Por José Geraldo Couto, no site Vermelho:
Nota prévia necessária: este texto não entrará no mérito da chamada Operação Lava Jato, seja em sua pertinência, seja em seus resultados para a vida política do Brasil. Nem se falará sobre a controversa ocultação dos investidores do filme Polícia Federal, num país em que os patrocinadores estão sempre ávidos por ver seus nomes na tela. Há outros foros mais apropriados para essas discussões. O interesse aqui é falar de cinema, isto é, observar como um determinado ponto de vista sobre a sociedade e o mundo se configura em espetáculo cinematográfico, ou, inversamente, como um espetáculo cinematográfico revela um determinado ponto de vista sobre a sociedade e o mundo.
Polícia Federal (passemos ao largo da piada do subtítulo: A lei é para todos) é um filme de mocinho. O que caracteriza o filme de mocinho, seja ele faroeste, policial, melodrama ou ficção científica, é uma simplificação extrema dos dados do real, eliminando ambiguidades e nuances para construir um universo dramático em que o bem e o mal estão muito bem delimitados. E a estratégia narrativa consiste em manipular o olhar e as emoções do espectador de modo a induzi-lo a tomar partido e torcer por um dos lados do conflito – o lado do “bem”, evidentemente.
O filme de Marcelo Antunez (que anteriormente dirigiu Qualquer gato vira-lata 2, Até que a sorte nos separe 3 e Um suburbano sortudo) se encaixa muito bem no figurino. Desde o prólogo, a bem da verdade desde o título, sabemos quem são os mocinhos: um grupo de aplicados e destemidos policiais federais, liderados pelo delegado Ivan (Antonio Calloni), que também faz a narração em off. O vilão, inicialmente, é a corrupção, ainda um tanto em abstrato, mas já sugerida pela epígrafe do filme, um texto célebre de Rui Barbosa.
Narrativa standard
Há uma breve sequência de ação que serve de prólogo e cartão de visitas para mostrar uma agilidade narrativa de filme policial americano padrão: a abordagem de um caminhão que transporta drogas, filmada com tomadas aéreas, montagem acelerada, alternância de ambientes entre o quartel-general da operação e o local do confronto, música ruidosa num crescendo de suspense, enfim, a receita toda. Corta para um bem-humorado clipe composto de animação e registros documentais para contextualizar a corrupção crônica na história brasileira.
A partir daí o que veremos será o esforço da equipe liderada por Ivan para ir cada vez mais fundo no desvendamento de uma rede de corrupção que entrelaça promiscuamente doleiros, traficantes, grandes empresários, agentes públicos corruptos e, finalmente, políticos próximos ao poder. Um argumento, como se vê, não muito distante dos grandes filmes políticos italianos dos anos 1960 e 70, de cineastas como Francesco Rosi, Elio Petri, Giuliano Montaldo e Damiano Damiani.
Só que, diferentemente do que ocorria naquele longínquo cinema italiano, aqui toda complexidade política e toda ambiguidade moral são abolidas em favor de uma apresentação francamente maniqueísta, em que os integrantes da força-tarefa da Lava Jato são integralmente honrados, sérios, solidários, bem-intencionados, empenhados em acabar com a corrupção no país e, quem sabe, no mundo. Nós os vemos nas suas reuniões de trabalho e, eventualmente, em sua vida privada. Um deles em especial, o delegado Julio Cesar (Bruce Gomlevsky), é o lugar do melodrama na estrutura do filme. Ele acompanha a quimioterapia da mãe, visita o pai no hospital depois de um enfarte, discute política com o velho etc.
O próprio juiz Sergio Moro (Marcelo Serrado), estrela máxima da operação e único representante da lei cujo nome verdadeiro é mantido no filme, tem relativamente poucas aparições, mas todas significativas: aparece lavando louça, conversando amistosamente com o filho adolescente, aquiescendo respeitosamente às decisões da esposa; ouvindo compenetrado os dados apresentados pelos investigadores; meditando em silêncio sobre a conveniência de divulgar escutas ilegais. Lembra o soberano justo e consciencioso que tem o poder absoluto nas mãos, mas escuta seus assessores e conselheiros antes de decidir o que é melhor para o seu povo.
A lei como estorvo
Mas talvez a cena mais significativa de Moro seja a primeira, em que ele aparece dando uma aula na faculdade. Ele está discorrendo sobre a Operação Mãos Limpas e diz, encerrando a aula: “Mas o Parlamento italiano aprovou leis que acabaram por estrangular (ou estancar, ou inviabilizar, não me lembro) a operação”.
