domingo, 15 de outubro de 2017

Leviandade jornalística a serviço do império

Por Miguel do Rosário, no blog Cafezinho:

A batalha mais difícil que teremos de enfrentar, para recuperamos a imagem do país, não é a política, cujo debate, mal ou bem, em virtude da internet, oferece um pouco de pluralidade e, sobretudo, profundidade.

Não é nem mesmo a jurídica, na qual os vencedores de hoje virão a ser os derrotados de amanhã, desde que a verdade, com sua força interna, se imponha sobre as “convicções”.

O front de guerra mais perigoso, mais traiçoeiro, é aquele da imprensa tradicional, porque ela é o instrumento principal do poder ideológico das classes e países dominantes, usado para perpetuar situações de extrema desigualdade que produzem sofrimento e miséria em toda parte.

Eu enfatizo o termo “imprensa tradicional”, porque refiro-me não apenas àqueles órgãos de imprensa suspeitos de sempre, mas a todas as histórias que se penduram, de maneira superficial e preguiçosa, nas narrativas consolidadas por aqueles órgãos, ou por seus subsidiários nos países periféricos.

O caso de Alex Cuadros, um jovem jornalista norte-americano que passou alguns anos morando no Brasil, como correspondente da Bloomberg, primeiro, e depois como colaborador de outras empresas, é emblemático.

Cuadros veio ao Brasil com uma missão curiosa: seria uma espécie de correspondente especializado na vida e negócios dos ultrarricos brasileiros.

Naturalmente, uma missão assim pressupõe que o jornalista em questão tenha uma personalidade suficientemente forte para enfrentar o assunto com desassombro: o investimento da Bloomberg nessa nova “editoria” certamente não visava produzir relatos de um repórter deslumbrado pela riqueza alheia. A agência pedia descrições vívidas, interessantes, informativas.

Encerrado o trabalho, Cuadros permaneceu no Brasil e escreveu um livro sobre os bilionários brasileiros, intitulado Brazillionaires, que foi traduzido e vendido por aqui também. Eu comprei o livro pela Amazon, ainda em inglês e o li.

É um livro que oferece passagens interessantes. Traz até a informação sobre a “mansão dos Marinho” em Paraty, ligada as histórias obscuras de lavagem de dinheiro, que os Marinho negam que pertençam a eles. O capítulo sobre a família Marinho, aliás, é o mais interessante do livro.

Mas outros capítulos revelam que Cuadros não conseguiu fugir do senso comum que, certamente, rodeava seu círculo de amizades enquanto morava no Brasil e, sobretudo, suas leituras da imprensa tradicional. A comparação entre a construção de usinas hidrelétricas, responsáveis por assegurar a soberania energética do país e, com isso, o nosso desenvolvimento, com “pirâmides do Egito” é uma das coisas mais estúpidas que eu tive a oportunidade de ler.

Ao mesmo tempo, é uma comparação que, de forma inconsciente, externa um sentimento imperialista em relação ao Brasil. Cuadros não encontraria jamais espaço para afirmar isso sobre a construção de usinas, refinarias ou hidrelétricas nos EUA, que podem até ser criticadas do ponto-de-vista ambiental, mas jamais comparadas com obras faraônicas que não teriam nenhum uso prático para os povos do Egito Antigo.

Já o Brasil, ah o Brasil! Construir refinarias, hidrelétricas, usinas nucleares, certamente só poderia ser uma iniciativa faraônica feita com intuito de enriquecer empreiteiras e roubar. Sergio Moro, com menos inocência que Cuadros, falaria coisas semelhantes em suas “palestras” para o mercado financeiro.

Hoje, Cuadros escreve sobre o Brasil para o site da New Yorker (não sei se os textos vão também para a edição impressa) e foi aí que voltei a encontrá-lo, e a me decepcionar – não apenas com Cuadros mas também com a New Yorker.

A New Yorker que eu conhecia, e gostava, publicava reportagens incômodas, originais, profundas, de gente como Gore Vidal e Truman Capote.

Os textos de Cuadros são notinhas superficiais, curtas, desinteressantes, escritas com um espírito preguiçoso e leviano, que apenas copiam clichês da mídia tradicional brasileira.

Seu último texto na New Yorker é uma resenha sobre recentes ameaças de golpe militar e… Jair Bolsonaro. Se o Brasil vivesse uma situação normal, talvez eu gostasse do texto, porque fala mal de Bolsonaro e dos militares. Mas não estamos numa situação normal. É um desses textos superficiais que, ao não mencionar nenhuma das causas reais dos processos políticos atuais, apenas reforça as mesmas narrativas que produziram as declarações de oficiais em prol de um novo golpe e o próprio Bolsonaro.

