Por Fernando Morais, no blog Nocaute:
No dia 2 de outubro a opinião pública foi informada de uma tragédia: o reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, de 60 anos, se suicidara pulando no vão de um shopping center de Florianópolis.
Duas semanas antes o reitor havia sido preso pela Polícia Federal e proibido de entrar no prédio da Universidade que dirigia. A acusação era a de que Cancellier estaria obstruindo uma investigação interna que apurava desvios de verbas da universidade.
Libertado por falta de provas dois dias depois, mas ainda afastado do cargo e proibido de entrar na universidade, o reitor desabafou em uma entrevista ao Diário Catarinense com as seguintes palavras:
“Minha prisão foi uma humilhação completa. Este afastamento é um exílio. Eu moro a três metros da universidade. Saio de casa e estou dentro da universidade. E não posso entrar na casa em que vivo e convivo desde 1977″.
Tanto a prisão como o afastamento haviam sido decretados pela delegada federal Erika Marena, ex-integrante da força-tarefa da Operação Lava Jato. No filme de propaganda da Lava Jato, intitulado “A justiça é para todos”, a delegada é representada pela atriz global Flávia Alessandra.
Na semana passada a delegada Marena instaurou ação criminal contra o jornalista Marcelo Auler, acusando-o dos crimes de calúnia, injúria e difamação por causa da reportagem “As marcas da Lava Jato”, publicada em fevereiro de 2016, na revista Carta Capital.
Nocaute teve acesso à íntegra do inquérito policial conduzido pela delegada Erika Marena. Sem encontrar nas 126 páginas do inquérito as razões que levaram a policial federal a prender e afastar o reitor de suas funções, Nocaute submeteu o documento ao advogado criminalista Fábio Simantob, presidente do IDDD – Instituto de Defesa do Direito de Defesa.
Para o presidente do IDDD, “a Lava-Jato parece ter incorporado um tipo de processo penal no Brasil que primeiro pune depois julga; primeiro bate e depois pergunta.” Veja, a seguir, a íntegra do depoimento do jurista, exclusiva para o Nocaute.
A representação da Polícia Federal que pediu a prisão preventiva do então reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, é uma representação policial que aponta alguns ilícitos, alguns malfeitos na Universidade e pede a prisão e o afastamento do reitor com base no depoimento de uma senhora, que afirma que o reitor estaria dentro da Universidade tomando algumas iniciativas para evitar a apuração desse malfeitos e desses ilícitos.
É evidente que não nos cabe, em um território superficial como este, enveredar sobre a veracidade ou procedência das afirmações que a delegada faz.
Mas isso não é necessário para que se perceba desde logo,e de uma forma muito rápida e imediata, a ilegalidade, a arbitrariedade, a forma absolutamente desproporcional, com que as duas medidas, a de prisão e a de afastamento do cargo, foram tomadas.
A Lava-Jato parece ter incorporado um tipo de processo penal no Brasil que primeiro pune depois julga, primeiro bate e depois pergunta. Porque este é um típico caso em que nós nos perguntamos qual era a dificuldade, qual era o problema de intimar o reitor e pedir para que ele esclarecesse, explicasse, se era verdade. Se de repente essa senhora que o acusa tinha motivos para o acusar, se tinha motivos para não gostar dele, se era uma desafeta – em um ambiente Universitário nós sabemos que isso é muito comum. Mas não, antes de intimá-lo, antes de chamá-lo a depor, antes que ele pudesse dar qualquer explicação, lançou-se mão, e não de qualquer medida. Da medida mais drástica que se pode tomar em relação a uma pessoa, que é a medida de prisão com espalhafato, com uma exposição midiática dessas que a gente já está acostumado a ver, uma medida destrutiva, uma medida que cria um pré-julgamento moral perante a sociedade, muitas vezes, inapagável e uma medida que podia ser evitada.