E aqui entramos na questão mais delicada do filme. Se os membros da força-tarefa são os mocinhos, quem são os bandidos? O mal absoluto é a corrupção, já sabemos, mas quem são seus representantes? Quem são os inimigos? Eles vão aparecendo, um a um: o doleiro, o diretor de estatal corrupto, o empresário corruptor, até que, da metade do filme para a frente, tudo conflui para um inimigo número um, chamado de “rei” ou de “chefe” – e a narrativa passa a se resumir a uma “caça ao Lula”, assim como os intocáveis de Eliot Ness visam chegar a Al Capone, o capo di tutti capi.
Antes de examinar como esse vilão-mor, vivido por Ary Fontoura, é apresentado no filme, cabe observar quais são os obstáculos que os mocinhos têm que enfrentar para chegar até ele. Aí é que entra a aula de Moro.
Entre os entraves à ação da Lava Jato estão o STF (“Se passar para as mãos do Supremo já era”, queixa-se um investigador), os movimentos sociais (“A CUT, o MST e o MTST vão bloquear os acessos”, alerta outro, quando da condução coercitiva do ex-presidente) e, mais sutilmente, a própria lei. Não por acaso, num momento crucial da história, o juiz-herói decide passar por cima da lei em nome de “um bem maior”. Ao criticar as leis italianas que teriam refreado a Operação Mãos Limpas, ele prepara o terreno para justificar moralmente o eventual desrespeito à lei brasileira. Os fins nobres justificando os meios.
Quanto aos inimigos “de carne e osso” – doleiros, empresários desonestos, agentes públicos corruptos –, eles são sempre apresentados de forma chapada, unidimensional, sem direito a matizes. Tomemos como exemplo a doleira Nelma Kodama, vista numa única e breve cena: nua numa banheira de espuma, com um copo de bebida na mão, enquanto o narrador diz em off que ela era amante de Youssef (Roberto Berindelli). e de um outro doleiro. É o mais batido clichê da depravação moral. O próprio Youssef é invariavelmente sarcástico, cínico. Já Paulo Roberto Costa (Roney Facchini) é pusilânime, medroso, submisso à mulher e à filha.
E chegamos então ao vilão supremo, contra quem os realizadores a esta altura já mobilizaram emocionalmente a plateia. O clímax da narrativa é sua condução coercitiva, vista quase como um trailer de sua aguardada prisão definitiva. Só algum tipo de transe dos espectadores os impede de rir quando o delegado que chefia a operação diz a Lula que o depoimento não pode ser tomado em sua casa e que ele terá que ser levado ao aeroporto de Congonhas (!) para “seu próprio conforto e segurança”, para não ser exposto (sic). Mas esta talvez seja uma contradição da vida real, não propriamente do filme.
O Lula construído por Ary Fontoura é um personagem desagradável, irascível e arrogante, desprovido de carisma e humor (qualidades que não se pode negar ao ex-presidente).
Vejamos um detalhe dessa caracterização. De acordo com o noticiário da época, ao ser abordado por policiais em seu apartamento, o ex-presidente brincou: “Cadê o japonês da Federal?”, provocando risos nos próprios agentes. No filme a cena é bem outra. Lula/Fontoura diz, agressivo: “Não veio aquele japonês? Ainda bem, senão aquele ladrão ia roubar tudo aqui. Já falei para o Cardozo mandar prender esse cara”.
Vilões unidimensionais
O que todos esses personagens “do mal” têm em comum, além da hipocrisia, é a ausência de qualquer vestígio de qualidade positiva, ou mesmo de humanidade. É como se o filme, em seu didatismo, não quisesse correr o risco de permitir uma mínima empatia e causar confusão na mente do espectador infantilizado de nosso tempo.
O problema, a meu ver, é que o terreno da história política é bem mais movediço e complexo do que é capaz de dar conta esse maniqueísmo primário. Sobretudo de uma história política ainda em andamento, com o país dilacerado e as feridas em carne viva.
Mas calma lá. Polícia Federal tenta se antecipar a essa possível crítica e acenar com uma visão mais nuançada: perto do final, o personagem-narrador Ivan se pergunta: “A quem será que estamos servindo? A quais objetivos reais?” Pode ser só um álibi retórico. Mas uma coda documental, mostrando a prisão do primo do senador Aécio Neves com uma mala recheada de dinheiro, aponta para o prosseguimento da investigação e anuncia a realização de um novo filme. A exemplo do que houve com Tropa de elite, essa continuação poderia se chamar Polícia Federal 2 – O inimigo agora é outro. Cabe esperar para ver.
* José Gerado Couto é crítico de cinema e tradutor. Publica suas criticas no blog do IMS.
