Por Renata Mielli, no site Mídia Ninja:
A divulgação da delação premiada de Antonio Palocci deu início a mais um capítulo da novela conduzida pelo juiz de primeira instância Sérgio Moro, a Operação Lava Jato. O ex-ministro proferiu em seu novo depoimento a frase perfeita para manchetes e escaladas dos grandes meios de comunicação hegemônicos: Lula e Odebrecht fizeram pacto de sangue. A sentença está sendo exibida desde ontem no destaque dos portais da Folha, Estadão, Globo, e repetida exaustivamente nos noticiários de rádio e TV.
Neste 07 de setembro, os três maiores jornais diários do Brasil usaram o “pacto de sangue” em suas manchetes principais. Não é mera coincidência e tampouco uma surpresa.
Afinal, como se aprende nos cursos de jornalismo país afora, uma boa manchete é aquela que causa impacto. E vamos combinar, essa é bem impactante para o padrão de jornalismo espetacularizado e sensacionalista que está sendo praticado por aqui.
Além disso, o “pacto de sangue” deu aos golpistas “a cabeça do Lula em uma bandeja”, como alguns articulistas da mídia têm avaliado. E a “cabeça” do Lula é o “prêmio” que a Lava Jato busca desde o seu início.
Afinal, será que ainda há alguma pessoa que creia de fato que esta operação coordenada por Moro e pela Polícia Federal é contra a corrupção?
O ‘timing’ do depoimento do Palocci também é para lá de conveniente: acontece no final da caravana do ex-presidente pelo nordeste, que mobilizou dezenas de milhares de pessoas em apoio ao Lula (convenientemente omitida pela grande mídia) e na véspera da estréia do filme sobre Moro e a Lava Jato “Polícia Federal, a Lei é para Todos”.
Uma coisa não podemos negar, esse pessoal que organiza o consórcio midiático-jurídico que conduz o golpe no Brasil é bem sincronizado.
O mundo da delação premiada e do domínio do fato
Pessoas – cujas reputações foram jogadas na lama pelos meios de comunicação – são levadas em condução coercitiva, tem prisões preventivas decretadas e ficam encarceradas por meses. Na Papuda – Guantánamo brasileira – sofrem todo tipo de pressão psicológica e outras das quais não sabemos ao certo para afirmar. Algumas são condenadas há anos de prisão. De repente, recebem a proposta de serem soltas ou terem suas penas reduzidas caso “colaborem” com as investigações.
Não é difícil imaginar que diante desta possibilidade a pessoa, então, fala o que sabe e o que não sabe, pode falar na verdade o que quiser para receber o proposto pelo acordo. Exatamente igual o castigo que se dá a uma criança: me conta a verdade que eu te tiro do castigo. Adivinha, a criança ou a pessoa vai dizer? Exatamente o que você quer ouvir para se livrar do castigo.
Esta não é uma descrição genérica de um filme policial tipo B, mas é o que está acontecendo atualmente no Brasil fora-da-lei. A pessoa fala o que quer e não precisa ter nenhuma prova para dar sustentação para sua história. A polícia e a Justiça acolhem os depoimentos como se provas fossem e condenam pessoas. Tudo isso feito à luz de uma superexposição midiática que dá uma verniz de credibilidade ao processo e conduz a opinião pública a apoiar os justiçamentos que estão em curso no país.
Já falei bastante aqui sobre a Lava Jato. Mas em particular na coluna “A mídia monopolizada também condenou Lula” na qual descrevo a similaridade entre a operação italiana Mani pulite e a Lava Jato na articulação entre judiciário e mídia. Em artigo sobre a inspiração italiana, Moro destaca exatamente essa colaboração: “As prisões, confissões e a publicidade conferida às informações obtidas geraram um círculo virtuoso, consistindo na única explicação possível para a magnitude dos resultados obtidos pela operação mani pulite”, afirma o juiz.
Esse é Brasil da Lava Jato, onde os direitos civis estão sendo suprimidos, as leis e a Constituição estão sendo rasgadas com o apoio da mídia hegemônica.
Isso explica o frenesi sobre a frase de efeito de Antonio Palocci. Ninguém está preocupado se ele está falando a verdade ou se está mentindo, as pessoas querem sangue…. e ganharam.
De brinde, ainda ouviram de Palocci outra coisa que estavam esperando há muito tempo para dar sentido a toda esta história: Lula trabalhou para “atrapalhar” a Operação Lava Jato, a novelinha líder de audiência do momento. A afirmação de Palocci não está baseada em nenhuma prova material. Mas é também bem oportuna para enterrar uma verdade bem inconveniente, esta sim baseada em prova material: o diálogo gravado entre Romero Jucá e Sérgio Machado “um acordo nacional, com o Supremo, com tudo”.