O Brasil parece que viciou na medida de prisão preventiva. A prisão preventiva é uma medida excepcional. Uma medida de prisão é talvez a restrição de direito de liberdade mais grave que existe hoje. Em qualquer estado de direito democrático, não tem nada mais grave que do que a prisão, principalmente em um país como o Brasil, que não prevê a pena de morte, felizmente, a prisão é o que há de mais drástico. Portanto, ela só pode ser aplicada depois de se implementar um devido processo legal, depois que as formas jurídicas puderem ser colocadas em prática, depois que se exercite a defesa, depois que se implemente o devido processo aí se prende, se for o caso, depois de formada a culpa.
Agora nós estamos usando e abusando da medida de prisão no início da investigação. Sem que a pessoa saiba que está sendo investigada ela é surpreendida, antes de mais nada, antes de qualquer outra medida, com a prisão. É esse o escândalo desse caso, é isso que choca e é isso que causa indignação.
Ouvi muita gente dizer que advogados e juristas estavam explorando a morte do reitor de uma forma sensacionalista para combater a Lava-Jato. Engano, mentira, quem explorou de forma sensacionalista a prisão e a acusação contra ele não foram as pessoas que neste momento estão falando sobre o seu suicídio, quem o tornou culpado sem direito a defesa e o expôs perante a mídia, e o expôs ao vexame e à vergonha pública. Não são os que ora estão mostrando os danos que foram causados ao reitor.
As pessoas que hoje criticam a exposição da crítica pública que se faz do suicídio que esse homem acabou cometendo não percebem que na verdade a exposição pública que o matou foi a exposição pública da prisão, do afastamento cautelar.
Tudo isso poderia ter sido resolvido com uma intimação. Ele seria chamado, poderia desmentir, poderia confirmar, poderia dar uma segunda, terceira ou quarta explicação para os fatos. Era possível que se fosse verdade que em algum momento ele não estava ajudando apurar os fatos talvez com uma intimação a polícia o convencesse da importância. A única coisa que não era necessária nesse caso era uma prisão.
É triste que um caso como esse tenha terminado dessa forma. É triste ver que nós estamos trocando o combate à corrupção por um mau-caratismo de estado. Porque no momento em que nós não nos preocupamos, ou que não se preocupa com a prisão, e quando acontece um mal como esse do suicídio, vem se reclamar da exploração midiática do suicídio é porque nós viramos uma sociedade de maus-carateres, nós viramos cínicos, nós viramos hipócritas em não perceber que nós matamos esse homem.
A sociedade brasileira, o estado brasileiro, mataram esse homem.
Então é preciso rever a forma como se usa a prisão preventiva, é preciso rever a forma como se pune antecipadamente no país, é preciso rever essa publicidade excessiva em cima do processo penal, é preciso prever essa exposição do réu a qualquer custo. É preciso rever essa barbárie que se tornou o processo criminal no Brasil.
***
A delegada Erika Marena preferiu não dar declarações à imprensa sobre o suicídio do reitor Cancellier.
Na última sexta-feira a Universidade Federal de Santa Catarina afastou o servidor Rodolfo Hickel do Prado “de todas as suas atividades, funções e atribuições junto à UFSC”. Corregedor-geral da universidade, Rodolfo Hickel do Prado é considerado por professores e amigos do reitor morto como “o algoz” e “o carrasco” de Cancellier.
Por requerimento do senador Roberto Requião (PMDB-PR) e da deputada Érika Kokay (PT-DF), no próximo dia 31 o Congresso Nacional realizará sessão solene em homenagem à memória do reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo.
Na última sexta-feira a Universidade Federal de Santa Catarina afastou o servidor Rodolfo Hickel do Prado “de todas as suas atividades, funções e atribuições junto à UFSC”. Corregedor-geral da universidade, Rodolfo Hickel do Prado é considerado por professores e amigos do reitor morto como “o algoz” e “o carrasco” de Cancellier.
Por requerimento do senador Roberto Requião (PMDB-PR) e da deputada Érika Kokay (PT-DF), no próximo dia 31 o Congresso Nacional realizará sessão solene em homenagem à memória do reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo.
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