quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Furacão Harvey não veio do nada!

Por Naomi Klein, no site The Intercept-Brasil:

Este é o momento exato para falarmos de mudanças climáticas e de todas as outras injustiças sistêmicas – do perfilamento racial à austeridade econômica – que transformam desastres como o Harvey em catástrofes humanas.

Quem assiste à cobertura do furacão Harvey e das enchentes de Houston ouve muita gente dizendo que essa é uma tempestade sem precedentes; que ninguém conseguiu prevê-la e, portanto, se preparar adequadamente para ela.

Mas fala-se muito pouco dos motivos pelos quais esses eventos climáticos sem precedentes, que quebram recordes, estão acontecendo com tanta frequência – a ponto de a expressão “recorde” já ter se tornado um clichê meteorológico. Em outras palavras, não vamos ouvir muito, se é que vamos ouvir alguma coisa, sobre mudanças climáticas.

Dizem que isso vem de um desejo de não “politizar” uma tragédia humana no momento em que ela acontece. É até um impulso compreensível. Mas acontece o seguinte: cada vez que agimos como se um evento meteorológico sem precedentes nos atingisse do nada, um tipo de ato divino que ninguém previu, nós repórteres tomamos uma decisão altamente política. Decidimos poupar os sentimentos das pessoas e evitar controvérsias em vez de dizer a verdade, por mais difícil que seja. E a verdade é que esses eventos têm sido previstos há muito tempo por cientistas climáticos. Oceanos mais quentes provocam tempestades mais intensas. A elevação do nível do mar leva temporais a locais inéditos. Mais calor gera climas extremos: longos períodos secos são interrompidos por neve ou chuva pesadas, e os padrões não são mais tão previsíveis quanto eram.

Recordes – de seca, de tempestade, de incêndios florestais, ou apenas de calor – estão sendo quebrados ano após ano porque o planeta está significativamente mais quente do que jamais esteve desde que as temperaturas começaram a ser registradas. Cobrir acontecimentos como o Harvey ignorando esses fatos, não dando espaço para cientistas climáticos, nunca mencionando a decisão do presidente Donald Trump de se retirar dos acordos climáticos de Paris, é falhar no dever mais básico do jornalismo: o de apresentar e contextualizar fatos relevantes. Isso deixa o público com a falsa impressão de que são desastres sem causas, que nada poderia ter sido feito em termos de prevenção (e que nada pode ser feito agora para evitar que piorem no futuro).

Também é preciso ressaltar que a cobertura do Harvey tem sido altamente política desde bem antes da tempestade atingir o país. Houve uma discussão sem fim sobre se Trump levou a tempestade a sério ou não, especulações intermináveis sobre se esse furacão seria seu “momento Katrina” e muitas (e justas) denúncias de republicanos que votaram contra o pacote de ajuda do furacão Sandy e agora estendem a mão para o Texas. Isso é fazer política no meio do desastre. É exatamente o tipo de política partidária que está totalmente dentro da zona de conforto dos meios de comunicação convencionais, uma política que convenientemente evita se confrontar à realidade de que há um acerto bipartidário para colocar os interesses das empresas de combustíveis fósseis à frente da necessidade de um controle definitivo da poluição.

Em um mundo ideal, seríamos capazes de deixar a política de lado até passar a emergência imediata. Então, quando todos estivessem seguros, teríamos um debate público longo, reflexivo e bem embasado sobre as consequências políticas da crise que todos acabamos de testemunhar. Quais as implicações disso para a infraestrutura que construímos? E para o tipo de energia da qual dependemos ? Esta, aliás, é uma questão com sérias consequências para a indústria dominante da região mais atingida: petróleo e gás. E o que a hipervulnerabilidade de doentes, pobres e idososà tempestade nos diz sobre o tipo de dispositivos de segurança que precisamos desenvolver, dado o futuro espinhoso que temos pela frente?

Com milhares de pessoas desalojadas, talvez possamos discutir os inegáveis ??vínculos entre alterações climáticas e migração – do Sahel ao México –, e aproveitar a oportunidade para debater a necessidade de uma política de imigração que leve em conta que os EUA têm uma grande parcela de responsabilidade nas principais forças que expulsam milhões de pessoas de suas casas.
Mas não vivemos em um mundo que proporcione esse tipo de debate sério e ponderado. Vivemos em um mundo em que os poderes governantes se mostram todos muito dispostos a se aproveitar de uma crise de larga escala e do fato de tantos estarem focados em questões urgentes de vida e morte para abrir espaço para suas políticas mais retrógradas, que nos empurram ainda mais para um caminho que é merecidamente entendido como uma forma de “apartheid climático“. Vimos isso acontecer na época do furacão Katrina: os republicanos não perderam tempo, pressionaram para a aprovação de um sistema escolar totalmente privado, enfraqueceram o direito trabalhista e tributário, aumentaram a perfuração e o refino de petróleo e gás, e escancararam a porta para empresas mercenárias como a Blackwater. Mike Pence foi o principal arquiteto desse projeto cínico – e não devemos esperar menos no rescaldo do Harvey, agora que ele e Trump estão no comando.

