domingo, 23 de julho de 2017

A montanha de Dallagnol pariu um rato

Por Luis Nassif, no Jornal GGN:

Peça 1 – o enredo da Lava Jato

Apesar do comando difuso, entre mídia, troupe de Eduardo Cunha, PSDB e Departamento de Estado norte-americano (através da cooperação internacional), a trama da Lava Jato era de roteiro relativamente simples.

Haveria uma ação intermediária, o impeachment de Dilma. Depois, a ação definitiva, a condenação de Lula com o esfacelamento automático do PT como força política.

Houve intercorrências inevitáveis – como as denúncias contra próceres tucanos, rapidamente abafadas –, importantes para se tentar conferir legitimidade política ao jogo, e um desastre imprevisível: as delações da JBS que atingiram Aécio Neves no peito. Aí o elefante ficou muito grande para ser escondido debaixo do tapete.

Tudo caminhava nos conformes. Inclusive chantagear o grupo que assumiu interinamente o poder, obrigando-o a caminhar com o desmonte do Estado social para conseguir alguma sobrevida política. Depois engaiolá-los como grande gesto final.

Mas cometeram um erro central: apostaram tudo em um cavalo manco, o grupo de bacharéis de Curitiba, procuradores e delegados, e em um juiz sem noção que tocou os inquéritos da Lava Jato.

Aí o plano começou a degringolar.

Peça 2 – os cabeças de planilha e o os cabeças de vade mecum

Na economia, cansei de descrever o tipo intitulado cabeça-de-planilha.

Como se faz ciência aplicada:

1. O sujeito se forma, muitas vezes frequenta universidades estrangeiras e volta armado de um instrumental teórico.

2. Depois, precisa mergulhar na analise de caso, a economia ou, no caso de procuradores, o processo que está sendo tocado. Essa é a etapa principal, a capacidade de captar todos os detalhes, estabelecer correlações e desenvolver uma narrativa factível que identifique claramente o criminoso. Não se confunda preparo com competência ou inteligência. No Ministério Público mesmo, há inúmeras evidências de procuradores com menor aparato teórico produzindo mais resultados do que outros com PhDs, porque muito mais capacitados.

3. Só depois de levantados todos os dados, as provas e evidências, recorre-se ao aparato teórico para definir a narrativa, os crimes identificados e a punição requerida. Evidentemente, quando se casa aparato teórica com inteligência analítica, se tem o super-economista e o super-procurador.

Anos atrás aprendi uma regra de ouro com um grande físico brasileiro: quem pensa claro, escreve claro. Quando o sujeito recorrer a muitas firulas em defesa de sua tese, de duas, uma: ou é um gênio ou embusteiro. Gênio, só conheci Einstein, me dizia ele.

O economista medíocre salta a etapa principal, da analise de caso. Vai direto na teoria que aprendeu e faz como os cabeções do Banco Central: derrubam a inflação abaixo do piso da meta, prognosticando a entrada do país na depressão.

O mesmo ocorre com procuradores (e advogados) com baixa capacidade analítica e bom estofo teórico. Tratam de fugir da análise de caso e rechear as peças com firulas sem fim, como creme de leite para disfarçar a falta de consistência do bolo.

No caso da Lava Jato, sua estratégia consistiu em criar uma narrativa prévia, obrigar os delatores a preencher as lacunas com meras declarações, tipo “Lula sabia de tudo”, colocar os técnicos para pesquisar os bancos de dados da Receita, COAF, Bacen, juntar pitadas da cooperação internacional, tudo devidamente vazado para a imprensa, para passar a ideia de uma avalanche incontornável.

Se não for suficiente, dentro do Código Penal em vigor, eles dão um by-pass: se valem de um suponhamos que o Código Penal fosse outro.

Me lembram muito um professor de química do científico que foi até Ouro Preto e, na Faculdade de Engenharia, foi confrontado com uma enigma lógico que ninguém conseguia resolver. Quando chegou no ponto nevrálgico, pulou para a resposta conhecida. Aí perguntaram em qual lei da química ele tinha se baseado. E ele: acabei de criar.

Para suprir a falta de elementos, o criativo procurador Deltan Dallagnol apelou para sua erudição-de-pegar-incautos e citou teorias contemporâneas, sobre analises probabilísticas.

Confrontado com a opinião de pesos-pesados do direito, que mostraram que as teorias se aplicavam às técnicas de investigação, jamais como prova jurídica, as piruetas retóricas de Dallagnol lembraram cenas do filme Indiana Jones. Mais especificamente aquela em que o beduíno puxa a cimitarra, piruleteia para cá e para lá, um malabarismo aqui, um volteio acolá e Indiana Jones olhando. Até que acaba com a brincadeira simplesmente sacando o revólver e dando-lhe um tiro.

