Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Recém saído das catacumbas após o desembolso de R$ 13,4 bilhões que garantiram os votos de parlamentares para evitar uma investigação sobre corrupção passiva, Michel Temer abriu o verdadeiro jogo do golpe – instituir o regime parlamentarista e castrar a democracia de uma vez por todas. "Acho que podemos pensar em parlamentarismo para 2018," disse. "Não seria despropositado."
Do ponto de vista da lógica em vigor na política do país após a deposição de Dilma Rousseff, não seria despropositado mesmo. Seria o capitulo final de um esforço coerente e ilimitado para retirar direitos dos brasileiros e transformar o país numa republiqueta de lixo.
Depois de bloquear o desenvolvimento econômico através da emenda dos gastos e transformar a questão social num caso de polícia, através do esvaziamento da CLT, o que se planeja com o parlamentarismo é impedir que o povo tenha a palavra final na definição dos destinos do país.
Vamos recordar. Pelo regime atual, o presidencialismo, reza o princípio sagrado pelo qual 1 pessoa = 1 voto. Não é perfeito, sabemos todos. Permitiu a eleição de desastres sem fim. Mas essa matemática quimicamente pura, sem desvios, faz da corrida às urnas sob o presidencialismo um momento único na vida de um país. Nesse dia, e por um poucos instantes, o voto do trabalhador rural da Paraíba tem o mesmo peso que o do gravatão do mercado financeiro da avenida Paulista. Todos os 100 milhões de brasileiros e brasileiras valem a mesma coisa. O resultado é fácil de prever.
A vontade da maioria se expressa de modo transparente e absoluto. Vale o que ela decidiu, sem intermediários, sem ponderações, sem filtros indevidos, sem atravessadores, bem remunerados ou quem sabe apenas bem intencionados -- que são a marca do parlamentarismo.
Foi em função do voto somado 1 a 1, que os brasileiros puderam eleger, em raros momentos de sua história, governantes capazes de falar pela maioria e contrariar os interesses daquele 1% que governa o país desde 1500.
Num caso clássico em que a forma determina o conteúdo, o sistema de governo cumpre um papel essencial para isso. Não é de surpreender, portanto, o que nos dois plebiscitos realizados sobre o assunto, o presidencialismo foi vitorioso por margens avassaladoras: 4 para 1 em 1963; 2 contra 1 em 1993.
Mesmo imaginando, por hipótese, que o Congresso brasileiro fosse formado por freiras carmelitas, não dá para cogitar a escolha de Getúlio Vargas – ou de Lula, ou Dilma – pelo voto indireto de Senadores e Deputados. Num fenômeno universal, o Congresso existe, justamente, para conciliar os contrários e dar voz à minorias inferiorizadas do ponto de vista da maioria da população. Sua função não é abrir caminho para a mudança, mas promover a estabilidade – um eufemismo para atraso e conservadorismo.
O debate parlamentarista surge e desaparece no país em momentos precisos, quando serve de barreira contra governos considerados inconvenientes pelos donos do poder e do dinheiro, o que já diz muito sobre o caráter pequeno, medíocre, de sua versão nacional.
Em 1962, o parlamentarismo foi uma condição militar para autorizar a posse de João Goulart na presidência da República. Era uma forma de neutralizar, pelo Congresso – sempre ele! – um presidente de tradição trabalhista. Em 2017, o parlamentarismo de Temer é uma versão institucional, escancarada, de neutralizar Lula – caso nem Sérgio Moro nem o TRF-4 possam dar conta do serviço. O plano é assim: caso Lula consiga disputar a eleição e se eleger, será uma Rainha da Inglaterra. Caso não ocorra nenhuma coisa nem outra, seus sucessores – mesmo os melhores – serão estadistas de mãos e pés bem amarrados pelos operadores do parlamento.
Não é uma questão brasileira. Desde o século XVIII, quando, nas primeiras democracias, o povo emergiu como protagonista principal da vida política, tomando nas rédeas o destino de países e nações, o parlamentarismo tornou-se o instrumento principal das elites e variadas versões das aristocracias para resistir as mudanças. Era sua grande trincheira institucional, pois ali é possível preservar interesses e pontos de vista que não tem base social, no número de cidadãos que apoiam, mas na tradição e na riqueza. Não vamos ficar na Europa. Basta recordar um caso recente do país. Em 1988, uma Constituinte nascida sob um impulso progressista na luta contra a ditadura, no momento em que foi escolhida pela população, acabou esvaziada e esterilizada, em capítulos fundamentais – sobre a propriedade da terra, os meios de comunicação, o controle do mercado financeiro, a punição a torturadores – pelo jogo parlamentar que estudiosos muito sérios já definiram como cretinismo.
Reconstruindo a história das monarquias parlamentares europeias, o historiador Arno Meyer escreveu, em A Força da Tradição, um pequeno tratado definitivo. Ali se demonstra, por A + B, que, unindo a nobreza e a burguesia, o parlamentarismo construiu a principal barreira institucional para mudanças que interessavam a maioria de plebeus e deserdados. Na maioria dos casos, mudanças urgentes e necessárias foram atrasadas – ou simplesmente impedidas – por várias gerações.
Não é nem um pouco surpreendente que Michel Temer tenha tido o descaramento de assumir essa bandeira após a votação de quarta-feira. Alguma dúvida?