Nota prévia necessária: este texto não entrará no mérito da chamada Operação Lava Jato, seja em sua pertinência, seja em seus resultados para a vida política do Brasil. Nem se falará sobre a controversa ocultação dos investidores do filme Polícia Federal, num país em que os patrocinadores estão sempre ávidos por ver seus nomes na tela. Há outros foros mais apropriados para essas discussões. O interesse aqui é falar de cinema, isto é, observar como um determinado ponto de vista sobre a sociedade e o mundo se configura em espetáculo cinematográfico, ou, inversamente, como um espetáculo cinematográfico revela um determinado ponto de vista sobre a sociedade e o mundo.
Polícia Federal (passemos ao largo da piada do subtítulo: A lei é para todos) é um filme de mocinho. O que caracteriza o filme de mocinho, seja ele faroeste, policial, melodrama ou ficção científica, é uma simplificação extrema dos dados do real, eliminando ambiguidades e nuances para construir um universo dramático em que o bem e o mal estão muito bem delimitados. E a estratégia narrativa consiste em manipular o olhar e as emoções do espectador de modo a induzi-lo a tomar partido e torcer por um dos lados do conflito – o lado do “bem”, evidentemente.
O filme de Marcelo Antunez (que anteriormente dirigiu Qualquer gato vira-lata 2, Até que a sorte nos separe 3 e Um suburbano sortudo) se encaixa muito bem no figurino. Desde o prólogo, a bem da verdade desde o título, sabemos quem são os mocinhos: um grupo de aplicados e destemidos policiais federais, liderados pelo delegado Ivan (Antonio Calloni), que também faz a narração em off. O vilão, inicialmente, é a corrupção, ainda um tanto em abstrato, mas já sugerida pela epígrafe do filme, um texto célebre de Rui Barbosa.
Narrativa standard
Há uma breve sequência de ação que serve de prólogo e cartão de visitas para mostrar uma agilidade narrativa de filme policial americano padrão: a abordagem de um caminhão que transporta drogas, filmada com tomadas aéreas, montagem acelerada, alternância de ambientes entre o quartel-general da operação e o local do confronto, música ruidosa num crescendo de suspense, enfim, a receita toda. Corta para um bem-humorado clipe composto de animação e registros documentais para contextualizar a corrupção crônica na história brasileira.
A partir daí o que veremos será o esforço da equipe liderada por Ivan para ir cada vez mais fundo no desvendamento de uma rede de corrupção que entrelaça promiscuamente doleiros, traficantes, grandes empresários, agentes públicos corruptos e, finalmente, políticos próximos ao poder. Um argumento, como se vê, não muito distante dos grandes filmes políticos italianos dos anos 1960 e 70, de cineastas como Francesco Rosi, Elio Petri, Giuliano Montaldo e Damiano Damiani.
Só que, diferentemente do que ocorria naquele longínquo cinema italiano, aqui toda complexidade política e toda ambiguidade moral são abolidas em favor de uma apresentação francamente maniqueísta, em que os integrantes da força-tarefa da Lava Jato são integralmente honrados, sérios, solidários, bem-intencionados, empenhados em acabar com a corrupção no país e, quem sabe, no mundo. Nós os vemos nas suas reuniões de trabalho e, eventualmente, em sua vida privada. Um deles em especial, o delegado Julio Cesar (Bruce Gomlevsky), é o lugar do melodrama na estrutura do filme. Ele acompanha a quimioterapia da mãe, visita o pai no hospital depois de um enfarte, discute política com o velho etc.
O próprio juiz Sergio Moro (Marcelo Serrado), estrela máxima da operação e único representante da lei cujo nome verdadeiro é mantido no filme, tem relativamente poucas aparições, mas todas significativas: aparece lavando louça, conversando amistosamente com o filho adolescente, aquiescendo respeitosamente às decisões da esposa; ouvindo compenetrado os dados apresentados pelos investigadores; meditando em silêncio sobre a conveniência de divulgar escutas ilegais. Lembra o soberano justo e consciencioso que tem o poder absoluto nas mãos, mas escuta seus assessores e conselheiros antes de decidir o que é melhor para o seu povo.
A lei como estorvo
Mas talvez a cena mais significativa de Moro seja a primeira, em que ele aparece dando uma aula na faculdade. Ele está discorrendo sobre a Operação Mãos Limpas e diz, encerrando a aula: “Mas o Parlamento italiano aprovou leis que acabaram por estrangular (ou estancar, ou inviabilizar, não me lembro) a operação”.
