domingo, 10 de setembro de 2017

A implantação da ditadura civil brasileira

Por Yuri Martins Fontes, na revista Caros Amigos:

Enquanto há meio século, em meio à crise econômica que se agravava, os golpes de Estado na América se deram com violência aberta e pelo rompimento direto das instituições (dada a autonomia de que dispunham os militares por motivo da Guerra Fria), agora, no turbilhão da nova crise (reiniciada em 2008 com a socialização forçada dos prejuízos do capitalismo central com as economias dependentes), os golpes de novo tipo têm se dado com o mínimo de violência, e sempre que possível no rigor das leis (leis aliás construídas pelos mesmos segmentos dominantes golpistas).

Hoje, como se vê pela América afora, a ditadura não precisa mais ser “militar”, mas pode se sustentar bem apenas enquanto “civil”, inclusive se permitindo discursos inflamados em “defesa da democracia” que estaria sendo agredida por recorrentes “governos eleitos antidemocráticos”. O pouco protagonismo das Forças Armadas se dá mesmo em casos como o de Honduras, onde milicos sequestraram o presidente eleito, pois em um só ato imediatamente entregaram a chave do palácio aos colegas da elite civil.

Mas deixemos este tema do golpismo latino-americano de modo geral para um próximo texto, e fiquemos agora pelo Brasil.

A implantação da ditadura civil no Brasil em 2016

Vivemos no Brasil não apenas um golpe de Estado, mas uma ditadura cleptocrática (Jucá, Aécio, Temer, Gilmar e cia) e cada vez mais autoritária (Escola Sem Partido, fim das proteções trabalhistas, resolução policialesca de problemas sociais, etc). Uma ditadura organizada pelas classes patronais no Brasil: e isto qualquer pato verde-amarelo com um mínimo, nem digamos de “sensibilidade”, mas de vergonha na cara, admite.

Logicamente, tal processo contou com o apoio massivo das classes intermediárias formadoras de opinião – notadamente da classe média “formada” em seus sofás e poltronas dos finais de dia, ao regresso do serviço (que mesmo sendo bem pago frente à realidade geral, é a desculpa para seu “honesto descanso” frente à telinha – a também chamada “preguiça mental”). Uma classe de pouca leitura, mas de muita televisão, com seu vasto “instrumental teórico” advindo das manchetes de jornais que comprovadamente limitam as funções psíquicas (Globo, Estadão, Folha), ou das capas de revistas racistas e xenófobas (se não as idiotizantes Caras ou Istoé's, aquelas Vejas que já não se escondem em sua louvação do fascismo – ainda que sob discursos mais “suaves”).

Nos dias de hoje, em que a crise aperta, e a ameaça de pauperização bate à porta dessas classes médias – conservadoras, inseguras e cruéis (embora cristãs nas horas vagas), de pouco estudo e menos ainda reflexão, cultivada na informação difusa e fragmentada que não ela não compreende sem a simplória e cheia de interesses “moral da história” (oferecida pelo âncora) –, não foi difícil para a poderosa mídia promover, através destas pobres ricas salas-de-estar precarizadas pela crise, a atual ditadura civil brasileira.

Consolidaram-se com o golpe as históricas quadrilhas no poder (“esquemas” provenientes do regime militar), para em seguida se vender as incalculáveis riquezas da Amazônia e o petróleo nacional, tudo bem blindado pelos super-salários de juízes (sócios do golpe que condenam sem a necessidade de provas governos minimamente populares, enquanto engavetam ilegalidades explícitas de aliados donos do mundo, cuja dimensão do rombo é incomparável).

Um governo golpista representante do 1% que se torna mais autoritário e violento à medida que se vê incapaz de superar o caos econômico e social – esse caos que ele mesmo criou a partir da crise econômica mundial, disseminando o medo social com o apoio milionário de organizações chauvinistas (como o nazi Tea Party dos EUA, ou a pedófila Opus Dei) que financiam a “inteligência” de grupelhos reacionários locais, em um ato sempre coordenado com as pautas da “fábrica midiática de verdades”.

Promoveu-se assim o suposto “movimento de massas da sociedade civil” (inflado pelo metrô grátis e chamadas da Globo para a festa) que levou tantos patos incautos – ora arrependidos – à Avenida Paulista, abalando perante a “comunidade internacional” o “antidemocrático” governo eleito, e justificando assim, previamente, sua derrubada.


Um golpe que serviu para se enfrentar a crise de um modo “mágico” (sem que a classe patronal nada perdesse no jogo que adora), depauperando portanto ainda mais a saúde pública e os direitos parcos de quem vive de seu trabalho, e congelando miseráveis verbas sociais, além de bolsas da educação e pesquisa brasileira (pensar é muito perigoso).