Peça 3 - as teorias probabilísticas de Dallagnol

Na peça de acusação do caso triplex, Dallagnol supre a carência de provas com teorias probabilísticas, que são utilizadas apenas para dar mais foco às investigações.

Vejamos como ele aplicou a teoria na prática, em uma análise de caso simples.

Veja a charada:

1. Você tem três balas parra atingir Lula, antes que ele se candidate a presidente novamente: o triplex, o terreno para o Instituto Lula e o sítio de Atibaia.

2. Pelos prazos em curso, só há tempo para um tiro. Qual você escolhe.

Vamos a um pequeno exercício de probabilidade [aqui].

Os três casos são fracos.

Não há dúvida de que houve mimos de empreiteiras para Lula. Afinal, o modelo de desenvolvimento adotado no seu governo transformou-as em players internacionais, até serem destruídas pela Lava Jato. Além disso, Lula representava um imenso capital diplomático, por sua popularidade especialmente em novos mercados prospectados por elas.

Mas não se levantou prova alguma de que houve contrapartida em contratos, o que caracterizaria a propina. Ou mesmo de que houvesse aumento patrimonial de Lula. Sem as provas, ficam-se nos mimos, sem acréscimo patrimonial, sem enriquecimento ilícito.

Mesmo assim, dentre os três processos, o único que poderia melhorar um pouco a probabilidade dos bacharéis seria o sítio de Atibaia, devido ao usufruto.

Mas decidiram apostar tudo no triplex, confiando no depoimento (alterado) de Léo Pinheiro, o cappo da OAS.

A peça é curiosa porque desenvolve toda uma teoria para uma nova qualificação de organização criminosa: a organização política, que prescindiria da apresentação de provas objetivas. Usa uma retórica inflamada, repetindo exaustivamente que Lula comandava uma organização criminosa, que os crimes eram difusos, que haveria dificuldade para identificar as provas. E, na mesma peça, diz que as propinas são provenientes de três contratos específicos. Especificou, tem que provar. Ou seja, uma baita volta para justificar a impossibilidade de levantar provas e, no meio, a afirmação taxativa de que as propinas foram originárias de três obras, o que exigiria a comprovação com provas.

Aí houve o caso curiosíssimo do juiz que copidescou o procurador.

Logo que começou a Lava Jato, defensores da cumplicidade entre juiz, procuradores e delegados alegavam que, havendo essa combinação, o juiz poderia corrigir erros dos procuradores e delegados no decorrer dos inquéritos e processos.

A afirmação já parecia estranha mas, enfim, estava-se nem pleno reinado do direito penal do inimigo, brilhantemente defendido pelo Ministro Luís Roberto Barroso.

O que não se esperava é que o juiz corrigisse a própria peça final de acusação. Para salvar o caso, Moro teve que reescrever a acusação afirmando que as propinas foram originárias de vários contratos, não especificamente da Petrobras.
Peça 4 – o partidarismo é mau negócio

Toda a argumentação de Dallagnol estaria adequada em uma ação civil contra Lula. Através dela, teria mais possibilidade de condenar Lula, cassar sua aposentadoria, impor multas elevadas, simplesmente porque na ação civil não há a necessidade da prova final.

Veja o seguinte exemplo:

1. Um fazendeiro contrata um ajudante para vigiar a fazenda.

2. O ajudante mata um invasor.

Uma ação criminal só conseguiria condenar o fazendeiro se comprovasse cabalmente que ele deu a ordem, que autorizou o ajudante a atirar em quem entrasse. Não bastaria mostrar i contrato de trabalho. Já em uma ação civil certamente o fazendeiro seria condenado a indenizar a família da vítima. A ação civil não exigiria o detalhamento do crime e sujeitaria o réu a um conjunto de sanções.

O domínio do fato – pretendido por Dallagnol para imputar a Lula o comando dos esquemas criminosos – não tem o condão de fazer com que uma responsabilidade subjetiva se torne objetiva. Numa ação civil, haveria mais possibilidade de condenar a falta de providências de Lula.

Com seu palavrório, Dallagnol pretendeu uma nova teoria do direito para crimes de poder. Quis reescrever a teoria da prova sem dispor de fôlego intelectual para tanto, razão de ter sido fuzilado por juristas mais preparados.

O Código Penal brasileiro é da legalidade estrita. Só existe crime se tiver lei penal descrevendo o crime e se for provado em todos os fatos e ainda provado o dolo do agente.

Não se pode importar princípios de fora. O próprio Ministério Público tentou introduzir a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade no Brasil e não conseguiu. Os criminosos podem ser punidos, mas foi mantido o prazo de prescrição.

E foi assim, por presunção, onipotência, pelo embevecimento com as repercussões no Twitter e no Facebook, pela ambição de ser o homem que levou Lula de volta para a prisão que a montanha de citações de Dallagnol pariu um rato.

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