Por Paulo Kliass, no site Carta Maior:
“... a dor da gente não sai no jornal ...” (Chico Buarque)
“... presenteia os ricos e cospe nos pobres ...” (Garotos Podres)
A sociedade brasileira é muitas vezes apresentada como uma experiência “encantadora” do ponto de vista das relações sociais, em razão de uma suposta capacidade de convivência de opostos em algum grau de harmonia. Sem dúvida por aqui existe uma tendência que busca a acomodação de conflitos, ao invés do enfrentamento da diferença. Essa característica de incorporar tensões quase sempre inconciliáveis e de não explicitar as contradições pode até mesmo provocar enfermidades e deformações no tecido social.
Esse movimento recorrente de se buscar a saída pela via da conciliação e a recusa em encarar a dureza da oposição entre fatores pode até evitar soluções duras para crises profundas, mas não resolve a essência das dificuldades estruturais. Essa talvez seja uma das maneiras para se compreender as razões que adiam as manifestações generalizadas contra um determinado status quo evidentemente insustentável.
A recente divulgação de informações estatísticas constantes no “Atlas da Violência - 2017” nos permite avaliar um pouco mais desse fenômeno muitas vezes indecifrável que nos acomete como país. A pesquisa recente realizada em parceria pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) traz à tona informações que a grande maioria de nossos cidadãos já conhecemos muito bem. O Brasil vive uma situação de guerra permanente há muitos anos, várias décadas. Trata-se de um verdadeiro conflito armado constante e cotidiano, onde o número de vítimas é impressionantemente mais elevado do que a maioria das disputas bélicas espalhadas pelo globo.
Naturalização da violência
“... presenteia os ricos e cospe nos pobres ...” (Garotos Podres)
A sociedade brasileira é muitas vezes apresentada como uma experiência “encantadora” do ponto de vista das relações sociais, em razão de uma suposta capacidade de convivência de opostos em algum grau de harmonia. Sem dúvida por aqui existe uma tendência que busca a acomodação de conflitos, ao invés do enfrentamento da diferença. Essa característica de incorporar tensões quase sempre inconciliáveis e de não explicitar as contradições pode até mesmo provocar enfermidades e deformações no tecido social.
Esse movimento recorrente de se buscar a saída pela via da conciliação e a recusa em encarar a dureza da oposição entre fatores pode até evitar soluções duras para crises profundas, mas não resolve a essência das dificuldades estruturais. Essa talvez seja uma das maneiras para se compreender as razões que adiam as manifestações generalizadas contra um determinado status quo evidentemente insustentável.
A recente divulgação de informações estatísticas constantes no “Atlas da Violência - 2017” nos permite avaliar um pouco mais desse fenômeno muitas vezes indecifrável que nos acomete como país. A pesquisa recente realizada em parceria pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) traz à tona informações que a grande maioria de nossos cidadãos já conhecemos muito bem. O Brasil vive uma situação de guerra permanente há muitos anos, várias décadas. Trata-se de um verdadeiro conflito armado constante e cotidiano, onde o número de vítimas é impressionantemente mais elevado do que a maioria das disputas bélicas espalhadas pelo globo.
Naturalização da violência
Apenas ao longo de 2015 ocorreram mais de 50 mil homicídios em nossa sociedade. São números avassaladores, com graves consequências nos domínios do econômico, do social, do jurídico, do cultural, entre tantos outros aspectos. A observação mais detalhada nos revela ainda que a grande maioria se concentra nas faixas etárias dos jovens, com mais de 60% das ocorrências atingindo pessoas entre 15 e 29 anos. Além disso, as mortes violentas acometem muito mais a população negra, que chega a 71% do total de casos verificados. A violência tem cara, endereço e classe social. Ela tão somente espelha a injustiça e a desigualdade de nossa sociedade.
Para além da tragédia individual e familiar de cada um dos mortos, a dimensão econômica também chama a atenção pela magnitude do fato. Afinal, foram quase 590 mil pessoas assassinadas ao longo dos onze anos (2005/2015) para os quais os dados estão disponíveis. Desse total, 318 mil eram jovens e adolescentes. Analistas tentaram elaborar alguma forma de cálculo de tais perdas humanas em sua dimensão econômica, chegando a um custo anual equivalente a 1,5% do PIB. Ou seja, o país “gasta” - ou melhor, perde - com esse morticínio o valor correspondente às despesas orçamentárias realizadas com a própria segurança pública. Uma completa inversão de valores e prioridades.