Quando Cuadros sai da mera descrição dos fatos relativos as ameaças militares e do anedotário sobre Bolsonaro, ele diz que “nesse meio tempo, deputados de distintas identidades ideológicas se uniram para minar o poder do judiciário”.

A afirmação é típica: ela integra o núcleo duro da narrativa dominante no Brasil, e é mentirosa.

O dever do jornalismo não pode ser, jamais, repetir o senso comum. A afirmação de Cuadros poderia vir de um esquerdista alienado, que acredita na Lava Jato e em Sergio Moro (uma categoria em declínio, felizmente), ou de um representante da antipolítica, que rejeita todos os partidos. Ou de um eleitor de Bolsonaro.

Sim, porque as pesquisas mostram que o principal apoio à Lava Jato e a Sergio Moro vem dos eleitores de Bolsonaro.

Nas manifestações em favor do impeachment, os mesmos grupos que defendiam uma “intervenção militar” foram migrando para a defesa de Sergio Moro – e isso não porque esses grupos se tornaram mais democráticos, e sim porque a “intervenção judicial” abraçou o autoritarismo brutal que esses grupos clamavam.

Quando partidos e políticos se unem em críticas ao judiciário, não é para “minar o seu poder”, como afirma Cuadros, e sim para tentar reconduzi-lo aos trilhos constitucionais.

Como Cuadros é um leitor da Folha de São Paulo e do colunista Josias de Sousa, talvez ele não saiba que vem florescendo, no Brasil, uma rica bibliografia contra o autoritarismo do judiciário brasileiro, assinada por nossos mais competentes juristas. Eu o aconselharia a ler as colunas de Lenio Streck, no Conjur, por exemplo.

Em “Estado pós-democrático”, livro lançado há poucos dias, o juiz de Direito Rubens Casara também faz uma denúncia sombria, dolorosa, terrível, contra o fascismo judicial que vem se alastrando no país – sobre o qual o jornalista Alex Cuadros, justamente pelo vício de ler a realidade brasileira apenas através de seus grandes meios de comunicação, não deve ter informação suficiente.

Cuadros omite dos leitores da New Yorker que foram esses mesmos meios de comunicação que apoiaram o golpe de 64, que sustentaram a ditadura, construíram a atmosfera que levou ao golpe de 2016, chancelam os ataques de Temer aos direitos sociais, e teceram a narrativa que fez Bolsonaro e o golpe militar se tornarem um risco real à democracia brasileira.

Curioso, eu acabei entrando num artigo de Alex Cuadros, também publicado no site da New Yorker, em julho, sobre a condenação de Lula.

O título diz tudo: “A mais importante condenação criminal da história brasileira”.

Se esse post fosse apenas sobre este artigo, e não sobre a leviandade jornalística, de uma forma mais geral, eu poderia intitulá-lo como “O mais vergonhoso artigo da história da New Yorker”.

No entanto, é um artigo curto, incrivelmente desonesto e superficial, ou seja, totalmente na contramão da ideia que eu tinha da New Yorker, no qual Cuadros apenas alinhava os principais chavões que sustentam a narrativa da imprensa corporativa do Brasil.

Durante toda a era Lula/Dilma, a imprensa brasileira vendeu a tese de que uma das funções mais importantes da imprensa era fazer a “crítica ao poder”. É um conceito nobre, mas sua prática, pela própria imprensa, sempre se revelou falsa: porque o único poder que ela efetivamente criticava era o poder do presidente da república. Ora, o poder jamais, em nenhum país democrático, está concentrado exclusivamente em mãos do presidente da república. Há o poder da própria mídia, que muitas vezes é superior. Há o poder das corporações privadas. O poder do mercado. O poder, sobretudo, do judiciário e dos estamentos jurídicos & policiais do Estado. Este último poder, aliado à mídia, tornou-se um monstro que, após devorar o voto de 54 milhões de eleitores e a própria democracia brasileira, vem engolindo direitos sociais, garantias individuais, patrimônio nacional, esperança, e não parece disposto a parar.

Onde está, na imprensa brasileira, a crítica a esse poder?

Não está.

E, com certeza, também não está nas resenhas preguiçosas de Alex Cuadros para a revista New Yorker.

A “condenação” de Lula por Sergio Moro é baseada na delação de um torturado, Leo Pinheiro, que mudou sua versão em relação ao apartamento de Lula apenas depois de ter seus pedidos de habeas corpus sistematicamente negados e não ter nenhuma esperança de um julgamento imparcial enquanto não fizesse o jogo sujo da Lava Jato.

