Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
No momento em que escrevo estas mal traçadas linhas, para usar uma expressão anterior ao computador e a internet, a absolvição da chapa Dilma-Temer é o resultado mais provável no julgamento do TSE.
Tão provável que dois dias atrás foi possível antecipar o resultado, ainda que num placar mais dilatado. Escrevi 5 votos a 2. Desde ontem tudo indica que o resultado final deve ser 4 a 3.
O significado desse resultado não deve exagerado nem confundido com aquilo que não é.
Do ponto de vista político, eu acho positivo que, um ano depois de seu afastamento pela Câmara, num irresponsável impeachment sem crime de responsabilidade, a memória de Dilma e da herança política que representa possa ser resgatada, ainda que parcialmente, pelo TSE.
Basta imaginar o massacre injusto dos adversários políticos, no qual a sentença do TSE seria apresentada como uma confirmação da decisão vergonhosa do Congresso, para se avaliar o impacto de uma segunda condenação. Não custa sublinhar. Condenada por um plenário de investigados notórios, desta vez Dilma teria sido condenada pela Justiça, numa acusação à qual se pretendeu atribuir um caráter criminal que não foi demonstrado no impeachment.
O pano de fundo é evidente: usar uma condenação dessa natureza para sustentar a visão de que a vitória de Dilma não foi produto de uma decisão do eleitor -- mas de uma manipulação comprada a dinheiro. Nada mais útil para quem tem necessidade de desmoralizar a soberania popular, artigo 1 da Constituição.
Mas podemos lamentar que o preço de uma decisão correta tenha sido preservar o mandato de Michel Temer, responsável por um flagelo que representa uma ameaça constante ao Brasil e aos brasileiros. Necessário e legítimo do ponto de vista dos interesses da maioria da população, ameaçada por reformas que pretendem conduzir o país à Idade da Pedra, o afastamento de Temer seria apressado por uma decisão do TSE, queimando uma etapa num processo que leva a sua substituição, indispensável, por um presidente escolhido em urna.
Doze anos depois da AP 470, após três anos intensivos de Lava Jato, chegamos a um período histórico em que a judicialização de nossa vida pública atingiu seu ponto absoluto e a Justiça transformou-se em Política.
Não se trata da velha noção de que as decisões num tribunal superior sempre têm um componente político. Isso ocorre nos Estados Unidos, na Argentina, na França. Estamos falando de um mundo estranho e perigoso, onde a politização atingiu um nível de 100%. É o mundo da loucura dentro da loucura.
Aqui, o preço do certo é o errado.
Em uma década e meia, o mundo das instituições brasileiras deu uma volta, completou um trajeto previsível.
O Congresso derreteu. Numa desmoralização que atingiu um ponto sem retorno, típico de fim de carreira, sua maioria dedica-se a pagar as contas aos patrocinadores, sem a menor preocupação diante da repulsa inevitável do eleitorado. Ocupada por um ex-deputado que encarna todos os efeitos apontados em nossos parlamentares e é incapaz de entender o mal-estar que provoca na sociedade quando fala que resolveu instituir o semi parlamentarismo em Brasília, a presidência da República é alvejada com persistência e fúria pelo Ministério Público e pela Polícia Federal.
Responsável político e moral moral pela tragédia, a Globo garante o circo para quem já não encontra pão. Torce pela queda de Temer -- num processo controlado, indireto -- no qual as reformas estejam garantidas.
A Justiça também mudou de lugar. Foi em 2008 que Eros Grau, então ministro do Supremo, fez uma advertência célebre: "Pior que a ditadura das fardas é a das togas, pelo credito de que dispõe na sociedade. " Referindo-se ao papel do Judiciário nessa circunstância, de ameaça de ditadura, o ministro recomendou prudência e comedimento: "a nós cabe, no entanto, o dever de exercer com sabedoria nosso poder e impedi-la."
Em 2017, o Judiciário deixou de atuar como responsável pela segurança jurídica de 204 milhões de brasileiros, conforme regras de uma Constituição escrita num momento que -- com em doses generosas de romantismo e auto indulgência -- costuma ser descrito como um encontro de uma nação com ela mesma. Até por isso, deveria ter gerado frutos que deveriam ser duradouros, sólidos. Pelo contrário, tornou-se volúvel, mutante, líquida -- traço típico de forças que se movem de acordo com os sabores do vento da conjuntura. Hoje, não há como negar. A Constituição chamada Cidadã por Uliysses Guimarães, pela importância angular do artigo 5, que trata exatamente dos direitos individuais, tornou-se um velho retrato na parede.
