Por Mino Carta, na revista CartaCapital:
Há tempo, meus botões, iconoclastas à beira do sacrilégio, sustentam que nem tudo nos cardápios da Marquesa de Santos ostentava perfeitas condições de consumo. Eventuais indagações a respeito parecem despidas de sentido. Ocorre, entretanto, que um mexilhão estragado, digamos, poderia ter exercido notável influência sobre o Grito.
Sabe-se que Dom Pedro vinha de Santos depois de almoçar com a amante e, ao subir a serra no caminho de São Paulo, deu para experimentar os dissabores da digestão penosa, com consequências abaixo do umbigo.
Nas alturas do Ipiranga, próximas da cidade, um renque de bananeiras cuidou de lhe oferecer abrigo para o cumprimento da operação inevitável, embora nem sempre definitiva, em tais ocasiões. E das sombras o príncipe finalmente emergiu para proclamar a Independência.
Em paz com as entranhas, ou ainda a sofrer do aperto inconcluso? Gritou, segundo as páginas amarelecidas, “Independência ou morte!” A ser verdade factual a frase que a história coloca na boca do príncipe, ela ganha o som da irritação.
Por que propor uma alternativa tão drástica? A palavra morte ali não se justifica, mesmo se em jogo estava uma imponente briga familiar que o opunha ao pai Dom João VI. Sobra a hipótese de que a parada forçada debaixo das bananeiras tivesse sido insatisfatória.
Como se sabe, a retórica oficial no Brasil se esbalda. Claro está que nosso herói não montava o cavalo de Napoleão, como pretende o pintor francês François-René Moreaux ao retratá-lo na chegada a São Paulo. Na opinião dos meus botões, tratava-se de um muar. Na tela, o povo festeja o gesto do seu príncipe, a mostrar consciência de um triunfo há tempo almejado. No meio da festa, enxergo, oh! surpresa, um rosto talvez mulato.
No caso, a verdade factual obviamente é outra. Metade da população era de escravos, e quem não era só com o passar dos meses foi obrigado a dar-se conta da mudança, pela qual, teoricamente, o Brasil deixava de ser colônia. Não demoraria muito para tornar-se súdito do império britânico em lugar do português. Demoraria a Abolição, de fato ainda não extinta até hoje no país da casa-grande e da senzala.
Nesta moldura, figuras como Joaquim Nabuco, Machado de Assis, o Barão de Mauá e Castro Alves são empolgantes exceções. A Editora Hedra tomou a feliz iniciativa de publicar um precioso livrinho, intitulado Alencar – Cartas a Favor da Escravidão.
O autor de Iracema, a virgem índia dos lábios de mel, gostava dos românticos franceses, logorreicos e empolados, e era dado ao culto de uma Idade Média habitada por fadas e ogros. Verificamos agora que José de Alencar pode ser incluído entre os pais fundadores da República do Estado de Exceção, juntamente, entre outros, com os inquisidores do auto de fé em andamento.
Segundo Alencar, radioso seria o futuro dos Estados Unidos e Brasil escravocratas exatamente em função da presença no trabalho deste braço forte e cativo. A tese hiperbólica do escritor, fervoroso leitor de Atala, de Chateaubriand, fábula inspiradora de Iracema, é simples, conforme resume o autor do prefácio do livro da Hedra, Tâmis Parron: “Ao contrário da Antiguidade, os povos bárbaros não mais conquistam os instruídos”.
Resultado: agora, ou seja, segunda metade do século XIX, a civilização captura incultos e os põe a trabalhar com o efeito de “moralizá-los” no mais longo prazo possível. O escravo deveria elevar preces de agradecimento aos seus deuses e é certo que três séculos e meio de escravidão não bastam, longe disso, para o bom êxito da operação de “moralização”.
Alencar não conseguia imaginar o Brasil desgovernado por uma malta de desinstruídos predadores, com raras exceções, Getúlio e Lula, mais, um tanto de raspão, JK.
Alcançaram a grandeza os EUA, poderoso “irmão do Norte”, como outrora se lia nos editoriais do Estadão, pela interferência de novas forças civilizadoras, chegadas em sólidos barcos de passageiros, embora as feiticeiras de Salem retornem, imunes à fogueira, com novos nomes e semblantes.
Enquanto por aqui a casa-grande e a senzala continuam de pé. De fato, os predadores nunca se expuseram de forma tão prepotente em todos os meus 71 anos de Brasil.
O impeachment de Dilma Rousseff, com panelaços e idiotas nas ruas de uniforme canarinho, é o início da debacle conclusiva, a levar ao Estado de Exceção, ou seja, ao atoleiro em que afundamos, como diz Marcos Coimbra na sua coluna desta semana.