“Eu não sou as coisas e me revolto”
O golpe conduzido pela aliança entre mídia e judiciário está levando o Brasil à barbárie política, social e econômica. O nível de irresponsabilidade é gravíssimo. O golpe derrotou as instituições para abrir caminho para a desnacionalização da economia, para a desestruturação do Estado e dos serviços públicos, para a desregulamentação das relações do trabalho. Estão brincando com fogo.
Num país em que um político guarda 51 milhões em malas num apartamento e continua solto, em que o governo propõe fechar uma universidade pública como condição para receber dinheiro, em que um jovem negro foi condenado e está preso por participar de uma manifestação, em que a liberdade de expressão sofre violações cotidianas, em que uma lei autoriza que grávidas trabalhem em lugares insalubres, uma frase de efeito amplificada pela mídia vale mais que provas e imagens.
Empresto da genialidade de Drummond pensamentos para dizer que precisamos fazer alguma coisa.
Temos que reagir a este tempo de homens partidos, no qual os homens pedem carne, fogo, sapatos e sangue. Temos que sair da zona de conforto, temos que sair da hipnose, temos que transformar o vento em tempestade para defender a democracia, o Brasil e nossos direitos. Para impedir a instalação de uma ditadura judicial no país. “São tão fortes as coisas! Mas eu não sou as coisas e me revolto”.
A divulgação da delação premiada de Antonio Palocci deu início a mais um capítulo da novela conduzida pelo juiz de primeira instância Sérgio Moro, a Operação Lava Jato. O ex-ministro proferiu em seu novo depoimento a frase perfeita para manchetes e escaladas dos grandes meios de comunicação hegemônicos: Lula e Odebrecht fizeram pacto de sangue. A sentença está sendo exibida desde ontem no destaque dos portais da Folha, Estadão, Globo, e repetida exaustivamente nos noticiários de rádio e TV.
Neste 07 de setembro, os três maiores jornais diários do Brasil usaram o “pacto de sangue” em suas manchetes principais. Não é mera coincidência e tampouco uma surpresa.
Afinal, como se aprende nos cursos de jornalismo país afora, uma boa manchete é aquela que causa impacto. E vamos combinar, essa é bem impactante para o padrão de jornalismo espetacularizado e sensacionalista que está sendo praticado por aqui.
Além disso, o “pacto de sangue” deu aos golpistas “a cabeça do Lula em uma bandeja”, como alguns articulistas da mídia têm avaliado. E a “cabeça” do Lula é o “prêmio” que a Lava Jato busca desde o seu início.
Afinal, será que ainda há alguma pessoa que creia de fato que esta operação coordenada por Moro e pela Polícia Federal é contra a corrupção?
O ‘timing’ do depoimento do Palocci também é para lá de conveniente: acontece no final da caravana do ex-presidente pelo nordeste, que mobilizou dezenas de milhares de pessoas em apoio ao Lula (convenientemente omitida pela grande mídia) e na véspera da estréia do filme sobre Moro e a Lava Jato “Polícia Federal, a Lei é para Todos”.
Uma coisa não podemos negar, esse pessoal que organiza o consórcio midiático-jurídico que conduz o golpe no Brasil é bem sincronizado.
O mundo da delação premiada e do domínio do fato
Pessoas – cujas reputações foram jogadas na lama pelos meios de comunicação – são levadas em condução coercitiva, tem prisões preventivas decretadas e ficam encarceradas por meses. Na Papuda – Guantánamo brasileira – sofrem todo tipo de pressão psicológica e outras das quais não sabemos ao certo para afirmar. Algumas são condenadas há anos de prisão. De repente, recebem a proposta de serem soltas ou terem suas penas reduzidas caso “colaborem” com as investigações.
Não é difícil imaginar que diante desta possibilidade a pessoa, então, fala o que sabe e o que não sabe, pode falar na verdade o que quiser para receber o proposto pelo acordo. Exatamente igual o castigo que se dá a uma criança: me conta a verdade que eu te tiro do castigo. Adivinha, a criança ou a pessoa vai dizer? Exatamente o que você quer ouvir para se livrar do castigo.
Esta não é uma descrição genérica de um filme policial tipo B, mas é o que está acontecendo atualmente no Brasil fora-da-lei. A pessoa fala o que quer e não precisa ter nenhuma prova para dar sustentação para sua história. A polícia e a Justiça acolhem os depoimentos como se provas fossem e condenam pessoas. Tudo isso feito à luz de uma superexposição midiática que dá uma verniz de credibilidade ao processo e conduz a opinião pública a apoiar os justiçamentos que estão em curso no país.