A peça chave do julgamento foi Gilmar Mendes, o ministro que, desde a contagem dos votos, em outubro de 2014, foi o elemento fundamental para engrossar o caldo das investigações contra a chapa Dilma-Temer. Sem ele, as contas da campanha teriam sido aprovadas sem ressalvas em dezembro de 2014 e os derrotados nas urnas -- sob liderança de Aécio Neves -- não teriam sido capazes de iniciar o massacre de Dilma antes do início do segundo mandato.
Também foi Gilmar que, em março de 2015, derrubou um parecer da relatora Maria Tereza Moura que pedia arquivamento de denúncias contra a chapa. Construindo uma nova maioria no tribunal, ele assumiu as rédeas do caso.
O rastreamento de todas as iniciativas judiciais e políticas que levaram ao impeachment coloca o TSE como a primeira estação geradora. O Tribunal de Contas da União fez o segundo movimento com a lenda das "pedaladas fiscais", exercício contábil que jamais teve caráter criminoso, cabendo ao Congresso encaminhar o golpe final.
Depois de cumprir esse papel decisivo, num movimento que permitiu colocar um governo eleito por 54,4 milhões de votos na defensiva antes mesmo da posse, Gilmar atravessou o julgamento como a principal voz em defesa da absolvição da chapa Dilma-Temer.
Indispensável para quem queria emparedar o governo eleito em 2014, ocupou um papel idêntico -- com o sinal trocado -- nos três dias do julgamento. Essa contradição, comprovada por inúmeras intervenções gravadas inclusive em vídeo, foi o grande trunfo do relator Herman Benjamin, que teve uma atuação cuja competência é reconhecida mesmo por quem discorda de seus argumentos e denuncia uma postura de inquisidor em vez de juiz. O Santo Ofício da Inquisição, como se sabe, era um tribunal sempre aberto a novas denuncias, que se prolongaram por mais de século, encerrando-se quando as potências ibéricas de Portugal e Espanha haviam se transformado em regiões retardatárias e subjugadas da Europa. Atuando com a verdade sempre dura dos arquivos, Herman Benjamin conseguiu manter um ambiente de tensão e disputa até o final.
O jornalista Fernando Rodrigues explica a mudança súbita de Gilmar por uma acerto político. Ao defender a chapa, estaria construindo seu próprio cacife político para ocupar o Planalto quando o Temerário fosse despachado para casa em função de denúncias cada vez mais graves contra ele. Não tenho como confirmar essa visão. Mas acho razoável perguntar: por que duvidar?
A bússola política de Gilmar tem o PSDB como referência pessoal, política e ideológica. Mas os grandes caciques de um passado recente, Aécio Neves e José Serra, encontram-se, hoje, em posição de risco comparável à de Adhemar de Barros, Carlos Lacerda e outros comensais do golpe de 64.
Depois que os adversários fundamentais -- João Goulart, Leonel Brizola, Miguel Arraes, Luiz Carlos Prestes -- foram dizimados, a ditadura promoveu a caça a quem não estava perfeitamente alinhado aos novos tempos.
No mundo onde a justiça se transforma em política, águas de poderes que deveriam estar separados se misturam, abrindo novos caminhos para um estado de exceção.
É nesse ambiente que se pretende operar a substituição de Temer, onde Gilmar pode ser apresentado como homem do acordo, que muitos falam mas ninguém esclarece o que vem a ser.
Não se deve ignorar, desse ponto de vista, a importância de sua decisão como conceder o habeas corpus a um personagem real e simbólico como José Dirceu. Tão acertada, do ponto de vista jurídico, que poderia ter sido antecipada em instâncias inferiores do Judiciário, a medida tem um valor especial, como moeda política.
Do ponto de vista de quem foi colocado no labirinto da pós-democracia, o pacto possível é Fora Temer, Diretas Já.
No momento em que escrevo estas mal traçadas linhas, para usar uma expressão anterior ao computador e a internet, a absolvição da chapa Dilma-Temer é o resultado mais provável no julgamento do TSE.
Tão provável que dois dias atrás foi possível antecipar o resultado, ainda que num placar mais dilatado. Escrevi 5 votos a 2. Desde ontem tudo indica que o resultado final deve ser 4 a 3.
