em que o espetáculo midiático se apodera desse axioma e alimenta a divisão entre “petralhas” e “coxinhas”, escondendo, propositalmente, o verdadeiro conflito: a luta de classes.
Contudo, o objetivo não é a divergência, embora pareça em primeira análise, mas o consenso, porque tanto o espetáculo quanto a retórica são instrumentos de unificação. O que se quer é fazer com que todos se convençam de que o verdadeiro conflito está entre esses dois grupos.
A rádio CBN, a folha de São Paulo, o Globo não deixam de observar tudo como um mero fla-flu. O famoso jornalista Ancelmo Gois, deu um grande destaque para o novo DVD do capixaba Gustavo Macacko que tem uma música que se trata de um romance entre uma coxinha e um petralha.[2] O mesmo jornalista anunciou um debate no Rio entre “coxinhas” e “mortadelas”.[3] As capas de jornais não cansam de colocar o ex-presidente Lula e o juiz Sérgio Moro em um ringue, dando a entender que há um conflito acirrado.
Mas isso é um embuste retórico. Noam Chomsky definiu de fato a verdadeira questão que foi destrinchada por Marx desde o Manifesto Comunista de 1848: "Há muitas divisões na sociedade atual - religiosa, de todo tipo. Mas a divisão fundamental é a divisão de classes, e uma das razões para a raiva que vemos hoje no mundo se dá porque nenhuma instituição e nenhum partido político está realmente representando os interesses da classe que representa grande parte da força de trabalho”.[4]
A grande mídia, a serviço das grandes corporações, alimenta a desunião com suas piadas e imagens descontraídas criando um grande espetáculo e, consequentemente, vendendo uma imensa quantidade de notícias. Em seguida, fomenta uma retórica da unidade. É a velha tática do dividir para conquistar. O discurso aparentemente neutro tentará reunir novamente os brasileiros. E como ele será criado?
Para o brasileiro comum, política é resumida em uma única palavra, “corrupção”. As classes dominantes sempre utilizaram do argumento da corrupção para conduzir a política do país. O célebre historiador José Murilo de Carvalho começa o seu artigo sobre a história da corrupção brasileira destacando:
Os republicanos da propaganda acusavam o sistema imperial de corrupto e despótico. Os revolucionários de 1930 acusavam a Primeira República e seus políticos de carcomidos. Getúlio Vargas foi derrubado em 1954 sob a acusação de ter criado um mar de lama no Catete. O golpe de 1964 foi dado em nome da luta contra a subversão e a corrupção. A ditadura militar chegou ao fim sob acusações de corrupção, despotismo, desrespeito pela coisa pública. Após a redemocratização, Fernando Collor foi eleito em 1989 com a promessa de caça aos marajás e foi expulso do poder por fazer o que condenou.[5]
Não há motivos para se abandonar uma fórmula que sempre deu certo. Aliás, a comunicação “só tem êxito ao suscitar e ressuscitar experiências singulares, isto é, socialmente marcadas; isso é evidente no caso limite em que se trata de transmitir emoções”.[6] E nada suscita mais ódio no povo, quando se trata de política, que a corrupção.
Em uma pesquisa realizada em 2014, 67% dos brasileiros acreditam que a crise é oriunda da corrupção.[7] Não acredito que essa porcentagem tenha diminuído, muito pelo contrário. Para o cidadão comum, o fim da corrupção resolverá todos os problemas sociais que o aflige. Desta forma, é necessário criar um alvo, um mal, um progenitor da corrupção, incitando a opinião pública a extirpar essa perversão. É o “sonho de pureza” no qual se torna indispensável a demonização de alguém.[8]
As peças que as elites outrora usaram para se fortalecer são agora ascos, de modo que outros indivíduos são necessários para ocupar o trono da política. A burguesia sacrifica até mesmo os seus próprios lacaios difamados, como vimos na repercussão do áudio bombástico de Aécio Neves e das conversas de Michel Temer. A Rede Globo, grande emissora que publicou em primeira mão as conversas suspeitas de Temer, conseguiu, de certa forma, unir novamente a população. Nesse clima, artistas de “direita” e “esquerda” se juntam na casa da mulher de Caetano Veloso e formam o grupo “Temer Jamais”: “numa noite ‘superdemocrática’ [onde] as divergências foram poucas”.[9]
Após a “limpeza”, as elites usarão “novos” políticos, supostamente não envolvidos na corrupção, para poder adotar as medidas que desejam. Sem corruptos, tudo passa a ser justo. Deste modo, será possível conduzir a política de privatização da educação e dos hospitais, alterar as leis trabalhistas para favorecer o capital, pôr fim a diversos projetos sociais ou entregá-los a empresas que ficarão isentas de impostos etc. As reformas impopulares atreladas à imagem de políticos corruptos, com imensas dificuldades de serem aprovadas e aceitadas, serão dissociadas dos líderes impopulares ampliando, assim, sua anuência. O jornalista da Globonews, Alberto Sardenberg, deixa isso bem claro: “Agora é encontrar logo um novo presidente, para fazer exatamente a mesma coisa que Temer fazia — sem os encontros com Joesley”.[10]
É lógico que ser a favor da corrupção seria ridículo, dizer que não houve corrupção no governo PT também, todavia, a questão é que as investigações que estão sendo realizadas no Brasil não objetivam combater a corrupção, mas deturpar o conflito de classes, criando uma divisão viciada entre os que defendem a Lava-Jato (supostamente contrários à corrupção) e os que defendem o PT (supostamente os que não conseguem enxergar a corrupção promovida pelo partido que levou o país à crise) que, para uma ala da direita, é um partido tão podre quanto o PSDB.
