Por Luiz Carlos Azenha, no blog Viomundo:
O professor e juiz de Direito Rubens Casara o disse bem, nos bastidores de uma entrevista com o Viomundo: enganam-se os que acreditam que vivemos um período de exceção, que logo será superado pela “normalidade”.
O professor e juiz de Direito Rubens Casara o disse bem, nos bastidores de uma entrevista com o Viomundo: enganam-se os que acreditam que vivemos um período de exceção, que logo será superado pela “normalidade”.
Todos aqueles que citam a ‘democracia liberal’ como parâmetro - ou princípios que a norteiam, como separação entre os poderes e estado laico, por exemplo - não se deram conta de que entramos numa nova fase, a da pós-democracia.
Foi o que me fez revisitar uma viagem que fiz ao Paquistão, para uma série de reportagens.
Desembarcamos em Karachi, uma das cidades mais violentas do mundo. Como um dos temas seria uma visita a um estaleiro onde navios são demolidos, pedi ao produtor local que marcasse uma entrevista com um sindicalista.
Acabamos na sala de um líder sindical comunista. Ele narrou o profundo declínio da esquerda no Paquistão, apesar da profunda miséria e da extrema concentração fundiária ao longo do rio Indo, o mais longo do país.
O principal partido de esquerda, a chamada “coalizão do desespero”, formada justamente para enfrentar o isolamento, não chegou a 1% dos votos nas eleições gerais de 2013.
Por outro lado, o país tem mais de uma dezena de partidos religiosos, muitos deles com representação no Parlamento.
Como explicar?
Segundo meu entrevistado, a falta de influência dos partidos de esquerda poderia ser atribuída a uma miríade de razões, mas uma de importância era que os fundamentalistas islâmicos tinham ‘sequestrado’ o desejo de mudança e canalizado a energia popular para o caráter religioso da influência estrangeira no Paquistão.
Em outras palavras, em vez de se revoltar contra o imperialismo dos Estados Unidos, da Índia ou da China, ou contra a estrutura econômica que provoca desigualdade no Paquistão, os paquistaneses estavam majoritariamente preocupados com a ‘decadência’ de seus próprios valores causada pelos ímpios com inspiração estrangeira - os filmes ‘decadentes’ de Holywood, por exemplo.
Ainda de acordo com o sindicalista, a elite paquistanesa estava satisfeitíssima com o desempenho dos partidos religiosos, ainda que por conta disso tivesse de turbinar a hipocrisia (álcool, sexo e outras ‘imoralidades’ só seriam praticados no esconderijo do lar ou em viagens ao Exterior, especialmente aos países do Golfo Pérsico).
É que os partidos fundamentalistas cumpriam o papel essencial de naturalizar a desigualdade e desviar o ímpeto por mudanças para questões não econômicas, justamente aquelas que podiam ameaçar a elite.
Meu entrevistado lembrou que a Irmandade Muçulmana, uma força por mudança no Egito, por exemplo, tem uma política econômica neoliberal. Os irmãos praticam o assistencialismo em larga escala, mas sempre condicionado ao pertencimento à religião: as mesquitas funcionam como centros de distribuição de alimentos e outras benesses.
De minha parte, tendo morado quase 20 anos nos Estados Unidos, lembrei ao meu entrevistado paquistanês o papel essencial que os fundamentalistas cristãos tiveram na eleição de Ronald Reagan, em 1980. O Partido Republicano, que até então não tinha militantes para enfrentar o sindicalismo, lançou mão de uma coalizão religiosa conservadora entre católicos, evangélicos e judeus.
Foram todos bater de porta-em-porta para eleger e reeleger Reagan, como testemunhei.
Ligados ao valores tradicionais e enfatizando sempre as questões morais, estes fundamentalistas tinham outra coisa em comum: a defesa de uma política econômica neoliberal, uma derivação natural para quem acredita que o Estado laico é uma ameaça a seus valores, se intrometendo na educação das crianças, ensinando a teoria da evolução e privilegiando a Ciência em detrimento dos livros religiosos.
Depois de minha entrevista com o sindicalista, tive a oportunidade de percorrer algumas vizinhanças de Karachi. Nos moldes das milícias que assumiram o controle de bairros do Rio de Janeiro, havia muitas ‘fronteiras’ na cidade. Só que as milícias eram de caráter religioso.
Aqui mandavam os homens de um determinado líder religioso fundamentalista, em seguida mandavam os de outro. Com todas as vantagens econômicas derivadas de tal controle geográfico.
Também visitei um trecho do vale do rio Indo, onde era comum homens atirarem ácido no rosto de mulheres que desafiassem seu poder no âmbito doméstico.
Viajei com uma mulher com o rosto deformado, que ao descer nas feiras das pequenas cidades nos alertava: não posso andar muito com o rosto descoberto. Se alguém me ver com o rosto deformado, posso ser denunciada e seremos linchados.
Incitados por líderes religiosos, os camponeses pobres viam mulheres fora do padrão como seus principais inimigos, quando uma dúzia de famílias controlavam 90% da terra e eram o verdadeiro motivo da desigualdade e da miséria locais.