O significado desse resultado não deve exagerado nem confundido com aquilo que não é.
Do ponto de vista político, eu acho positivo que, um ano depois de seu afastamento pela Câmara, num irresponsável impeachment sem crime de responsabilidade, a memória de Dilma e da herança política que representa possa ser resgatada, ainda que parcialmente, pelo TSE.
Basta imaginar o massacre injusto dos adversários políticos, no qual a sentença do TSE seria apresentada como uma confirmação da decisão vergonhosa do Congresso, para se avaliar o impacto de uma segunda condenação. Não custa sublinhar. Condenada por um plenário de investigados notórios, desta vez Dilma teria sido condenada pela Justiça, numa acusação à qual se pretendeu atribuir um caráter criminal que não foi demonstrado no impeachment.
O pano de fundo é evidente: usar uma condenação dessa natureza para sustentar a visão de que a vitória de Dilma não foi produto de uma decisão do eleitor -- mas de uma manipulação comprada a dinheiro. Nada mais útil para quem tem necessidade de desmoralizar a soberania popular, artigo 1 da Constituição.
Mas podemos lamentar que o preço de uma decisão correta tenha sido preservar o mandato de Michel Temer, responsável por um flagelo que representa uma ameaça constante ao Brasil e aos brasileiros. Necessário e legítimo do ponto de vista dos interesses da maioria da população, ameaçada por reformas que pretendem conduzir o país à Idade da Pedra, o afastamento de Temer seria apressado por uma decisão do TSE, queimando uma etapa num processo que leva a sua substituição, indispensável, por um presidente escolhido em urna.
Doze anos depois da AP 470, após três anos intensivos de Lava Jato, chegamos a um período histórico em que a judicialização de nossa vida pública atingiu seu ponto absoluto e a Justiça transformou-se em Política.
Não se trata da velha noção de que as decisões num tribunal superior sempre têm um componente político. Isso ocorre nos Estados Unidos, na Argentina, na França. Estamos falando de um mundo estranho e perigoso, onde a politização atingiu um nível de 100%. É o mundo da loucura dentro da loucura.
Aqui, o preço do certo é o errado.
Em uma década e meia, o mundo das instituições brasileiras deu uma volta, completou um trajeto previsível.
O Congresso derreteu. Numa desmoralização que atingiu um ponto sem retorno, típico de fim de carreira, sua maioria dedica-se a pagar as contas aos patrocinadores, sem a menor preocupação diante da repulsa inevitável do eleitorado. Ocupada por um ex-deputado que encarna todos os efeitos apontados em nossos parlamentares e é incapaz de entender o mal-estar que provoca na sociedade quando fala que resolveu instituir o semi parlamentarismo em Brasília, a presidência da República é alvejada com persistência e fúria pelo Ministério Público e pela Polícia Federal.
Responsável político e moral moral pela tragédia, a Globo garante o circo para quem já não encontra pão. Torce pela queda de Temer -- num processo controlado, indireto -- no qual as reformas estejam garantidas.
A Justiça também mudou de lugar. Foi em 2008 que Eros Grau, então ministro do Supremo, fez uma advertência célebre: "Pior que a ditadura das fardas é a das togas, pelo credito de que dispõe na sociedade. " Referindo-se ao papel do Judiciário nessa circunstância, de ameaça de ditadura, o ministro recomendou prudência e comedimento: "a nós cabe, no entanto, o dever de exercer com sabedoria nosso poder e impedi-la."
Em 2017, o Judiciário deixou de atuar como responsável pela segurança jurídica de 204 milhões de brasileiros, conforme regras de uma Constituição escrita num momento que -- com em doses generosas de romantismo e auto indulgência -- costuma ser descrito como um encontro de uma nação com ela mesma. Até por isso, deveria ter gerado frutos que deveriam ser duradouros, sólidos. Pelo contrário, tornou-se volúvel, mutante, líquida -- traço típico de forças que se movem de acordo com os sabores do vento da conjuntura. Hoje, não há como negar. A Constituição chamada Cidadã por Uliysses Guimarães, pela importância angular do artigo 5, que trata exatamente dos direitos individuais, tornou-se um velho retrato na parede.