E aqui entramos na questão mais delicada do filme. Se os membros da força-tarefa são os mocinhos, quem são os bandidos? O mal absoluto é a corrupção, já sabemos, mas quem são seus representantes? Quem são os inimigos? Eles vão aparecendo, um a um: o doleiro, o diretor de estatal corrupto, o empresário corruptor, até que, da metade do filme para a frente, tudo conflui para um inimigo número um, chamado de “rei” ou de “chefe” – e a narrativa passa a se resumir a uma “caça ao Lula”, assim como os intocáveis de Eliot Ness visam chegar a Al Capone, o capo di tutti capi.
Antes de examinar como esse vilão-mor, vivido por Ary Fontoura, é apresentado no filme, cabe observar quais são os obstáculos que os mocinhos têm que enfrentar para chegar até ele. Aí é que entra a aula de Moro.
Entre os entraves à ação da Lava Jato estão o STF (“Se passar para as mãos do Supremo já era”, queixa-se um investigador), os movimentos sociais (“A CUT, o MST e o MTST vão bloquear os acessos”, alerta outro, quando da condução coercitiva do ex-presidente) e, mais sutilmente, a própria lei. Não por acaso, num momento crucial da história, o juiz-herói decide passar por cima da lei em nome de “um bem maior”. Ao criticar as leis italianas que teriam refreado a Operação Mãos Limpas, ele prepara o terreno para justificar moralmente o eventual desrespeito à lei brasileira. Os fins nobres justificando os meios.
Quanto aos inimigos “de carne e osso” – doleiros, empresários desonestos, agentes públicos corruptos –, eles são sempre apresentados de forma chapada, unidimensional, sem direito a matizes. Tomemos como exemplo a doleira Nelma Kodama, vista numa única e breve cena: nua numa banheira de espuma, com um copo de bebida na mão, enquanto o narrador diz em off que ela era amante de Youssef (Roberto Berindelli). e de um outro doleiro. É o mais batido clichê da depravação moral. O próprio Youssef é invariavelmente sarcástico, cínico. Já Paulo Roberto Costa (Roney Facchini) é pusilânime, medroso, submisso à mulher e à filha.
E chegamos então ao vilão supremo, contra quem os realizadores a esta altura já mobilizaram emocionalmente a plateia. O clímax da narrativa é sua condução coercitiva, vista quase como um trailer de sua aguardada prisão definitiva. Só algum tipo de transe dos espectadores os impede de rir quando o delegado que chefia a operação diz a Lula que o depoimento não pode ser tomado em sua casa e que ele terá que ser levado ao aeroporto de Congonhas (!) para “seu próprio conforto e segurança”, para não ser exposto (sic). Mas esta talvez seja uma contradição da vida real, não propriamente do filme.
O Lula construído por Ary Fontoura é um personagem desagradável, irascível e arrogante, desprovido de carisma e humor (qualidades que não se pode negar ao ex-presidente).
Vejamos um detalhe dessa caracterização. De acordo com o noticiário da época, ao ser abordado por policiais em seu apartamento, o ex-presidente brincou: “Cadê o japonês da Federal?”, provocando risos nos próprios agentes. No filme a cena é bem outra. Lula/Fontoura diz, agressivo: “Não veio aquele japonês? Ainda bem, senão aquele ladrão ia roubar tudo aqui. Já falei para o Cardozo mandar prender esse cara”.
Vilões unidimensionais
O que todos esses personagens “do mal” têm em comum, além da hipocrisia, é a ausência de qualquer vestígio de qualidade positiva, ou mesmo de humanidade. É como se o filme, em seu didatismo, não quisesse correr o risco de permitir uma mínima empatia e causar confusão na mente do espectador infantilizado de nosso tempo.
O problema, a meu ver, é que o terreno da história política é bem mais movediço e complexo do que é capaz de dar conta esse maniqueísmo primário. Sobretudo de uma história política ainda em andamento, com o país dilacerado e as feridas em carne viva.
Mas calma lá. Polícia Federal tenta se antecipar a essa possível crítica e acenar com uma visão mais nuançada: perto do final, o personagem-narrador Ivan se pergunta: “A quem será que estamos servindo? A quais objetivos reais?” Pode ser só um álibi retórico. Mas uma coda documental, mostrando a prisão do primo do senador Aécio Neves com uma mala recheada de dinheiro, aponta para o prosseguimento da investigação e anuncia a realização de um novo filme. A exemplo do que houve com Tropa de elite, essa continuação poderia se chamar Polícia Federal 2 – O inimigo agora é outro. Cabe esperar para ver.
* José Gerado Couto é crítico de cinema e tradutor. Publica suas criticas no blog do IMS.
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