Por outro lado, uma das questões que mais incomodam as pessoas que tomam contato com a crueldade de tais números refere-se ao processo de banalização e naturalização desse tipo de catástrofe econômica e social. A violência assassina passa a fazer parte do cotidiano de nossa população e a sociedade termina por se conformar com esse tipo de tragédia. As cifras são da ordem de dezenas de milhares de vítimas e as cenas de suas mortes percorrem as páginas dos jornais e os programas ao vivo das redes de comunicação. A falência do Estado em adotar políticas públicas de segurança termina por contaminar o debate e alimenta o discurso populista da saída individual. Como se liberar o porte de arma pudesse resolver um quadro de tamanha complexidade.
Apesar da profundidade desse drama social que vem se perpetuando, a sociedade brasileira parece se proteger quando adota uma postura de se desviar do necessário enfrentamento da questão. Na verdade deve haver algum grau de distúrbio psíquico coletivo que seja capaz de explicar esse tipo de alienação coletiva. Como o documento salienta, é como se um Boeing 737 caísse com 161 passageiros todos os dias em nosso território. Mas o choque só parece incomodar mesmo quando ocorre alhures.
Algo semelhante ocorre com a acomodação também generalizada com a armadilha do superávit primário. Afinal, trata-se de um mecanismo provocador de profunda tragédia social, com impacto tão ou mais significativo do que as mortes violentas identificadas no Atlas. E pouco a pouco a sociedade brasileira passou a conviver também de forma passiva junto a essa deformação igualmente violenta.
Banalização do superávit primário
Os meios de comunicação cumprem papel essencial nesse processo de aceitação social da perversidade representada pelo tratamento de verdadeiro privilégio concedido às despesas financeiras no manejo do orçamento público. A sutileza consiste na separação arbitrária entre as despesas não financeiras (chamadas simpaticamente de “primárias”, no jargão do economês da política fiscal) e as despesas de natureza efetivamente financeira.
Assim, administrar o orçamento de forma eficiente passa a ser sinônimo de gerar um excedente, um superávit primário. Em tese, aos olhos do perigoso e enganador senso comum, tudo certo em buscar alguma eficiência na administração dos recursos públicos. No entanto, o problema reside justamente no “pequeno detalhe” de se promover a diferenciação dos gastos financeiros frente aos demais. Essa forma particular de obtenção de saldo positivo entre receitas e despesas públicas não inclui o pagamento de juros sobre a dívida pública, por exemplo. Assim, esse item muito relevante do orçamento não entra no cálculo da compressão de gastos pela lógica do superávit primário.
Com isso, tem início um processo de “normalização” do absurdo. A sociedade acaba por aceitar que o fato de que as despesas com saúde, educação, previdência social, saneamento e outras sejam reduzidas. E o pior é que esse movimento todo da austeridade tem por objetivo tão somente assegurar que haja uma sobra que viabilize o pagamento integral das obrigações financeiras do Estado. Afinal, as despesas com serviços da dívida pública são intocáveis.
E aqui as cifras transformam-se em valores ainda mais astronômicos, da ordem de centenas de bilhões e mesmo trilhões de reais. As últimas informações divulgadas pelo Banco Central apontam para um volume de R$ 437 bilhões a título de pagamento de juros pelo governo federal ao longo dos últimos 12 meses. Para efeitos de comparação com o mesmo período do Atlas da Violência, o governo federal transferiu ao sistema financeiro o equivalente a R$ 2,8 trilhões a título de pagamento de juros da dívida entre 2005 e 2015.
Esse tipo de deturpação no processo de alocação do recurso público deveria merecer o mais veemente repúdio do conjunto dos atores sociais, assim como seria de se esperar face à ocorrência da alta mortalidade derivada da violência em nosso dia-a-dia. No entanto, o que se observa é uma espécie de acomodação da maioria da população, que continua a encarar ambos os fenômenos como algo natural.
O Brasil continua líder mundial absoluto nos quesitos taxa de juros e homicídios, posição que vem ocupando ao longo de décadas, quase sem concorrentes diretos em ambos os absurdos. Já é passada a hora de uma onda geral de indignação ativa contra essas evidentes deformações de qualquer processo social que se pretenda minimamente portador de traços civilizatórios.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
Para além da tragédia individual e familiar de cada um dos mortos, a dimensão econômica também chama a atenção pela magnitude do fato. Afinal, foram quase 590 mil pessoas assassinadas ao longo dos onze anos (2005/2015) para os quais os dados estão disponíveis. Desse total, 318 mil eram jovens e adolescentes. Analistas tentaram elaborar alguma forma de cálculo de tais perdas humanas em sua dimensão econômica, chegando a um custo anual equivalente a 1,5% do PIB. Ou seja, o país “gasta” - ou melhor, perde - com esse morticínio o valor correspondente às despesas orçamentárias realizadas com a própria segurança pública. Uma completa inversão de valores e prioridades.