Estamos vendo que Trump já está aproveitando a cobertura do furacão Harvey para conceder perdão ao extremamente controverso Joe Arpaio, o ex-xerife do Arizona condenado por racismo, e para aumentar a militarização das forças policiais dos EUA. São decisões particularmente nefastas, em um momento em que notícias dão conta de que postos de controle de imigração continuam a operar em trechos de rodovias que não foram sido inundados (desestimulando seriamente a evacuação de migrantes) e que autoridades municipais falam em aplicar as penas máximas para “saqueadores” (vale a pena lembrar que, depois do Katrina, vários moradores afro-americanos de Nova Orleans foram mortos pela polícia por conta dessa retórica).

Em suma, a direita não perde tempo e vai explorar o Harvey ou qualquer outro desastre parecido para vender soluções falsas e catastróficas, como polícia militarizada, aumento na infraestrutura de petróleo e gás, serviços privatizados. Tudo isso significa que existe um imperativo moral para pessoas informadas e preocupadas: é preciso dar nome às verdadeiras raízes dessa crise e ligar os pontos entre poluição climática, racismo sistêmico, subfinanciamento de serviços sociais e excesso de financiamento da polícia. Também é preciso aproveitar o momento para pensar em soluções intersetoriais, que reduzam drasticamente as emissões e combatam todas as formas de desigualdade e injustiça (algo que já foi tentado pela organização The Leap e que vem sendo pensado por grupos como o Climate Justice Alliance há muito tempo).

E isso tem que ser feito já, justamente no momento em que os aviltantes custos humanos e econômicos da inação estão em plena exibição pública. Se falharmos, se hesitarmos devido a uma ideia equivocada do que é ou não é apropriado fazer durante uma crise, deixaremos a porta aberta para que agentes implacáveis explorem esse desastre para fins previsíveis e nefastos.

Outra verdade dolorosa é que a janela de oportunidade para esses debates está pouco a pouco se fechando. Não teremos qualquer tipo de discussão sobre políticas públicas depois que a emergência passar; a mídia voltará a cobrir obsessivamente os tweets de Trump e outras intrigas palacianas. Assim, embora possa parecer inadequado falar sobre a raiz do problema enquanto pessoas ainda estão presas dentro de casa, esse é o único momento em que a mídia vai ter algum interesse em falar sobre mudanças climáticas. Vale lembrar que a decisão de Trump de retirar os EUA do acordo climático de Paris – acontecimento que trará repercussões globais para as próximas décadas – recebeu cerca de dois dias de cobertura decente. E então a mídia voltou a falar da Rússia 24 horas por dia.

Há pouco mais de um ano, Fort McMurray, a cidade petrolífera no coração das areias betuminosas de Alberta, no Canadá, quase virou cinza. Por um tempo, o mundo ficou perplexo com as imagens de veículos enfileirados em uma única rodovia, com as chamas se fechando de cada lado. Na época, nos acusaram de insensibilidade e de culpar as vítimas porque falamos sobre como as mudanças climáticas estavam intensificando incêndios florestais como aquele. O maior tabu era fazer alguma conexão entre nosso planeta aquecido e a indústria de petróleo betuminoso de hidrocarbonetos pesados que alimenta Fort McMurray e empregava a maioria dos que tiveram que deixar suas casas. Não era hora para aquilo; o momento era de solidariedade, ajuda e não de perguntas difíceis.

Mas, claro, quando se considerou apropriado levantar essas questões, o foco da mídia já era outro. E hoje, enquanto Alberta pressiona por pelo menos três novos oleodutos para acomodar seus planos de aumentar a produção de areias betuminosas, aquele incêndio terrível e as lições que poderíamos tirar dele quase nunca vêm à tona. Há uma lição nisso tudo para Houston. A janela para contextualizar informações e tirar conclusões importantes é pequena. Não podemos deixar que se feche.

Falar abertamente sobre o que está alimentando esta era de catástrofes em série – mesmo enquanto elas se desenvolvem em tempo real – não é desrespeitoso com as pessoas que estão na linha de frente. Na verdade, é a única maneira de realmente honrar suas perdas, e nossa última esperança de evitar um futuro repleto de inúmeras vítimas.

* Tradução de Luiza Leite.

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