Sobretudo, é uma condenação que não apresenta uma mísera prova contra o ex-presidente. Tanto é assim que centenas de juristas, perplexos e indignados, escreveram e publicaram, em tempo recorde, um livro com artigos denunciando essa condenação.

Ao não mencionar essas críticas, Alex Cuadros falseou a realidade e se alinhou à turma de Bolsonaro, aos golpistas, e contra todos que lutam por justiça social e por um Estado democrático de Direito no Brasil.

É também um artigo profundamente vulgar do ponto-de-vista intelectual, porque trata o judiciário como um poder isento, ignorando todos os absurdos que estamos testemunhando no país, e que culminaram com o suicídio do reitor da universidade federal de Santa Catarina, Luis Carlos Cancellier, acusado e preso em mais um desses intermináveis e insuportáveis processos kafkianos em que agentes do Estado se transformam em furiosos justiceiros.

A leviandade de Alex Cuadros, no entanto, tem uma função importante. Como todo jornalista da “imprensa tradicional”, Cuadros tem uma sensibilidade extremamente apurada para a autocensura e para a necessidade de ser manter fiel às narrativas centrais. Seu artigo sobre Lula é, portanto, apenas mais um entre milhares de textos escritos por jornalistas corrompidos por um sistema que é tanto mais brutal quanto é invisível.

Eu vou publicar um trecho (traduzido por mim) do artigo de Cuadros e identificar seus erros de análise.

Lideranças sindicais e políticos de esquerda convocaram um protesto contra o que eles consideram ser uma perseguição política, praticada por uma conspiração de direita para enterrar as chances de Lula retornar à presidência. “Isso não é democracia”, declarou Lindbergh Farias, senador pelo Partido dos Trabalhadores (PT), em vídeo divulgado em sua página de Facebook.

O problema com essa teoria é que a Operação Lava Jato também atacou políticos de direita. O atual presidente, Michel Temer, que ajudou a orquestrar o impeachment da sucessora de Lula, Dilma Rousseff, é um dos que vários líderes conservadores que enfrentam acusações de corrupção (ele nega as acusações). Na verdade, políticos poderosos de direita e esquerda começaram, discretamente, a se unir contra a Operação Lava Jato. Nos bastidores, o PT tem notadamente agido com o partido de Temer com dois objetivos: anistiar políticos que usaram dinheiro de caixa 2 e restrição ao poder dos procuradores. No mês passado, Lula inclusive defendeu Temer publicamente, acusando o procurador-geral de “pirotecnia” e dizendo que ele deveria ser punido caso suas alegações não forem provadas.

Em sua condenação, Moro citou o escritor inglês do século XVII, Thomas Fuller: “Que você não esteja nunca tão alto, que a lei fique acima de você”. Isso é um conceito muito novo no Brasil.


Vamos começar pelo final, pela frase de Fuller que Moro achou no Google. É bem sintomático que Moro cite alguém do século XVII. Se estivesse mais conectado aos debates contemporâneos sobre direitos humanos e garantias individuais, Moro poderia citar, por exemplo, Luigi Ferrajoli, que o comparou, a ele, Sergio Moro, a um juiz da Inquisição. O depoimento de Ferrajoli, no entanto, foi omitido na grande mídia e, por isso, Alex Cuadros não o leu.

Sobre a frase em si, é mais uma dessas citações idiotas de Sergio Moro, como aquela outra de Roosevelt. Ora, no Brasil, ela deveria ser invertida para algo como: que a Lei nunca esteja tão alto, que esteja acima das garantias individuais.

O populismo penal que serve de fundamento aos arbítrios da Lava Jato, sobre punir “ricos e poderosos” é muito típico do fascismo. Ora, a ditadura militar também atingiu alguns “ricos e poderosos”. Os políticos cassados pela ditadura também seriam “poderosos”, e todos os empresários que não pactuaram com o regime foram perseguidos. Famílias de classe média, com dinheiro para pagar os melhores advogados do país, não conseguiram salvar seus filhos de tortura e assassinatos políticos. A Excelsior, principal tv do país, a Panair, importante companhia aérea, e inúmeros jornais prestigiados e “poderosos” foram censurados e perseguidos pela ditadura. Ou seja, perseguir “poderosos” não é nenhuma prova de democracia. No caso da Lava Jato, a perseguição a “poderosos” teve como premissa destruir os únicos setores da indústria brasileira que competiam internacionalmente, e que tinham capacidade tecnológica para fazer os investimentos necessários em áreas estratégicas, em especial no campo da energia.