A peça chave do julgamento foi Gilmar Mendes, o ministro que, desde a contagem dos votos, em outubro de 2014, foi o elemento fundamental para engrossar o caldo das investigações contra a chapa Dilma-Temer. Sem ele, as contas da campanha teriam sido aprovadas sem ressalvas em dezembro de 2014 e os derrotados nas urnas -- sob liderança de Aécio Neves -- não teriam sido capazes de iniciar o massacre de Dilma antes do início do segundo mandato.
Também foi Gilmar que, em março de 2015, derrubou um parecer da relatora Maria Tereza Moura que pedia arquivamento de denúncias contra a chapa. Construindo uma nova maioria no tribunal, ele assumiu as rédeas do caso.
O rastreamento de todas as iniciativas judiciais e políticas que levaram ao impeachment coloca o TSE como a primeira estação geradora. O Tribunal de Contas da União fez o segundo movimento com a lenda das "pedaladas fiscais", exercício contábil que jamais teve caráter criminoso, cabendo ao Congresso encaminhar o golpe final.
Depois de cumprir esse papel decisivo, num movimento que permitiu colocar um governo eleito por 54,4 milhões de votos na defensiva antes mesmo da posse, Gilmar atravessou o julgamento como a principal voz em defesa da absolvição da chapa Dilma-Temer.
Indispensável para quem queria emparedar o governo eleito em 2014, ocupou um papel idêntico -- com o sinal trocado -- nos três dias do julgamento. Essa contradição, comprovada por inúmeras intervenções gravadas inclusive em vídeo, foi o grande trunfo do relator Herman Benjamin, que teve uma atuação cuja competência é reconhecida mesmo por quem discorda de seus argumentos e denuncia uma postura de inquisidor em vez de juiz. O Santo Ofício da Inquisição, como se sabe, era um tribunal sempre aberto a novas denuncias, que se prolongaram por mais de século, encerrando-se quando as potências ibéricas de Portugal e Espanha haviam se transformado em regiões retardatárias e subjugadas da Europa. Atuando com a verdade sempre dura dos arquivos, Herman Benjamin conseguiu manter um ambiente de tensão e disputa até o final.
O jornalista Fernando Rodrigues explica a mudança súbita de Gilmar por uma acerto político. Ao defender a chapa, estaria construindo seu próprio cacife político para ocupar o Planalto quando o Temerário fosse despachado para casa em função de denúncias cada vez mais graves contra ele. Não tenho como confirmar essa visão. Mas acho razoável perguntar: por que duvidar?
A bússola política de Gilmar tem o PSDB como referência pessoal, política e ideológica. Mas os grandes caciques de um passado recente, Aécio Neves e José Serra, encontram-se, hoje, em posição de risco comparável à de Adhemar de Barros, Carlos Lacerda e outros comensais do golpe de 64.
Depois que os adversários fundamentais -- João Goulart, Leonel Brizola, Miguel Arraes, Luiz Carlos Prestes -- foram dizimados, a ditadura promoveu a caça a quem não estava perfeitamente alinhado aos novos tempos.
No mundo onde a justiça se transforma em política, águas de poderes que deveriam estar separados se misturam, abrindo novos caminhos para um estado de exceção.
É nesse ambiente que se pretende operar a substituição de Temer, onde Gilmar pode ser apresentado como homem do acordo, que muitos falam mas ninguém esclarece o que vem a ser.
Não se deve ignorar, desse ponto de vista, a importância de sua decisão como conceder o habeas corpus a um personagem real e simbólico como José Dirceu. Tão acertada, do ponto de vista jurídico, que poderia ter sido antecipada em instâncias inferiores do Judiciário, a medida tem um valor especial, como moeda política.
Do ponto de vista de quem foi colocado no labirinto da pós-democracia, o pacto possível é Fora Temer, Diretas Já.
Pobre democracia a nossa.Realmente a Constituição cidadã "velho retrato na parede", vilipendiada, desrespeitada,violentada e enxovalhada, não eh mais garantia para os brasileiros.O circo ridículo do TSE mostrou isto. A hipocrisia daqueles pretensos juízes foi demais. Foi um julgamento em que o povo não tinha lado.Era fugir do espeto e cair na brasa. Qualquer dos lados era ruim. Os 4 juízes que votaram pela absolvição so queriam proteger Temer e os 3 que votaram pela cassação só queriam fazer discurso de falso moralismo. E a Constituição era invocada pelos dois lados
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