Manteve-se assim intacto cada um dos privilégios das elites: da sonegação fiscal “tolerada” (que arromba os cofres públicos mais de que a corrupção), às pequenas corrupções – como os “jatinhos” bacanas que são isentos (pasmem!) de impostos.

Um golpe que (ainda) não precisou – ao menos no caso brasileiro – da casta militar nativa (cuja “formação” se deu com os manuais de tortura da Escola das Américas dos EUA, fato bem divulgado, e mesmo “sentido” na pele).

Assim, os militares, na atual conjuntura – tempos que detêm baixa popularidade (dadas as barbaridades que cometeram mesmo contra as próprias classes dominantes que lhes deram o poder nos anos 1960), continuam quietinhos em seus quartéis. Isso, claro, quando não estão nas favelas ou fronteiras na perseguição de traficantes que não “colaboraram”, ou em funções mais cotidianas como aterrorizar lares civis e matar trabalhadores nas quebradas, onde (segundo a pérola de um capo milico paulista da vez) o trato “tem de ser diferenciado daquele dos Jardins”. Obviamente.

Impostos, mensalão e os primórdios do golpe

E eis que então, alguém que exerce a reflexão mais cotidianamente, se pergunta: mas por que cargas d’água as tentativas de golpe começaram já em 2005 (época em que as primeiras “convicções” da Veja plantaram o jamais provado “mensalão”)?

O golpe de 2016, que derrubou o governo eleito de Dilma, oferece a quem queira ver nitidamente seus motivos fundamentais: manutenção de lucros (mesmo em tempo de forte crise mundial), e a consolidação do crime institucionalizado, cujo esquema formado na ditadura militar perambula especialmente entre o Congresso (da Bala-Bíblia-Boi) e as intocáveis corporações sonegadoras, passando pelos Tribunais e a meia-dúzia de “grandes irmãs” que monopolizam os meios de comunicação.

Entretanto, algo que até há pouco não parecia tão claro é: por que a tentativa de desestabilização do lulismo foi começada já em 2005, durante um primeiro governo Lula surpreendentemente conservador, quando o então presidente adulava as elites com a manutenção da austeridade neoliberal e um intenso crescimento de ganhos?

Muito embora Lula tenha passado a investir em programas sociais – como nunca antes na história –, este valor, contudo não dispendia quase nada do PIB: de fato, não passou de uma quantia ínfima, a verba pública que logrou diminuir, segundo a FAO-ONU, em 75% a “extrema-pobreza” no País; e isto enquanto, em tempos de bonanças, grandes empresas e bancos subtraiam do povo lucros récordes.

Na próxima coluna, vejamos alguns elementos que podem apoiar uma reflexão mais aprofundada sobre esse tema.

Uma hipótese que emerge com novos estudos econômicos e socioculturais (o que aqui se defende como um dos pilares do golpismo construído cuidadosamente entre 2005 e 2016), é a de que a revolta das classes abastadas neste período não foi das “classes altas”, e nem das classes propriamente “médias” (cujo poder de compra aumentou), mas das poderosas “classes médias-altas” (por exemplo industriais de médio porte, mas sem sua própria instituição financeira), parcelas das elites de gostos refinadíssimos, as quais, aproveitando menos as vacas gordas (dirigidas aos altos escalões), indignaram-se com o aumento dos impostos que Lula promoveu sobre os “produtos industrializados” de modo geral, e sobre os “importados”, em particular.

Por outro lado, e isso preocupava e preocupa as “classes altas”, é um tempo em que mesmo organizações próximas ao lulismo (caso da CUT), nos ares renovados daquele que parecia um “novo tempo”, voltam a levantar o debate sobre o mais justo imposto constitucional: aquele sobre as grandes fortunas – jamais debatido, mas previsto na Constituição (uma lei aliás recorrente em países europeus de elites menos “antinacionais”).

Como a popularidade de Lula no período não era das mais altas (e logo se previa que crescesse, como de fato cresceu), foi o momento certo para desestabilizá-lo, afastando o “perigo” da justiça social, por menor que fosse com o lulismo.

A isto se some a lenta disputa pela hegemonia ideológica – o que se faz em médio e longo prazo através dos investimentos em educação e democratização da mídia. Lula fez muito pouco pela educação, é certo, e quase nada pela comunicação alternativa ao pensamento único. Mas no Brasil em que juiz ganha salários mensais de R$ 200 mil e ainda esbraveja por “auxílio-educação” para seus filhinhos de até 24 anos, um País em que um panfleto do baixo nível da Veja (e não só político, mas cultural) é a leitura mais disseminada nas escolas e consultórios médicos e escritórios executivos desta seminação, convenhamos: o lulismo não foi assim tão pouco.

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