Recém saído das catacumbas após o desembolso de R$ 13,4 bilhões que garantiram os votos de parlamentares para evitar uma investigação sobre corrupção passiva, Michel Temer abriu o verdadeiro jogo do golpe – instituir o regime parlamentarista e castrar a democracia de uma vez por todas. "Acho que podemos pensar em parlamentarismo para 2018," disse. "Não seria despropositado."
Do ponto de vista da lógica em vigor na política do país após a deposição de Dilma Rousseff, não seria despropositado mesmo. Seria o capitulo final de um esforço coerente e ilimitado para retirar direitos dos brasileiros e transformar o país numa republiqueta de lixo.
Depois de bloquear o desenvolvimento econômico através da emenda dos gastos e transformar a questão social num caso de polícia, através do esvaziamento da CLT, o que se planeja com o parlamentarismo é impedir que o povo tenha a palavra final na definição dos destinos do país.
Vamos recordar. Pelo regime atual, o presidencialismo, reza o princípio sagrado pelo qual 1 pessoa = 1 voto. Não é perfeito, sabemos todos. Permitiu a eleição de desastres sem fim. Mas essa matemática quimicamente pura, sem desvios, faz da corrida às urnas sob o presidencialismo um momento único na vida de um país. Nesse dia, e por um poucos instantes, o voto do trabalhador rural da Paraíba tem o mesmo peso que o do gravatão do mercado financeiro da avenida Paulista. Todos os 100 milhões de brasileiros e brasileiras valem a mesma coisa. O resultado é fácil de prever.
A vontade da maioria se expressa de modo transparente e absoluto. Vale o que ela decidiu, sem intermediários, sem ponderações, sem filtros indevidos, sem atravessadores, bem remunerados ou quem sabe apenas bem intencionados -- que são a marca do parlamentarismo.
Foi em função do voto somado 1 a 1, que os brasileiros puderam eleger, em raros momentos de sua história, governantes capazes de falar pela maioria e contrariar os interesses daquele 1% que governa o país desde 1500.
Num caso clássico em que a forma determina o conteúdo, o sistema de governo cumpre um papel essencial para isso. Não é de surpreender, portanto, o que nos dois plebiscitos realizados sobre o assunto, o presidencialismo foi vitorioso por margens avassaladoras: 4 para 1 em 1963; 2 contra 1 em 1993.
Mesmo imaginando, por hipótese, que o Congresso brasileiro fosse formado por freiras carmelitas, não dá para cogitar a escolha de Getúlio Vargas – ou de Lula, ou Dilma – pelo voto indireto de Senadores e Deputados. Num fenômeno universal, o Congresso existe, justamente, para conciliar os contrários e dar voz à minorias inferiorizadas do ponto de vista da maioria da população. Sua função não é abrir caminho para a mudança, mas promover a estabilidade – um eufemismo para atraso e conservadorismo.
O debate parlamentarista surge e desaparece no país em momentos precisos, quando serve de barreira contra governos considerados inconvenientes pelos donos do poder e do dinheiro, o que já diz muito sobre o caráter pequeno, medíocre, de sua versão nacional.
Em 1962, o parlamentarismo foi uma condição militar para autorizar a posse de João Goulart na presidência da República. Era uma forma de neutralizar, pelo Congresso – sempre ele! – um presidente de tradição trabalhista. Em 2017, o parlamentarismo de Temer é uma versão institucional, escancarada, de neutralizar Lula – caso nem Sérgio Moro nem o TRF-4 possam dar conta do serviço. O plano é assim: caso Lula consiga disputar a eleição e se eleger, será uma Rainha da Inglaterra. Caso não ocorra nenhuma coisa nem outra, seus sucessores – mesmo os melhores – serão estadistas de mãos e pés bem amarrados pelos operadores do parlamento.
Não é uma questão brasileira. Desde o século XVIII, quando, nas primeiras democracias, o povo emergiu como protagonista principal da vida política, tomando nas rédeas o destino de países e nações, o parlamentarismo tornou-se o instrumento principal das elites e variadas versões das aristocracias para resistir as mudanças. Era sua grande trincheira institucional, pois ali é possível preservar interesses e pontos de vista que não tem base social, no número de cidadãos que apoiam, mas na tradição e na riqueza. Não vamos ficar na Europa. Basta recordar um caso recente do país. Em 1988, uma Constituinte nascida sob um impulso progressista na luta contra a ditadura, no momento em que foi escolhida pela população, acabou esvaziada e esterilizada, em capítulos fundamentais – sobre a propriedade da terra, os meios de comunicação, o controle do mercado financeiro, a punição a torturadores – pelo jogo parlamentar que estudiosos muito sérios já definiram como cretinismo.
Reconstruindo a história das monarquias parlamentares europeias, o historiador Arno Meyer escreveu, em A Força da Tradição, um pequeno tratado definitivo. Ali se demonstra, por A + B, que, unindo a nobreza e a burguesia, o parlamentarismo construiu a principal barreira institucional para mudanças que interessavam a maioria de plebeus e deserdados. Na maioria dos casos, mudanças urgentes e necessárias foram atrasadas – ou simplesmente impedidas – por várias gerações.
Não é nem um pouco surpreendente que Michel Temer tenha tido o descaramento de assumir essa bandeira após a votação de quarta-feira. Alguma dúvida?
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