sábado, 5 de agosto de 2017

Não há nuances na Venezuela

Por Gilberto Maringoni, em seu blog:

1- Há uma crise profunda na Venezuela. Neste exato momento, ela tem seu fulcro na disputa do poder. Embora exista um poderoso pano de fundo econômico, seu epicentro deslocou-se para a arena política. Cada parte joga com os instrumentos que tem à mão. Nicolas Maduro detém o poder de Estado e seus principais instrumentos, incluindo as forças armadas, o judiciário e governos estaduais. A oposição, agrupada na Mesa de Unidade Democrática (MUD) ganhou a Assembleia Nacional (congresso), tem outros tantos governos estaduais e conta com um formidável aparato internacional, fixado na Casa Branca, nos governos de direita da América Latina, nos organismos multilaterais (ONU, OEA) e no grande capital, o que inclui gigantescas redes de comunicação global. Apesar de aparentar ser o lado mais forte, Maduro não está nessa posição, ao contrário. Ele foi eleito e a oposição na AN também. Quem fala em ditadura lá, age por má fé ou ignorância.

2- Fustigado por forças de direita que querem tudo, menos diálogo e entendimento – como sobejamente demonstra o caso brasileiro -, Maduro radicalizou. Convocou uma assembleia constituinte para relegitimar sua administração, ganhar força interna e organizar o enfrentamento. O comparecimento de 40% não é baixo diante do histórico venezuelano, que já teve pleitos decididos com menos de 25% dos votantes nas cabines.

3- A sociedade está polarizada. Não há mal nisso. Disputas acirradas e nítidas ensejam quadros em que as nuances se tornam secundárias e o meio-termo desaparece. Há dois lados para se perfilar. Pode-se criticar um ou outro, mas não há escapatória. Nessa disputa, nas próximas semanas, joga-se o futuro da Venezuela e da esquerda no continente.

4- Se a manifestação da crise está na política, suas raízes estão em outra esfera, nos rumos da Economia e em suas consequências na vida cotidiana da população. A erosão de parâmetros materiais mina a legitimidade oficial e abre caminho para o avanço conservador.
5- O país caribenho chegou ao ponto extremo de praticamente não possuir moeda nacional. O Bolívar tem sua cotação oficial fixada em 10 por dólar, segundo o Banco Central. Nas ruas de Caracas, a divisa dos Estados Unidas é comercializada a 12 mil bolívares! Você leu certinho: mais de mil vezes mais.
6- O que isto significa? Significa que a relação comercial do país com o mundo não segue nenhum parâmetro lógico. A taxa oficial, base para importações e exportações, é o ponto de apoio para uma desenfreada corrida especulativa interna. Comerciantes importam produtos na cotação oficial e os vendem em redes clandestinas controladas por máfias na base do paralelo. Não é preciso muita imaginação para perceber que as inflações de 720% para 2017 e de 2000% para 2018, previstas pelo FMI, têm no câmbio seu grande motor.

7- Assim, a escassez de produtos nos supermercados – num país que importa praticamente de tudo, à exceção de petróleo – está diretamente ligada á crise cambial. E por que existe uma crise cambial no país?