Não se trata de defender o governo da presidenta, que, aliás, mereceu críticas muito severas de CartaCapital, ou o PT, que no poder se portou como os demais clubes recreativos a ornar a política nativa, e não foi capaz de enfrentar a manobra golpista.
A cultura da escravidão ensina que o bom combate acontece na proporção de 50 contra 1. É a história da guerrilha do Araguaia, empolgante pela coragem dos 80 moços que enfrentaram 10 mil soldados, mas, ao mesmo tempo, patética.
Os bravos são raros, em geral não somos de briga, a não ser que o adversário esteja em grande minoria ou careça dos meios para se defender. Mestre no assunto, o Duque de Caxias, exuberante figura da nossa interminável galeria de falsos heróis.
De exceção em exceção, as máfias no poder fazem o que bem entendem, em um país que não se fez nação. As ofensas à lei e à razão multiplicam-se ao sabor dos interesses imediatos das quadrilhas, para nos transformar em um Estado medieval e insignificante, colônia exportadora de commodities e de terra vendida, na superfície e no subsolo, a preço de liquidação.
A saída correta teria sido a convocação de eleições antecipadas. Mas como chegar a tanto se os poderes da República obedecem aos capi? Outra saída estaria na revolta popular, forte o bastante para tomar a casa-grande, mas cadê os sans-culottes? CartaCapital reconhece em Lula o único autêntico líder nacional. Mas, se o PT não existe sem seu fundador, o contrário é perfeitamente possível. Lula tem o povo e o PT é dispensável.
Se Lula for preso, conforme prevê a principal exceção deflagrada pelo golpe, a eleição de 2018, desde que se realize, não deixará de ser uma farsa trágica. Recomenda-se preparar os corações para dias ainda mais sombrios. Na próxima semana celebra-se o Dia da Independência 195 anos depois, o dia do tão falado grito que Dom Pedro liberou ao sair detrás das bananeiras. Já então era falácia.
O êxito golpista nos devolve imperiosamente aos tempos da colônia e a verdadeira festa é a da dependência. Só cabe lamentar, diante de uma situação que não vislumbra qualquer gênero eficaz de resistência.
Lamentamos também que alguns personagens dotados de respeitável inteligência, felizmente poucos, se façam de cegos, quando não apoiam o descalabro. É algo que me agasta e amargura entre o fígado e a alma.
Há tempo, meus botões, iconoclastas à beira do sacrilégio, sustentam que nem tudo nos cardápios da Marquesa de Santos ostentava perfeitas condições de consumo. Eventuais indagações a respeito parecem despidas de sentido. Ocorre, entretanto, que um mexilhão estragado, digamos, poderia ter exercido notável influência sobre o Grito.
Sabe-se que Dom Pedro vinha de Santos depois de almoçar com a amante e, ao subir a serra no caminho de São Paulo, deu para experimentar os dissabores da digestão penosa, com consequências abaixo do umbigo.
Nas alturas do Ipiranga, próximas da cidade, um renque de bananeiras cuidou de lhe oferecer abrigo para o cumprimento da operação inevitável, embora nem sempre definitiva, em tais ocasiões. E das sombras o príncipe finalmente emergiu para proclamar a Independência.
Em paz com as entranhas, ou ainda a sofrer do aperto inconcluso? Gritou, segundo as páginas amarelecidas, “Independência ou morte!” A ser verdade factual a frase que a história coloca na boca do príncipe, ela ganha o som da irritação.
Por que propor uma alternativa tão drástica? A palavra morte ali não se justifica, mesmo se em jogo estava uma imponente briga familiar que o opunha ao pai Dom João VI. Sobra a hipótese de que a parada forçada debaixo das bananeiras tivesse sido insatisfatória.
Como se sabe, a retórica oficial no Brasil se esbalda. Claro está que nosso herói não montava o cavalo de Napoleão, como pretende o pintor francês François-René Moreaux ao retratá-lo na chegada a São Paulo. Na opinião dos meus botões, tratava-se de um muar. Na tela, o povo festeja o gesto do seu príncipe, a mostrar consciência de um triunfo há tempo almejado. No meio da festa, enxergo, oh! surpresa, um rosto talvez mulato.
No caso, a verdade factual obviamente é outra. Metade da população era de escravos, e quem não era só com o passar dos meses foi obrigado a dar-se conta da mudança, pela qual, teoricamente, o Brasil deixava de ser colônia. Não demoraria muito para tornar-se súdito do império britânico em lugar do português. Demoraria a Abolição, de fato ainda não extinta até hoje no país da casa-grande e da senzala.