Já falei bastante aqui sobre a Lava Jato. Mas em particular na coluna “A mídia monopolizada também condenou Lula” na qual descrevo a similaridade entre a operação italiana Mani pulite e a Lava Jato na articulação entre judiciário e mídia. Em artigo sobre a inspiração italiana, Moro destaca exatamente essa colaboração: “As prisões, confissões e a publicidade conferida às informações obtidas geraram um círculo virtuoso, consistindo na única explicação possível para a magnitude dos resultados obtidos pela operação mani pulite”, afirma o juiz.
Esse é Brasil da Lava Jato, onde os direitos civis estão sendo suprimidos, as leis e a Constituição estão sendo rasgadas com o apoio da mídia hegemônica.
Isso explica o frenesi sobre a frase de efeito de Antonio Palocci. Ninguém está preocupado se ele está falando a verdade ou se está mentindo, as pessoas querem sangue…. e ganharam.
De brinde, ainda ouviram de Palocci outra coisa que estavam esperando há muito tempo para dar sentido a toda esta história: Lula trabalhou para “atrapalhar” a Operação Lava Jato, a novelinha líder de audiência do momento. A afirmação de Palocci não está baseada em nenhuma prova material. Mas é também bem oportuna para enterrar uma verdade bem inconveniente, esta sim baseada em prova material: o diálogo gravado entre Romero Jucá e Sérgio Machado “um acordo nacional, com o Supremo, com tudo”.
“Eu não sou as coisas e me revolto”
O golpe conduzido pela aliança entre mídia e judiciário está levando o Brasil à barbárie política, social e econômica. O nível de irresponsabilidade é gravíssimo. O golpe derrotou as instituições para abrir caminho para a desnacionalização da economia, para a desestruturação do Estado e dos serviços públicos, para a desregulamentação das relações do trabalho. Estão brincando com fogo.
Num país em que um político guarda 51 milhões em malas num apartamento e continua solto, em que o governo propõe fechar uma universidade pública como condição para receber dinheiro, em que um jovem negro foi condenado e está preso por participar de uma manifestação, em que a liberdade de expressão sofre violações cotidianas, em que uma lei autoriza que grávidas trabalhem em lugares insalubres, uma frase de efeito amplificada pela mídia vale mais que provas e imagens.
Empresto da genialidade de Drummond pensamentos para dizer que precisamos fazer alguma coisa.
Temos que reagir a este tempo de homens partidos, no qual os homens pedem carne, fogo, sapatos e sangue. Temos que sair da zona de conforto, temos que sair da hipnose, temos que transformar o vento em tempestade para defender a democracia, o Brasil e nossos direitos. Para impedir a instalação de uma ditadura judicial no país. “São tão fortes as coisas! Mas eu não sou as coisas e me revolto”.
***
Nosso Tempo
I
Esse é tempo de partido,
tempo de homens partidos.
Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.
Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.
Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.
II
Esse é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.
Mudou-se a rua da infância.
E o vestido vermelho
vermelho
cobre a nudez do amor,
ao relento, no vale.
Símbolos obscuros se multiplicam.
Guerra, verdade, flores?
Dos laboratórios platônicos mobilizados
vem um sopro que cresta as faces
e dissipa, na praia, as palavras.
A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedâneo da estrela nas mãos.
Certas partes de nós como brilham! São unhas,
anéis, pérolas, cigarros, lanternas,
são partes mais íntimas,
e pulsação, o ofego,
e o ar da noite é o estritamente necessário
para continuar, e continuamos.
III
E continuamos. É tempo de muletas.
Tempo de mortos faladores
e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,
mas ainda é tempo de viver e contar.
Certas histórias não se perderam.
Conheço bem esta casa,
pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se,
a sala grande conduz a quartos terríveis,
como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido na mesa,
conduz à copa de frutas ácidas,
ao claro jardim central, à água
que goteja e segreda
o incesto, a bênção, a partida,
conduz às celas fechadas, que contêm:
papéis?
crimes?
moedas?
Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiados urbano,
ó surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta,
moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos, portas rangentes, solidão e asco,
pessoas e coisas enigmáticas, contai;
capa de poeira dos pianos desmantelados, contai;
velhos selos do imperador, aparelhos de porcelana partidos, contai;
ossos na rua, fragmentos de jornal, colchetes no chão da
costureira, luto no braço, pombas, cães errantes, animais caçados, contai.
