Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
O caráter nefasto do leilão marcado para 6ª feira, 27 de outubro, quando a atual direção da Petrobras pretende se desfazer das principais reservas de petróleo e gás do país, justifica todo esforço para que a Justiça impeça a venda. Merecem apoio, por isso, as múltiplas ações que tentam confrontar a venda na Justiça, como o mandado de segurança do senador Roberto Requião (PMDB-PR) ao Supremo, bem como uma ação popular que na noite de ontem se encontrava nos preparativos finais.
O país se encontra num momento decisivo tanto para o futuro próximo como para o distante. Algo só comparável, talvez, à fundação da própria Petrobras, em 1953 – desta vez, com o sinal trocado, como um conto do vigário no qual o vendedor e o comprador se encontram em papéis invertidos.
Agora quem faz o papel de bobo não é o cidadão que adquire uma mercadoria falsa, mas quem vende uma riqueza verdadeira por um preço absurdamente baixo, como explica o professor Gilberto Bercovici, titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Num artigo em tom coloquial e juridicamente impecável, o professor esclarece:
“Imagine-se na singela situação de, em uma esquina da Praça da Sé, adquirir um Rolex novo e legítimo pela quantidade R$ 5.000,00 (cinco mil reais). Obviamente o preço não é compatível com a normalidade do mercado e a compra não se deu de um vendedor autorizado”.
Um dos grandes especialistas em Direito Econômico, autor de um trabalho acadêmico que se transformou numa obra clássica (“Direito Econômico do Petróleo e dos Recursos Naturais”), Bercovici prossegue:
“O direito penal dá nome e sobrenome a esta operação: receptação culposa. In verbis: “adquirir ou receber coisa que, por sua natureza ou pela desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição de quem a oferece, deve presumir-se obtida por meio criminoso” (Código Penal, Art. 180, § 3º). O direito civil qualifica a posse como de má fé. Alguns dos mais celebrados princípios jurídicos também são desrespeitados, em particular o de que nemo auditur propriam turpitudinem allegans, ou seja, o de que ninguém pode se aproveitar de sua própria torpeza.”
Quem ainda tem dúvidas sobre a natureza absolutamente danosa da transação deveria ler uma reportagem do Estado de S. Paulo (21/10/2017) para entender porque o leilão -- se for realizado -- deve transformar-se numa grande festa.
“Os investimentos em pesquisa afastaram as dúvidas sobre a viabilidade de se retirar volumes extraordinários de petróleo abaixo da camada de sal,” escrevem Fernanda Nunes e Denise Luna. “A visão hoje é que esse é um dos melhores negócios do mundo”. Com dados que ajudam a entender o ambiente de euforia obscena que tem tomado conta de investidores externos, ávidos por uma oportunidade tão rara como preciosa, a reportagem revela que as áreas do pré-sal já são “viáveis economicamente com o preço do barril de petróleo variando entre U$ 30 a US$ 40, o que já permite comparar com o Oriente Médio, principal centro produtor mundial, onde a faixa de equilíbrio situa-se “entre U$ 20 e U$ 40”. Explicando a evolução da exploração do pré-Sal o jornal lembra que a produtividade da área chegou a 30%, bastante superior “a projetada em sua descoberta, em 2006.”
Alcançando, em uma apenas uma década, uma produção diária de 1,5 milhão de barris, mais da metade de toda produção nacional, o leilão há tem um slogan oficial: “o pré-sal é onde todo mundo quer estar,” já disse André Araújo, presidente da Shell Brasil, numa frase que resume a tragédia – pois o leilão transformará os 210 milhões de brasileiros nos grandes excluídos da exploração dessa riqueza, exatamente o contrário do que se tentava fazer nos governos Lula-Dilma.
Confirmado por uma publicação historicamente favorável, o caráter perverso da cerimônia marcada para 6ª feira tem antecedentes históricos em outros países. Produziram ganhos fabulosos para seus protagonistas, mas em muitos casos levaram a grandes revanches históricas.