Essa divisão é uma invenção dos próprios gestores do poder (o grande capital) e que, por sua vez, atende aos seus interesses. Enquanto o argumento pragmático se esfacela, aquele que apreciava a saída do PT consoante suas consequências favoráveis, é investido intensamente em outros temas capazes de incitar as massas, conduzir sua ira, tornando-as cegas mais uma vez às lutas de classe, à causa real que a embrutece, ao único conflito que de fato pode transformar a História.
Está mais do que evidente que Lula sofre uma perseguição inaudita em toda a História desse país, pois as elites querem pôr fim ao modelo político que ele representa, isto é, a conciliação de classes, modelo que já não serve mais para elas. Contudo, as esquerdas não devem resumir a sua luta ao ingênuo desejo do retorno do ex-presidente. Isso dá ainda mais fôlego ao espetáculo midiático. Como disse o secretário geral do Partido Comunista Brasileiro, Edmilson Costa, “a aposta deve ser feita na luta de massas, na mudança da correlação de forças, na derrubada do governo, com a colocação dos corruptos na cadeia, confisco de seus bens e a conquista de um governo que baseado nos interesses populares”.[11]
Notas:
Contudo, o objetivo não é a divergência, embora pareça em primeira análise, mas o consenso, porque tanto o espetáculo quanto a retórica são instrumentos de unificação. O que se quer é fazer com que todos se convençam de que o verdadeiro conflito está entre esses dois grupos.
A rádio CBN, a folha de São Paulo, o Globo não deixam de observar tudo como um mero fla-flu. O famoso jornalista Ancelmo Gois, deu um grande destaque para o novo DVD do capixaba Gustavo Macacko que tem uma música que se trata de um romance entre uma coxinha e um petralha.[2] O mesmo jornalista anunciou um debate no Rio entre “coxinhas” e “mortadelas”.[3] As capas de jornais não cansam de colocar o ex-presidente Lula e o juiz Sérgio Moro em um ringue, dando a entender que há um conflito acirrado.
Mas isso é um embuste retórico. Noam Chomsky definiu de fato a verdadeira questão que foi destrinchada por Marx desde o Manifesto Comunista de 1848: "Há muitas divisões na sociedade atual - religiosa, de todo tipo. Mas a divisão fundamental é a divisão de classes, e uma das razões para a raiva que vemos hoje no mundo se dá porque nenhuma instituição e nenhum partido político está realmente representando os interesses da classe que representa grande parte da força de trabalho”.[4]
A grande mídia, a serviço das grandes corporações, alimenta a desunião com suas piadas e imagens descontraídas criando um grande espetáculo e, consequentemente, vendendo uma imensa quantidade de notícias. Em seguida, fomenta uma retórica da unidade. É a velha tática do dividir para conquistar. O discurso aparentemente neutro tentará reunir novamente os brasileiros. E como ele será criado?
Para o brasileiro comum, política é resumida em uma única palavra, “corrupção”. As classes dominantes sempre utilizaram do argumento da corrupção para conduzir a política do país. O célebre historiador José Murilo de Carvalho começa o seu artigo sobre a história da corrupção brasileira destacando:
Os republicanos da propaganda acusavam o sistema imperial de corrupto e despótico. Os revolucionários de 1930 acusavam a Primeira República e seus políticos de carcomidos. Getúlio Vargas foi derrubado em 1954 sob a acusação de ter criado um mar de lama no Catete. O golpe de 1964 foi dado em nome da luta contra a subversão e a corrupção. A ditadura militar chegou ao fim sob acusações de corrupção, despotismo, desrespeito pela coisa pública. Após a redemocratização, Fernando Collor foi eleito em 1989 com a promessa de caça aos marajás e foi expulso do poder por fazer o que condenou.[5]
Não há motivos para se abandonar uma fórmula que sempre deu certo. Aliás, a comunicação “só tem êxito ao suscitar e ressuscitar experiências singulares, isto é, socialmente marcadas; isso é evidente no caso limite em que se trata de transmitir emoções”.[6] E nada suscita mais ódio no povo, quando se trata de política, que a corrupção.