Tudo tão difícil depois que vos calastes…
E muitos de vós nunca se abriram.
IV
É tempo de meio silêncio,
de boca gelada e murmúrio,
palavra indireta, aviso
na esquina. Tempo de cinco sentidos
num só. O espião janta conosco.
É tempo de cortinas pardas,
de céu neutro, política
na maçã, no santo, no gozo,
amor e desamor, cólera
branda, gim com água tônica,
olhos pintados,
dentes de vidro,
grotesca língua torcida.
A isso chamamos: balanço.
No beco,
apenas um muro,
sobre ele a polícia.
No céu da propaganda
aves anunciam
a glória.
No quarto,
irrisão e três colarinhos sujos.
V
Escuta a hora formidável do almoço
na cidade. Os escritórios, num passe, esvaziam-se.
As bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas vitaminosas.
Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos!
Os subterrâneos da fome choram caldo de sopa,
olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso.
Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida,
mais tarde será o de amor.
Lentamente os escritórios se recuperam, e os negócios, forma indecisa, evoluem.
O esplêndido negócio insinua-se no tráfego.
Multidões que o cruzam não vêem. É sem cor e sem cheiro.
Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul,
vem na areia, no telefone, na batalha de aviões,
toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.
Escuta a hora espandongada da volta.
Homem depois de homem, mulher, criança, homem,
roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa,
homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem,
imaginam esperar qualquer coisa,
e se quedam mudos, escoam-se passo a passo, sentam-se,
últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa,
já noite, entre muros apagados, numa suposta cidade, imaginam.
Escuta a pequena hora noturna de compensação, leituras, apelo ao cassino, passeio na praia,
o corpo ao lado do corpo, afinal distendido,
com as calças despido o incômodo pensamento de escravo,
escuta o corpo ranger, enlaçar, refluir,
errar em objetos remotos e, sob eles soterrados sem dor,
confiar-se ao que bem me importa
do sono.
Escuta o horrível emprego do dia
em todos os países de fala humana,
a falsificação das palavras pingando nos jornais,
o mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo com flores,
os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar,
a constelação das formigas e usurários,
a má poesia, o mau romance,
os frágeis que se entregam à proteção do basilisco,
o homem feio, de mortal feiúra,
passeando de bote
num sinistro crepúsculo de sábado.
VI
Nos porões da família
orquídeas e opções
de compra e desquite.
A gravidez elétrica
já não traz delíquios.
Crianças alérgicas
trocam-se; reformam-se.
Há uma implacável
guerra às baratas.
Contam-se histórias
por correspondência.
A mesa reúne
um copo, uma faca,
e a cama devora
tua solidão.
Salva-se a honra
e a herança do gado.
VII
Ou não se salva, e é o mesmo. Há soluções, há bálsamos
para cada hora e dor. Há fortes bálsamos,
dores de classe, de sangrenta fúria
e plácido rosto. E há mínimos
bálsamos, recalcadas dores ignóbeis,
lesões que nenhum governo autoriza,
não obstante doem,
melancolias insubornáveis,
ira, reprovação, desgosto
desse chapéu velho, da rua lodosa, do Estado.
Há o pranto no teatro,
no palco ? no público ? nas poltronas ?
há sobretudo o pranto no teatro,
já tarde, já confuso,
ele embacia as luzes, se engolfa no linóleo,
vai minar nos armazéns, nos becos coloniais onde passeiam ratos noturnos,
vai molhar, na roça madura, o milho ondulante,
e secar ao sol, em poça amarga.
E dentro do pranto minha face trocista,
meu olho que ri e despreza,
minha repugnância total por vosso lirismo deteriorado,
que polui a essência mesma dos diamantes.
VIII
O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
prometa ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta
um verme.
I
Esse é tempo de partido,
tempo de homens partidos.
Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.
Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.
Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.
II
Esse é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.
Mudou-se a rua da infância.
E o vestido vermelho
vermelho
cobre a nudez do amor,
ao relento, no vale.
Símbolos obscuros se multiplicam.
Guerra, verdade, flores?
Dos laboratórios platônicos mobilizados
vem um sopro que cresta as faces
e dissipa, na praia, as palavras.
A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedâneo da estrela nas mãos.
Certas partes de nós como brilham! São unhas,
anéis, pérolas, cigarros, lanternas,
são partes mais íntimas,
e pulsação, o ofego,
e o ar da noite é o estritamente necessário
para continuar, e continuamos.
III
E continuamos. É tempo de muletas.