Da mesma forma que a privatização parece um dado óbvio e causa original de grandes intervenções estrangeiras, pois é o caminho mais fácil para o controle de riquezas de outro país, as últimas décadas da evolução humana têm mostrado que em várias partes do mundo a renacionalização tem sido um percurso necessário para governos comprometidos com a soberania e a busca de caminhos para reforçar o desenvolvimento do país.
O caso do México é um exemplo ilustrativo das duas situações. Embora estivesse prevista em lei desde 1917, a estatização das imensas reservas de petróleo do país só foi efetivada em 1938, no governo de Lazaro Cardenas, um marco no esforço para desenvolver México e preservar sua autonomia diante do vizinho muito mais rico e poderoso. Já privatização foi aprovada em 2013, culminando um processo de esvaziamento do Estado, crescimento gigantesco do crime ligado ao narcotráfico e enfraquecimento de sua soberania, negociada de modo aviltado com o ingresso do país no NAFTA, o acordo de livre comércio com Estados Unidos e Canadá.
Privatizada por Carlos Menem, a YPF, Petrobras argentina, vendida a Repsol, foi renacionalizada por Cristina Kirchner. Na Venezuela, em 1975 o governo de Carlos Andrés Perez – na época membro da mesma Internacional Socialista que acolheu Leonel Brizola --não renovou concessões de empresas estrangeiras que exploravam o petróleo local, garantindo as reservas para a estatal PEDEVESA. Mas foi no governo de Hugo Chávez que a estatal se transformou numa força real para o desenvolvimento do país, invertendo décadas de uma política econômica que ajudava a transferir a maior parte do PIB nacional para Miami, americanizando recursos e interesses e mentalidades.
A Petrobras tem duas experiências do outro lado do guichê. O esforço para controlar o gás boliviano, uma das grandes riquezas do país vizinho, levou Evo Morales a nacionalizar duas refinarias da Petrobras em maio de 2006. Contratada para procurar petróleo no Oriente Médio, a estatal brasileira foi tão bem sucedida na descoberta de reservas de grande valor que o presidente do Iraque, Saddam Hussein, anunciou que o petróleo era dos iraquianos e os pesquisadores brasileiros tiveram de retirar-se.
Por várias razões, o leilão do pré-sal brasileiro tem vários pontos de contato com uma intervenção estrangeira que marcou a associação fundamental entre política e reservas de petróleo na história mundial -- o golpe de Estado de agosto de 1953, no Irã.
Naquele momento, em que os povos do mundo acordavam para a importância de proteger as reservas do petróleo – a Petrobras brasileira foi criada em outubro do mesmo ano --, um condomínio de potencias europeias, articuladas pela CIA, derrubou o governo do primeiro ministro Mohammad Mosaddegh, autor de um projeto de lei que nacionalizou as reservas de petróleo, num país que, na época, possuía a maior refinaria do planeta. Escritor e advogado, em função de seus compromissos com a emancipação nacional, numa região esmagada por décadas de domínio colonial e uma elite submissa aos senhores externos, Mosaddegh possuía imenso apoio popular.
Mas o Irã vivia sob uma monarquia constitucional e não foi difícil, para a CIA e ao serviço secreto britânico fazer um trabalho clássico em várias frentes. Recrutaram os serviços do Xá Reza Pahlevi para trair um governo que, legalmente, tinha obrigação de sustentar. A CIA também arrebanhou oficiais do Exército e recebeu ajuda de uma larga fatia do clero muçulmano. Conforme documentos oficiais do Departamento de Estado que só vieram a público décadas mais tarde, a operação para derrubar Mosadegh ainda incluiu apoio do crime organizado, que mobilizou uma multidão para engrossar protestos de rua e até tentar invadir a casa do primeiro-ministro.
O caráter nefasto do leilão marcado para 6ª feira, 27 de outubro, quando a atual direção da Petrobras pretende se desfazer das principais reservas de petróleo e gás do país, justifica todo esforço para que a Justiça impeça a venda. Merecem apoio, por isso, as múltiplas ações que tentam confrontar a venda na Justiça, como o mandado de segurança do senador Roberto Requião (PMDB-PR) ao Supremo, bem como uma ação popular que na noite de ontem se encontrava nos preparativos finais.