Nesta moldura, figuras como Joaquim Nabuco, Machado de Assis, o Barão de Mauá e Castro Alves são empolgantes exceções. A Editora Hedra tomou a feliz iniciativa de publicar um precioso livrinho, intitulado Alencar – Cartas a Favor da Escravidão.
O autor de Iracema, a virgem índia dos lábios de mel, gostava dos românticos franceses, logorreicos e empolados, e era dado ao culto de uma Idade Média habitada por fadas e ogros. Verificamos agora que José de Alencar pode ser incluído entre os pais fundadores da República do Estado de Exceção, juntamente, entre outros, com os inquisidores do auto de fé em andamento.
Segundo Alencar, radioso seria o futuro dos Estados Unidos e Brasil escravocratas exatamente em função da presença no trabalho deste braço forte e cativo. A tese hiperbólica do escritor, fervoroso leitor de Atala, de Chateaubriand, fábula inspiradora de Iracema, é simples, conforme resume o autor do prefácio do livro da Hedra, Tâmis Parron: “Ao contrário da Antiguidade, os povos bárbaros não mais conquistam os instruídos”.
Resultado: agora, ou seja, segunda metade do século XIX, a civilização captura incultos e os põe a trabalhar com o efeito de “moralizá-los” no mais longo prazo possível. O escravo deveria elevar preces de agradecimento aos seus deuses e é certo que três séculos e meio de escravidão não bastam, longe disso, para o bom êxito da operação de “moralização”.
Alencar não conseguia imaginar o Brasil desgovernado por uma malta de desinstruídos predadores, com raras exceções, Getúlio e Lula, mais, um tanto de raspão, JK.
Alcançaram a grandeza os EUA, poderoso “irmão do Norte”, como outrora se lia nos editoriais do Estadão, pela interferência de novas forças civilizadoras, chegadas em sólidos barcos de passageiros, embora as feiticeiras de Salem retornem, imunes à fogueira, com novos nomes e semblantes.
Enquanto por aqui a casa-grande e a senzala continuam de pé. De fato, os predadores nunca se expuseram de forma tão prepotente em todos os meus 71 anos de Brasil.
O impeachment de Dilma Rousseff, com panelaços e idiotas nas ruas de uniforme canarinho, é o início da debacle conclusiva, a levar ao Estado de Exceção, ou seja, ao atoleiro em que afundamos, como diz Marcos Coimbra na sua coluna desta semana.
Não se trata de defender o governo da presidenta, que, aliás, mereceu críticas muito severas de CartaCapital, ou o PT, que no poder se portou como os demais clubes recreativos a ornar a política nativa, e não foi capaz de enfrentar a manobra golpista.
A cultura da escravidão ensina que o bom combate acontece na proporção de 50 contra 1. É a história da guerrilha do Araguaia, empolgante pela coragem dos 80 moços que enfrentaram 10 mil soldados, mas, ao mesmo tempo, patética.
Os bravos são raros, em geral não somos de briga, a não ser que o adversário esteja em grande minoria ou careça dos meios para se defender. Mestre no assunto, o Duque de Caxias, exuberante figura da nossa interminável galeria de falsos heróis.
De exceção em exceção, as máfias no poder fazem o que bem entendem, em um país que não se fez nação. As ofensas à lei e à razão multiplicam-se ao sabor dos interesses imediatos das quadrilhas, para nos transformar em um Estado medieval e insignificante, colônia exportadora de commodities e de terra vendida, na superfície e no subsolo, a preço de liquidação.
A saída correta teria sido a convocação de eleições antecipadas. Mas como chegar a tanto se os poderes da República obedecem aos capi? Outra saída estaria na revolta popular, forte o bastante para tomar a casa-grande, mas cadê os sans-culottes? CartaCapital reconhece em Lula o único autêntico líder nacional. Mas, se o PT não existe sem seu fundador, o contrário é perfeitamente possível. Lula tem o povo e o PT é dispensável.
Se Lula for preso, conforme prevê a principal exceção deflagrada pelo golpe, a eleição de 2018, desde que se realize, não deixará de ser uma farsa trágica. Recomenda-se preparar os corações para dias ainda mais sombrios. Na próxima semana celebra-se o Dia da Independência 195 anos depois, o dia do tão falado grito que Dom Pedro liberou ao sair detrás das bananeiras. Já então era falácia.
O êxito golpista nos devolve imperiosamente aos tempos da colônia e a verdadeira festa é a da dependência. Só cabe lamentar, diante de uma situação que não vislumbra qualquer gênero eficaz de resistência.
Lamentamos também que alguns personagens dotados de respeitável inteligência, felizmente poucos, se façam de cegos, quando não apoiam o descalabro. É algo que me agasta e amargura entre o fígado e a alma.
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