8- Pela continuada e extremada dependência do petróleo, não apenas como quase único exportável, mas pelo fato de o Estado ser financiado em boa parte pela renda advinda de sua comercialização. A carga tributária venezuelana é historicamente baixa, situando-se em cerca de 13,5% do PIB, no período 2010-14, segundo a Cepal. Para efeito de comparação, a carga brasileira está por volta de 34% do PIB, a francesa 45% e a alemã 46%. Há algo mais grave: daquele total, cerca de 2/3 é composto por impostos indiretos e 1/3 por cobranças diretas (como o imposto de renda). Isso mostra que a carga é bastante regressiva, apesar de ter se elevado bastante nos anos Chávez (1999-2013).
9- O financiamento do Estado é complementado largamente pela renda petroleira. Isso implica dizer que quando o preço do óleo está alto (como em 1974-80 e 2000-2011), a Venezuela torna-se próspera. Quando os preços desabam – como nos últimos três anos – o país tem de apertar cintos.
10- Como os preços do petróleo oscilam de acordo com uma infinidade de variáveis – boa parte delas especulativa – a manutenção dessa política fiscal na prática amarra o país à especulação mundial. Não é característica apenas venezuelana. O fenômeno atinge até mesmo um gigante como a Rússia. Além disso, o baixo ingresso de petrodólares gera escassez interna de moeda forte, o que alimenta a procura e eleva seu preço. A pergunta óbvia é: por que Chávez não mudou isso?
11- A resposta nada óbvia é: porque não é fácil. Quando os preços estão altos e o ingresso de petrodólares financia a máquina pública, os investimentos e o dinamismo econômico (incluindo geração de empregos, elevação de salários e programas sociais) não há incentivo algum para se realizar uma reforma tributária ou para se promover a reestruturação produtiva, impulsionando a industrialização. A moeda nacional se valoriza, as importações ficam baratíssimas e os custos de produção internos se tornam proibitivos. É o fenômeno conhecido como “doença holandesa” e foi percebido pioneiramente por Celso Furtado, em 1956.
12- Quando o preço internacional desaba e a economia interna entra em crise, não há condições de se fazer investimentos. Chávez tentou reativar a siderurgia, a instalação de indústrias de bens duráveis e internalizar a produção de produtos agrícolas processados, mas não conseguiu.
13- Assim, o problema estrutural do país – o câmbio e a moeda – não têm solução fácil à vista. Nem pelo governo e nem pela oposição. O programa desta última é voltar ao que existia até 1998: concessões de poços de petróleo a estrangeiros e adaptar a estatal de petróleo – PDVSA – à lógica dos grandes consumidores internacionais (EUA, entre outros), além de acabar com dezenas de programas sociais.

14- Esse é o pano de fundo sobre o qual se dá a disputa de poder. A falta de liderança presidencial, o sucateamento da PDVSA e problemas administrativos agravam, mas nem de longe são determinantes na composição do quadro. Se a situação é essa, por que motivos o governo venezuelano convocou a Constituinte?

15- É pouco provável que uma nova Carta ataque de imediato as disfuncionalidades econômicas. Mas ela se volta para uma questão também essencial para o chavismo: o tempo. Maduro precisa ganhar fôlego. Tem necessidade premente de se relegitimar, após perder as eleições parlamentares de 2015 e de ver seu país afundar – como todos os da periferia – após o repique da crise internacional, em 2013. Embora tenha havido uma pequena recomposição dos preços do barril do petróleo (US$ 30 em janeiro de 2016, US$ 50 em janeiro de 2017 e US$ 44 agora), o rombo econômico é de tal magnitude que tais majorações não resolvem as turbulências.
16- A relegitimação oficial via Constituinte permite, em tese, enfrentar a oposição interna, tentar compensar os efeitos da crise com medidas sociais tópicas e traçar nova tática de enfrentamento diante de um ascenso vigoroso de forças conservadoras no continente e nos EUA. Repetindo: pelo que se vê no Brasil, o que a direita menos quer agora é entendimento. Os bolivarianos terão êxito? Não se sabe.

17- Por que é vital apoiar Maduro, apesar de suas insuficiências e erros? Porque a queda do chavismo não melhorará a situação da esquerda nem interna e nem externamente. Cuba será novamente fustigada e as correntes progressistas latinoamericanas serão desqualificadas ad nauseam. Assistiremos uma tragédia anunciada ainda maior para a população local e veremos um triunfo espetacular da direita e do financismo global. Será um exemplo a ser brandido por décadas para intimidar quem busca transformações sociais. Algo que só encontrará paralelo com a queda dos países socialistas, há quase trinta anos.

18- Infelizmente não há terceira via ou saída progressista na Venezuela fora do governo Maduro. Não há muro confortável, posição equidistante ou lugar para isenções. A neutralidade favorece o mais forte em situação de radicalização. Abandonar a Venezuela ou fazer carga contra quem luta como um leão para vencer as oligarquias equivale a se somar com armas e bagagens ao outro lado.

19- É possível criticar Maduro, falar de sua inépcia e esbravejar pelo fato de seu governo não raro meter os pés pelas mãos. Mas colocar-se contra ele e compará-lo à brutalidade fascista significa colocar-se ao lado de quem, no Brasil e no mundo, opera ferozmente pelo fim da democracia, pela regressão social e pela negação de qualquer ideia transformadora.

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