Tempo de mortos faladores
e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,
mas ainda é tempo de viver e contar.
Certas histórias não se perderam.
Conheço bem esta casa,
pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se,
a sala grande conduz a quartos terríveis,
como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido na mesa,
conduz à copa de frutas ácidas,
ao claro jardim central, à água
que goteja e segreda
o incesto, a bênção, a partida,
conduz às celas fechadas, que contêm:
papéis?
crimes?
moedas?
Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiados urbano,
ó surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta,
moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos, portas rangentes, solidão e asco,
pessoas e coisas enigmáticas, contai;
capa de poeira dos pianos desmantelados, contai;
velhos selos do imperador, aparelhos de porcelana partidos, contai;
ossos na rua, fragmentos de jornal, colchetes no chão da
costureira, luto no braço, pombas, cães errantes, animais caçados, contai.
Tudo tão difícil depois que vos calastes…
E muitos de vós nunca se abriram.
IV
É tempo de meio silêncio,
de boca gelada e murmúrio,
palavra indireta, aviso
na esquina. Tempo de cinco sentidos
num só. O espião janta conosco.
É tempo de cortinas pardas,
de céu neutro, política
na maçã, no santo, no gozo,
amor e desamor, cólera
branda, gim com água tônica,
olhos pintados,
dentes de vidro,
grotesca língua torcida.
A isso chamamos: balanço.
No beco,
apenas um muro,
sobre ele a polícia.
No céu da propaganda
aves anunciam
a glória.
No quarto,
irrisão e três colarinhos sujos.
V
Escuta a hora formidável do almoço
na cidade. Os escritórios, num passe, esvaziam-se.
As bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas vitaminosas.
Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos!
Os subterrâneos da fome choram caldo de sopa,
olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso.
Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida,
mais tarde será o de amor.
Lentamente os escritórios se recuperam, e os negócios, forma indecisa, evoluem.
O esplêndido negócio insinua-se no tráfego.
Multidões que o cruzam não vêem. É sem cor e sem cheiro.
Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul,
vem na areia, no telefone, na batalha de aviões,
toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.
Escuta a hora espandongada da volta.
Homem depois de homem, mulher, criança, homem,
roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa,
homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem,
imaginam esperar qualquer coisa,
e se quedam mudos, escoam-se passo a passo, sentam-se,
últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa,
já noite, entre muros apagados, numa suposta cidade, imaginam.
Escuta a pequena hora noturna de compensação, leituras, apelo ao cassino, passeio na praia,
o corpo ao lado do corpo, afinal distendido,
com as calças despido o incômodo pensamento de escravo,
escuta o corpo ranger, enlaçar, refluir,
errar em objetos remotos e, sob eles soterrados sem dor,
confiar-se ao que bem me importa
do sono.
Escuta o horrível emprego do dia
em todos os países de fala humana,
a falsificação das palavras pingando nos jornais,
o mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo com flores,
os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar,
a constelação das formigas e usurários,
a má poesia, o mau romance,
os frágeis que se entregam à proteção do basilisco,
o homem feio, de mortal feiúra,
passeando de bote
num sinistro crepúsculo de sábado.
VI
Nos porões da família
orquídeas e opções
de compra e desquite.
A gravidez elétrica
já não traz delíquios.
Crianças alérgicas
trocam-se; reformam-se.
Há uma implacável
guerra às baratas.
Contam-se histórias
por correspondência.
A mesa reúne
um copo, uma faca,
e a cama devora
tua solidão.
Salva-se a honra
e a herança do gado.
VII
Ou não se salva, e é o mesmo. Há soluções, há bálsamos
para cada hora e dor. Há fortes bálsamos,
dores de classe, de sangrenta fúria
e plácido rosto. E há mínimos
bálsamos, recalcadas dores ignóbeis,
lesões que nenhum governo autoriza,
não obstante doem,
melancolias insubornáveis,
ira, reprovação, desgosto
desse chapéu velho, da rua lodosa, do Estado.
Há o pranto no teatro,
no palco ? no público ? nas poltronas ?
há sobretudo o pranto no teatro,
já tarde, já confuso,
ele embacia as luzes, se engolfa no linóleo,
vai minar nos armazéns, nos becos coloniais onde passeiam ratos noturnos,
vai molhar, na roça madura, o milho ondulante,
e secar ao sol, em poça amarga.
E dentro do pranto minha face trocista,
meu olho que ri e despreza,
minha repugnância total por vosso lirismo deteriorado,
que polui a essência mesma dos diamantes.
VIII
O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
prometa ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta
um verme.
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