Além do mais, há uma falácia aqui. Se a Lava Jato atinge políticos de vários partidos, o foco sempre foi o PT. Foi contra o partido dos trabalhadores que toda a narrativa lavajatiana se organizou. Os empresários presos tiveram suas relações com PT e Lula devassadas, enquanto as mesmas relações que tinham com outras agremiações eram omitidas, abafadas. Nenhum tesoureiro ou marketeiro de outros partidos foi preso. E vejam bem: a gente tem que tomar muito cuidado com essas armadilhas do punitivismo. Não interessa à democracia brasileira prender os tesoureiros ou marketeiros ou políticos de todos os partidos. O Estado não tem de perseguir ninguém.

Alex Cuadros não é um bom observador político, pois em caso contrário não poderia deixar de considerar que as ações da Lava Jato (prisões, vazamentos, depoimentos) sempre foram agendadas de olho numa agenda política que visava atingir o PT.

A perseguição a políticos de direita, como Michel Temer, não veio do núcleo original da Lava Jato. Foi um ensaio desastrado do procurador-geral, e que logo esbarrou na tradicional blindagem do establishment. Nem há comparação, de qualquer forma, entre as denúncias envolvendo Temer, Aécio, Geddel, que trazem gravações, malas de dinheiro, e as que envolvem políticos do PT, a começar por Lula, que jamais oferecem uma prova física e ficam a rodear teorias, estas sim ridiculamente conspiratórias, sobre propriedades de apartamento, sítios e pedalinhos, sem que se aponte conexões concretas, plausíveis, com esquemas de corrupção.

Volto a sugerir a Cuadros que leia o livro de Casara sobre o estado pós-democrático. Nele, há a denúncia sobre o uso de métodos democráticos apenas nas aparências, entre os quais justamente esta simulação de imparcialidade, que consiste em dar uma na ferradura após duzentos golpes no ferro.

O judiciário não é um poder absoluto. Suas decisões podem e devem ser criticadas. Se podemos apontar uma consequências positiva da Lava Jato é destruir, para sempre, a falsa conexão entre judiciário e justiça. Outra consequência importante é desmascarar o chapa-branquismo das narrativas da imprensa tradicional. Ela finge que é crítica ao poder apenas quando detecta que o poder migrou para outra parte. No Brasil, a imprensa é, historicamente, crítica à democracia e a toda forma de poder organizado da população, em especial de suas camadas mais humildes.

O nosso judiciário prende e persegue “ricos e poderosos” brasileiros e depois corre para o Brazil Institute, do Wilson Center (que eu chamo no Cafezinho de “think tank da CIA”), para prestar contas aos “ricos e poderosos” dos Estados Unidos, a começar pelo próprio presidente do Brazil Institute, Anthony Harrington, CEO da Albright Stonebridge, uma firma de lobby que atende aos interesses do governo americano e de suas principais corporações.

Entretanto, seria demais esperar que estes assuntos sejam tratados pela New Yorker ou seus repórteres neste momento. Se a imprensa norte-americana tradicional abordar os atuais esquemas de dominação de seu país sobre o nosso, será apenas daqui a algumas décadas.

O final do artigo de Cuadros é tão desonesto quanto absurdo:

Essa é uma disputa que desafia categorias ideológicas, jogando a maioria da classe política contra o público. Lula ajudou milhões de pobres do país, mas se alinhar com ele ajuda a minar a luta contra a impunidade.

De que tipo de impunidade fala Cuadros? Ele se refere à falácia midiática que fala em impunidade no quarto país, no mundo, que mais encarcera gente? Ou da impunidade de juízes e procuradores criminosos, que violam direitos e garantias fundamentais? Cuadros não parou para pensar que a corrupção no judiciário, que é igual ou maior à da classe política, é agravada por seu autoritarismo e pelo fato de que, à diferença do Executivo e do Legislativo, que oferecem brechas à participação popular, ele é absolutamente fechado à qualquer brisa democrática?

Cuadros não parou jamais para pensar que se o judiciário condena sem provas (e não sou eu que o digo, mas centenas de juristas importantes), então não há, obviamente, nenhum combate à impunidade ou à corrupção, e sim uma instrumentalização inescrupulosa de um poder burocrático do Estado com finalidades políticas as mais escusas?

Alinhar-se com Lula, prezado Cuadros, contra procuradores e juiz, não é “enfraquecer” o judiciário, tampouco contribuir para a impunidade. Muito pelo contrário. O judiciário, como qualquer poder, precisa ser escrutinizado, reformado, aperfeiçoado, pela crítica constante, dura, da população. E a luta contra a corrupção, como sabem todos que conhecem e estudam a história do Brasil, tem de ser expurgada de seus oportunistas, no judiciário, na política e, sobretudo, na mídia, porque estes costumam, com frequência, usá-la para impor formas muitos mais terríveis de corrupção.

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