O país se encontra num momento decisivo tanto para o futuro próximo como para o distante. Algo só comparável, talvez, à fundação da própria Petrobras, em 1953 – desta vez, com o sinal trocado, como um conto do vigário no qual o vendedor e o comprador se encontram em papéis invertidos.
Agora quem faz o papel de bobo não é o cidadão que adquire uma mercadoria falsa, mas quem vende uma riqueza verdadeira por um preço absurdamente baixo, como explica o professor Gilberto Bercovici, titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Num artigo em tom coloquial e juridicamente impecável, o professor esclarece:
“Imagine-se na singela situação de, em uma esquina da Praça da Sé, adquirir um Rolex novo e legítimo pela quantidade R$ 5.000,00 (cinco mil reais). Obviamente o preço não é compatível com a normalidade do mercado e a compra não se deu de um vendedor autorizado”.
Um dos grandes especialistas em Direito Econômico, autor de um trabalho acadêmico que se transformou numa obra clássica (“Direito Econômico do Petróleo e dos Recursos Naturais”), Bercovici prossegue:
“O direito penal dá nome e sobrenome a esta operação: receptação culposa. In verbis: “adquirir ou receber coisa que, por sua natureza ou pela desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição de quem a oferece, deve presumir-se obtida por meio criminoso” (Código Penal, Art. 180, § 3º). O direito civil qualifica a posse como de má fé. Alguns dos mais celebrados princípios jurídicos também são desrespeitados, em particular o de que nemo auditur propriam turpitudinem allegans, ou seja, o de que ninguém pode se aproveitar de sua própria torpeza.”
Quem ainda tem dúvidas sobre a natureza absolutamente danosa da transação deveria ler uma reportagem do Estado de S. Paulo (21/10/2017) para entender porque o leilão -- se for realizado -- deve transformar-se numa grande festa.
“Os investimentos em pesquisa afastaram as dúvidas sobre a viabilidade de se retirar volumes extraordinários de petróleo abaixo da camada de sal,” escrevem Fernanda Nunes e Denise Luna. “A visão hoje é que esse é um dos melhores negócios do mundo”. Com dados que ajudam a entender o ambiente de euforia obscena que tem tomado conta de investidores externos, ávidos por uma oportunidade tão rara como preciosa, a reportagem revela que as áreas do pré-sal já são “viáveis economicamente com o preço do barril de petróleo variando entre U$ 30 a US$ 40, o que já permite comparar com o Oriente Médio, principal centro produtor mundial, onde a faixa de equilíbrio situa-se “entre U$ 20 e U$ 40”. Explicando a evolução da exploração do pré-Sal o jornal lembra que a produtividade da área chegou a 30%, bastante superior “a projetada em sua descoberta, em 2006.”
Alcançando, em uma apenas uma década, uma produção diária de 1,5 milhão de barris, mais da metade de toda produção nacional, o leilão há tem um slogan oficial: “o pré-sal é onde todo mundo quer estar,” já disse André Araújo, presidente da Shell Brasil, numa frase que resume a tragédia – pois o leilão transformará os 210 milhões de brasileiros nos grandes excluídos da exploração dessa riqueza, exatamente o contrário do que se tentava fazer nos governos Lula-Dilma.
Confirmado por uma publicação historicamente favorável, o caráter perverso da cerimônia marcada para 6ª feira tem antecedentes históricos em outros países. Produziram ganhos fabulosos para seus protagonistas, mas em muitos casos levaram a grandes revanches históricas.
Da mesma forma que a privatização parece um dado óbvio e causa original de grandes intervenções estrangeiras, pois é o caminho mais fácil para o controle de riquezas de outro país, as últimas décadas da evolução humana têm mostrado que em várias partes do mundo a renacionalização tem sido um percurso necessário para governos comprometidos com a soberania e a busca de caminhos para reforçar o desenvolvimento do país.