Por outro lado, uma das questões que mais incomodam as pessoas que tomam contato com a crueldade de tais números refere-se ao processo de banalização e naturalização desse tipo de catástrofe econômica e social. A violência assassina passa a fazer parte do cotidiano de nossa população e a sociedade termina por se conformar com esse tipo de tragédia. As cifras são da ordem de dezenas de milhares de vítimas e as cenas de suas mortes percorrem as páginas dos jornais e os programas ao vivo das redes de comunicação. A falência do Estado em adotar políticas públicas de segurança termina por contaminar o debate e alimenta o discurso populista da saída individual. Como se liberar o porte de arma pudesse resolver um quadro de tamanha complexidade.
Apesar da profundidade desse drama social que vem se perpetuando, a sociedade brasileira parece se proteger quando adota uma postura de se desviar do necessário enfrentamento da questão. Na verdade deve haver algum grau de distúrbio psíquico coletivo que seja capaz de explicar esse tipo de alienação coletiva. Como o documento salienta, é como se um Boeing 737 caísse com 161 passageiros todos os dias em nosso território. Mas o choque só parece incomodar mesmo quando ocorre alhures.
Algo semelhante ocorre com a acomodação também generalizada com a armadilha do superávit primário. Afinal, trata-se de um mecanismo provocador de profunda tragédia social, com impacto tão ou mais significativo do que as mortes violentas identificadas no Atlas. E pouco a pouco a sociedade brasileira passou a conviver também de forma passiva junto a essa deformação igualmente violenta.
Banalização do superávit primário
Os meios de comunicação cumprem papel essencial nesse processo de aceitação social da perversidade representada pelo tratamento de verdadeiro privilégio concedido às despesas financeiras no manejo do orçamento público. A sutileza consiste na separação arbitrária entre as despesas não financeiras (chamadas simpaticamente de “primárias”, no jargão do economês da política fiscal) e as despesas de natureza efetivamente financeira.
Assim, administrar o orçamento de forma eficiente passa a ser sinônimo de gerar um excedente, um superávit primário. Em tese, aos olhos do perigoso e enganador senso comum, tudo certo em buscar alguma eficiência na administração dos recursos públicos. No entanto, o problema reside justamente no “pequeno detalhe” de se promover a diferenciação dos gastos financeiros frente aos demais. Essa forma particular de obtenção de saldo positivo entre receitas e despesas públicas não inclui o pagamento de juros sobre a dívida pública, por exemplo. Assim, esse item muito relevante do orçamento não entra no cálculo da compressão de gastos pela lógica do superávit primário.
Com isso, tem início um processo de “normalização” do absurdo. A sociedade acaba por aceitar que o fato de que as despesas com saúde, educação, previdência social, saneamento e outras sejam reduzidas. E o pior é que esse movimento todo da austeridade tem por objetivo tão somente assegurar que haja uma sobra que viabilize o pagamento integral das obrigações financeiras do Estado. Afinal, as despesas com serviços da dívida pública são intocáveis.
E aqui as cifras transformam-se em valores ainda mais astronômicos, da ordem de centenas de bilhões e mesmo trilhões de reais. As últimas informações divulgadas pelo Banco Central apontam para um volume de R$ 437 bilhões a título de pagamento de juros pelo governo federal ao longo dos últimos 12 meses. Para efeitos de comparação com o mesmo período do Atlas da Violência, o governo federal transferiu ao sistema financeiro o equivalente a R$ 2,8 trilhões a título de pagamento de juros da dívida entre 2005 e 2015.
Esse tipo de deturpação no processo de alocação do recurso público deveria merecer o mais veemente repúdio do conjunto dos atores sociais, assim como seria de se esperar face à ocorrência da alta mortalidade derivada da violência em nosso dia-a-dia. No entanto, o que se observa é uma espécie de acomodação da maioria da população, que continua a encarar ambos os fenômenos como algo natural.
O Brasil continua líder mundial absoluto nos quesitos taxa de juros e homicídios, posição que vem ocupando ao longo de décadas, quase sem concorrentes diretos em ambos os absurdos. Já é passada a hora de uma onda geral de indignação ativa contra essas evidentes deformações de qualquer processo social que se pretenda minimamente portador de traços civilizatórios.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
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