O fundamentalismo religioso, portanto, não é uma aberração, mas adequado aos tempos em que 1% controlam 90% da riqueza do mundo. Handmaid’s Tale, a série, um dia pode ter sido vista como completa aberração. Espero que nunca se transforme numa produção futurista.
Foi o que me fez revisitar uma viagem que fiz ao Paquistão, para uma série de reportagens.
Desembarcamos em Karachi, uma das cidades mais violentas do mundo. Como um dos temas seria uma visita a um estaleiro onde navios são demolidos, pedi ao produtor local que marcasse uma entrevista com um sindicalista.
Acabamos na sala de um líder sindical comunista. Ele narrou o profundo declínio da esquerda no Paquistão, apesar da profunda miséria e da extrema concentração fundiária ao longo do rio Indo, o mais longo do país.
O principal partido de esquerda, a chamada “coalizão do desespero”, formada justamente para enfrentar o isolamento, não chegou a 1% dos votos nas eleições gerais de 2013.
Por outro lado, o país tem mais de uma dezena de partidos religiosos, muitos deles com representação no Parlamento.
Como explicar?
Segundo meu entrevistado, a falta de influência dos partidos de esquerda poderia ser atribuída a uma miríade de razões, mas uma de importância era que os fundamentalistas islâmicos tinham ‘sequestrado’ o desejo de mudança e canalizado a energia popular para o caráter religioso da influência estrangeira no Paquistão.
Em outras palavras, em vez de se revoltar contra o imperialismo dos Estados Unidos, da Índia ou da China, ou contra a estrutura econômica que provoca desigualdade no Paquistão, os paquistaneses estavam majoritariamente preocupados com a ‘decadência’ de seus próprios valores causada pelos ímpios com inspiração estrangeira - os filmes ‘decadentes’ de Holywood, por exemplo.
Ainda de acordo com o sindicalista, a elite paquistanesa estava satisfeitíssima com o desempenho dos partidos religiosos, ainda que por conta disso tivesse de turbinar a hipocrisia (álcool, sexo e outras ‘imoralidades’ só seriam praticados no esconderijo do lar ou em viagens ao Exterior, especialmente aos países do Golfo Pérsico).
É que os partidos fundamentalistas cumpriam o papel essencial de naturalizar a desigualdade e desviar o ímpeto por mudanças para questões não econômicas, justamente aquelas que podiam ameaçar a elite.
Meu entrevistado lembrou que a Irmandade Muçulmana, uma força por mudança no Egito, por exemplo, tem uma política econômica neoliberal. Os irmãos praticam o assistencialismo em larga escala, mas sempre condicionado ao pertencimento à religião: as mesquitas funcionam como centros de distribuição de alimentos e outras benesses.
De minha parte, tendo morado quase 20 anos nos Estados Unidos, lembrei ao meu entrevistado paquistanês o papel essencial que os fundamentalistas cristãos tiveram na eleição de Ronald Reagan, em 1980. O Partido Republicano, que até então não tinha militantes para enfrentar o sindicalismo, lançou mão de uma coalizão religiosa conservadora entre católicos, evangélicos e judeus.
Foram todos bater de porta-em-porta para eleger e reeleger Reagan, como testemunhei.
Ligados ao valores tradicionais e enfatizando sempre as questões morais, estes fundamentalistas tinham outra coisa em comum: a defesa de uma política econômica neoliberal, uma derivação natural para quem acredita que o Estado laico é uma ameaça a seus valores, se intrometendo na educação das crianças, ensinando a teoria da evolução e privilegiando a Ciência em detrimento dos livros religiosos.
Depois de minha entrevista com o sindicalista, tive a oportunidade de percorrer algumas vizinhanças de Karachi. Nos moldes das milícias que assumiram o controle de bairros do Rio de Janeiro, havia muitas ‘fronteiras’ na cidade. Só que as milícias eram de caráter religioso.
Aqui mandavam os homens de um determinado líder religioso fundamentalista, em seguida mandavam os de outro. Com todas as vantagens econômicas derivadas de tal controle geográfico.
Também visitei um trecho do vale do rio Indo, onde era comum homens atirarem ácido no rosto de mulheres que desafiassem seu poder no âmbito doméstico.
Viajei com uma mulher com o rosto deformado, que ao descer nas feiras das pequenas cidades nos alertava: não posso andar muito com o rosto descoberto. Se alguém me ver com o rosto deformado, posso ser denunciada e seremos linchados.
Incitados por líderes religiosos, os camponeses pobres viam mulheres fora do padrão como seus principais inimigos, quando uma dúzia de famílias controlavam 90% da terra e eram o verdadeiro motivo da desigualdade e da miséria locais.
O fundamentalismo religioso, portanto, não é uma aberração, mas adequado aos tempos em que 1% controlam 90% da riqueza do mundo. Handmaid’s Tale, a série, um dia pode ter sido vista como completa aberração. Espero que nunca se transforme numa produção futurista.
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