O caso do México é um exemplo ilustrativo das duas situações. Embora estivesse prevista em lei desde 1917, a estatização das imensas reservas de petróleo do país só foi efetivada em 1938, no governo de Lazaro Cardenas, um marco no esforço para desenvolver México e preservar sua autonomia diante do vizinho muito mais rico e poderoso. Já privatização foi aprovada em 2013, culminando um processo de esvaziamento do Estado, crescimento gigantesco do crime ligado ao narcotráfico e enfraquecimento de sua soberania, negociada de modo aviltado com o ingresso do país no NAFTA, o acordo de livre comércio com Estados Unidos e Canadá.
Privatizada por Carlos Menem, a YPF, Petrobras argentina, vendida a Repsol, foi renacionalizada por Cristina Kirchner. Na Venezuela, em 1975 o governo de Carlos Andrés Perez – na época membro da mesma Internacional Socialista que acolheu Leonel Brizola --não renovou concessões de empresas estrangeiras que exploravam o petróleo local, garantindo as reservas para a estatal PEDEVESA. Mas foi no governo de Hugo Chávez que a estatal se transformou numa força real para o desenvolvimento do país, invertendo décadas de uma política econômica que ajudava a transferir a maior parte do PIB nacional para Miami, americanizando recursos e interesses e mentalidades.
A Petrobras tem duas experiências do outro lado do guichê. O esforço para controlar o gás boliviano, uma das grandes riquezas do país vizinho, levou Evo Morales a nacionalizar duas refinarias da Petrobras em maio de 2006. Contratada para procurar petróleo no Oriente Médio, a estatal brasileira foi tão bem sucedida na descoberta de reservas de grande valor que o presidente do Iraque, Saddam Hussein, anunciou que o petróleo era dos iraquianos e os pesquisadores brasileiros tiveram de retirar-se.
Por várias razões, o leilão do pré-sal brasileiro tem vários pontos de contato com uma intervenção estrangeira que marcou a associação fundamental entre política e reservas de petróleo na história mundial -- o golpe de Estado de agosto de 1953, no Irã.
Naquele momento, em que os povos do mundo acordavam para a importância de proteger as reservas do petróleo – a Petrobras brasileira foi criada em outubro do mesmo ano --, um condomínio de potencias europeias, articuladas pela CIA, derrubou o governo do primeiro ministro Mohammad Mosaddegh, autor de um projeto de lei que nacionalizou as reservas de petróleo, num país que, na época, possuía a maior refinaria do planeta. Escritor e advogado, em função de seus compromissos com a emancipação nacional, numa região esmagada por décadas de domínio colonial e uma elite submissa aos senhores externos, Mosaddegh possuía imenso apoio popular.
Mas o Irã vivia sob uma monarquia constitucional e não foi difícil, para a CIA e ao serviço secreto britânico fazer um trabalho clássico em várias frentes. Recrutaram os serviços do Xá Reza Pahlevi para trair um governo que, legalmente, tinha obrigação de sustentar. A CIA também arrebanhou oficiais do Exército e recebeu ajuda de uma larga fatia do clero muçulmano. Conforme documentos oficiais do Departamento de Estado que só vieram a público décadas mais tarde, a operação para derrubar Mosadegh ainda incluiu apoio do crime organizado, que mobilizou uma multidão para engrossar protestos de rua e até tentar invadir a casa do primeiro-ministro.
Num primeiro momento, a resistência parecia render frutos mas os golpistas acabaram vitoriosos, transformando o regime de Pahlevi numa ditadura escancarada e cruel, conhecida pela perseguição e tortura de prisioneiros. Condenado a três de prisão por um tribunal militar, Mohammad Mosadegh foi mantido em prisão domiciliar até morrer, em 1967, aos 84 anos. Foi enterrado como um dos políticos mais populares do país. Vinte e seis anos mais tarde, a ditadura foi derrotada por uma revolta popular dirigida pelo clero xiita. Uma de suas primeiras providências foi retomar o controle absoluto sobre as reservas de petróleo, base para uma política externa independente.
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