Em uma pesquisa realizada em 2014, 67% dos brasileiros acreditam que a crise é oriunda da corrupção.[7] Não acredito que essa porcentagem tenha diminuído, muito pelo contrário. Para o cidadão comum, o fim da corrupção resolverá todos os problemas sociais que o aflige. Desta forma, é necessário criar um alvo, um mal, um progenitor da corrupção, incitando a opinião pública a extirpar essa perversão. É o “sonho de pureza” no qual se torna indispensável a demonização de alguém.[8]
As peças que as elites outrora usaram para se fortalecer são agora ascos, de modo que outros indivíduos são necessários para ocupar o trono da política. A burguesia sacrifica até mesmo os seus próprios lacaios difamados, como vimos na repercussão do áudio bombástico de Aécio Neves e das conversas de Michel Temer. A Rede Globo, grande emissora que publicou em primeira mão as conversas suspeitas de Temer, conseguiu, de certa forma, unir novamente a população. Nesse clima, artistas de “direita” e “esquerda” se juntam na casa da mulher de Caetano Veloso e formam o grupo “Temer Jamais”: “numa noite ‘superdemocrática’ [onde] as divergências foram poucas”.[9]
Após a “limpeza”, as elites usarão “novos” políticos, supostamente não envolvidos na corrupção, para poder adotar as medidas que desejam. Sem corruptos, tudo passa a ser justo. Deste modo, será possível conduzir a política de privatização da educação e dos hospitais, alterar as leis trabalhistas para favorecer o capital, pôr fim a diversos projetos sociais ou entregá-los a empresas que ficarão isentas de impostos etc. As reformas impopulares atreladas à imagem de políticos corruptos, com imensas dificuldades de serem aprovadas e aceitadas, serão dissociadas dos líderes impopulares ampliando, assim, sua anuência. O jornalista da Globonews, Alberto Sardenberg, deixa isso bem claro: “Agora é encontrar logo um novo presidente, para fazer exatamente a mesma coisa que Temer fazia — sem os encontros com Joesley”.[10]
É lógico que ser a favor da corrupção seria ridículo, dizer que não houve corrupção no governo PT também, todavia, a questão é que as investigações que estão sendo realizadas no Brasil não objetivam combater a corrupção, mas deturpar o conflito de classes, criando uma divisão viciada entre os que defendem a Lava-Jato (supostamente contrários à corrupção) e os que defendem o PT (supostamente os que não conseguem enxergar a corrupção promovida pelo partido que levou o país à crise) que, para uma ala da direita, é um partido tão podre quanto o PSDB.
Essa divisão é uma invenção dos próprios gestores do poder (o grande capital) e que, por sua vez, atende aos seus interesses. Enquanto o argumento pragmático se esfacela, aquele que apreciava a saída do PT consoante suas consequências favoráveis, é investido intensamente em outros temas capazes de incitar as massas, conduzir sua ira, tornando-as cegas mais uma vez às lutas de classe, à causa real que a embrutece, ao único conflito que de fato pode transformar a História.
Está mais do que evidente que Lula sofre uma perseguição inaudita em toda a História desse país, pois as elites querem pôr fim ao modelo político que ele representa, isto é, a conciliação de classes, modelo que já não serve mais para elas. Contudo, as esquerdas não devem resumir a sua luta ao ingênuo desejo do retorno do ex-presidente. Isso dá ainda mais fôlego ao espetáculo midiático. Como disse o secretário geral do Partido Comunista Brasileiro, Edmilson Costa, “a aposta deve ser feita na luta de massas, na mudança da correlação de forças, na derrubada do governo, com a colocação dos corruptos na cadeia, confisco de seus bens e a conquista de um governo que baseado nos interesses populares”.[11]
Notas:
[1] DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Ebooks, 2003. p. 15. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/socespetaculo.pdf
[2] http://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/compositor-lanca-musica-sobre-um-romance-entre-uma-coxinha-e-um-petralha.html
[3] GOIS, Ancelmo. Rio terá debate entre artistas “coxinhas” e “mortadelas”. Disponível em: http://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/rio-tera-debate-entre-artistas-coxinhas-e-mortadelas.html. Acesso: 27 de maio de 2017.
[4] http://www.bbc.com/portuguese/internacional-39901537
[5] CARVALHO, José Murilo. Passado, presente e futuro da corrupção brasileira. AVRITZER, Leonardo et. al. Corrupção: ensaios e críticas. 2 ed. Belo Horizonte: EdUFMG, 2012. p. 200.
[6] BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Linguísticas: o que falar quer dizer. 2 ed. São Paulo: Edusp, 2008. p. 25.
[7] http://www.sbt.com.br/jornalismo/jornaldosbt/noticias/70863/Maioria-dos-brasileiros-considera-a-corrupcao-a-principal-causa-da-crise.html
[8] BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 13.
[9] Artistas de “direita” e “esquerda” se juntam na casa da mulher de Caetano Veloso e formam o
grupo “Temer Jamais”. Disponível em: http://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/artistas-de-direita-e-esquerda-se-juntam-na-casa-da-mulher-de-caetano-veloso-e-formam-o-grupo-temer-jamais/
[10] Sardenberg reconhece que Temer já não serve mais para nada. Disponível em: https://www.brasil247.com/pt/247/economia/297616/Sardenberg-reconhece-que-Temer-j%C3%A1-n%C3%A3o-serve-mais-para-nada.htm
[11] https://pcb.org.br/portal2/14391
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